quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Toque

Conhece a arguta leitora um livro do célebre David Zimmer, romancista estadunidense, intitulado The Silent World of Hector Mann? Machadianamente vou supor que não, pois só assim posso deitar tecla ação; separado mesmo, mas poderia ser junto, ou nega ação, ou, quem sabe, negação, ou outra coisa qualquer; nesse teclado. Eu, se tivesse crédito na praça, como se dizia antigamente, teria feito um filme mudo. Temo errar, mas creio ter o tema e o conhecimento necessários para as formalidades do estilo.

Ainda ontem, lendo no jornal; ainda sujo minhas mãos com tinta; o assassinato de mais uma ex-esposa, pensei nas distinções e interações entre a passionalidade irracional e a deliberada passionalidade. O que separa essa última da primeira, onde a fronteira entre o bandido e o animal? Eu, de minha parte, não tenho posicionamento. Não por indiferença ou desinformação. Veja minha única leitora, a diferença entre um homem excessivo, tomado pela fúria da sensualidade, inconsciente de seu estado e o mísero e ignóbil ser de um reino obscuro, não é a mesma de um Dimitri para um Smerdiakov. Rogarei, todavia, à minha delicada leitora que não se apresse em tirar conclusões.

No momento o interesse é ocupar-me em assuntos que necessitam de olhos sagazes. Não que eu os tenha, mas preciso exercitar a pouca visão. O que não chego a compreender é como a indústria de horrores do espetáculo humano consegue banalizar o banal. Não é novidade para ninguém, que esses crimes se avolumam, sobretudo na capital. Contudo, em São Paulo dá-se o mesmo, porém com um aspecto peculiar: a indiferença. Seria diferente em Salvador? A mesma coisa em Belém? Pensas, então, que, se eu tivesse de explicar-me, defenderia alguma posição? Já o disse: não tenho posicionamento. Em ocasiões anteriores já afirmei que não procuro razões, não clarifico. Está bem, então lá vai uma ou mais palavras.

Penosamente carrego uma pálida imagem de mim mesmo. Ao sentir como o ser humano é capaz das mais baixas vilezas, tomo consciência de minha ingenuidade e me vergo ao destino cruel. Vagarosamente passo em caminhos difusos, voláteis demais para um café, um chá, uma prosa. A rapidez da lebre e a cupidez da ignorância, eis aí a semente do tempo presente. Não se faça de rogada. Pode sair. Afinal, nada mais simples que um toque.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Leituras

Na crônica anterior, já lá se vai um bom tempo, rocei em um livro que é parte de mim, grudou feito baba de moça. Faço questão de assegurar que não há na temática nenhuma novidade e o calhamaço é difícil de ser transposto impunemente. Como já disse reiteradas vezes, não tenho a intenção de escrever sobre mim. Ao me auto referenciar e deixar a conhecer minhas leituras, antes de iniciar meu textículo, nada mais faço que suscitar dúvidas no espírito de meu par de leitores, que já sabe que não está em boas mãos. Quer dizer, se eu, em função de ser o moinho desse parafuso, sou a única pessoa, mesmo considerando não ser a mais indicada para tal tarefa, a manter o giro do parafuso, me é lícito cantar o que quer que seja.

A lenda usada remonta de priscas eras e sua origem se perde nos meandros irônicos da história. Alguns a dão como da baixa Idade Média, outros não ousam afirmar nada, o que é definitivamente meu caso, e tantos outros a dão como do período micênico. Aliás, arrisco a dizer que a ânsia da criação é movida por personagens como Urutú-Branco, Fausto, Adrian Leverkühn e uma míriade mais. Qual criador não deseja a obra perfeita? A musa irretocada, iluminada pelo belo? Seja lá isso o que for. Indubitavelmente, o artista corre atrás do que confere sentido ao mundo difuso da realidade, da parca rama de luz clareando caminhos. Forjando bronze, lascando pedra, amassando barro, esculpindo sons, tecendo bordados vai delineando seu louco imaginário.

As profundezas da alma... essas são impenetráveis aos olhos alheios. Então falo do miúdo, do comezinho diário de nosso labirinto humano. Permita-me ilustre leitor, que eu, um de seus admiradores mais humilde, chame sua atenção para um fato ao qual já me referi aqui. Dá-se que o ser que ama o belo e aprecia as grandes vozes "não tem orelhas para crônicas, nem outras cousas ínfimas". Como diria nosso sempre citado bruxo. O que me leva a constatar um grande esquecimento. Sequer uma única vez rocei nossa bruxa ucraniana. Fico em falta, devendo um sopro de vida em minha cidade sitiada. Mas, de toda forma, minha única leitora há de reconhecer que sou um servo fiel de Santa Clarice.

"Quando a gente lê por olhos estranhos, entende mal as cousas". É disto que falo: da segunda mão, a informação via terceiros, a leitura da leitura, o engravidar pelo ouvido. A construção enfadonha de um saber amassado pelo vício, pela vegetação rasteira. Sejamos justos. Nada mais faço que dar voltas em parafuso espanado, não há nada mais falho. É certo que assumo, confesso mesmo, minha falta de criatividade. Mas no meio destes senões, entendam bem, resta ainda um fato importante: o textículo saiu e ejaculou profusamente.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O Diabo Veste Dior

Minha gentileza pertubadora fez com que eu entrasse no inferno. Fui eu mesmo que decidi me apartar da vida e enclausurar-me no além, no reino das sombras e da morte. De certa maneira invoquei e desejei essa solidão. Essas frases possuem seu prestígio, infundem mesmo um certo toque filosófico, meio Eurídice. Em geral o destino dessa personagem depende de sua contrafeição: Orfeu. No meu caso não. Apenas me apego à mãe das Musas. A memória, ao me proteger do esquecimento e do nada, torna-se minha guardiã, minha doce cidadela onde repousar os medos. Em particular aquele que traz uma certa satisfação, ficando, ainda por um tempo, suspenso em nossas retinas.

Não que eu seja um tipo insensível ao amor, minha encantadora leitora, mas sinto um certo rebuliço histérico na busca desenfreada, seja do que for. À primeira vista, isso pode parecer radical, mas como se sabe, o nosso tempo está envolvido pela qualidade de vida. É o jargão do momento. Felicidade, satisfação própria, culto da juventude, velhice sadia, alimentação saudável, nada de drogas, de qualquer tipo que seja, enfim, estamos submetidos ao mais variado cardápio de normas idiotas metendo o bedelho em nossas vidas. Nosso bom baiano, na qualidade de residente, contibuinte e eleitor da inigualável cidade do Rio de Janeiro, como ele nos diz, sente na pele o que é ser coroa municipal, acrescento, me lembrando de Chico, federal.

Bem, voltemos ao caso da morte dupla. Meu canto, embora parecido com o de Orfeu, ao tanger acordes tristonhos e banhar as faces divinas de lágrimas, não busca absolutamente nada. Não há uma Dulcinéia, ou Eurídice, ou Beatriz. Decidamente não há um objetivo claro, um ponto de vista ou algo que o valha. De certa maneira levo vantagem, já que não ter impossibilita a perda e olhar para trás é mais que natural. Já disse que a memória é minha guardiã, portanto, vivo virando os olhos. A miragem de Eurídice não se impõe e posso continuar indo por aí, cantando a tristeza inútil de um ambiente devastado.

Ouço o rufar constante de um tímpano a dizer: Lasciate ogne speranza, voi ch´intrate. Badalos seculares de uma ladainha antiga e viciada. O parafuso dá muitas voltas. Nem sei ao menos como fui parar em Dante. Caminhos sinuosos de uma mente vadia, vazia de cartesianismo. Com efeito, os manuais de redação não servem para minha louca peregrinação em torno do nada. Faço tudo ao contrário e tenho plena convicção que serei reprovado em qualquer concurso. A receita de bolo fala em simplicidade e naturalidade. Eu crio densas névoas e estou escrevendo, não falando. Prefira frases curtas e em ordem direta, reza a cartilha da norma culta. Mas eu continuo me atrapalhando com a pontuação. Escreva parágrafos com tópico frasal e desenvolvimento, mais um axioma da bela escrita. Prefiro a frase inicial áspera, cortante e nada de atraente. Afinal, não sou jornalista.

Arre! Estou farto da medíocridade. As pílulas do êxito, da felicidade imemorial estão à venda nas melhores lojas do ramo, diria um reclame publicitário de antanho. E nem é mais preciso um Adrian Leverkühn. O diabo veste Dior em belas luzes coloridas hipnotizando a patuléia.

sábado, 29 de novembro de 2008

Inundação

Fazia cinco dias que chovia sem parar. A velha começou a se preocupar. Lembrava nitidamente da grande cheia de... foi no dia de seu casamento, andava com a memória fraca. "Tempos que já lá se vão. E essa chuva... parece a mesma. Naquela época morava mais embaixo, lá no sítio do pai". Filha única, Gabi, ao atingir os dezoitos anos, casara-se com Damião, e viera para cá sem que, na casa paterna,onde vivera todo esse tempo, houvesse uma imagem sequer para substituí-la. Com efeito, ao pai não havia sido concedida uma segunda prole, pois a esposa mesmo, só a tivera ao tempo justo de uma gravidez. Certamente minha única leitora ficaria satisfeita se eu apenas mencionasse a data, ou se era tarde, noite ou de manhã. Basta saber que foi um dia de um aguaçeiro danado. A água invadiu tudinho. Lembrou nitidamente como ficara triste no dia mais feliz de sua vida. De inopino se sentiu desolada com a direção que tomavam seus pensamentos. "E essa chuva... parece a mesma".

O velho se inquietava por seu lado. O rio não parava de subir, mas a água nunca tinha chegado até a casa, pensava ele apaziguando um pouco a apreenssão. Dessa vez a coisa tava mais brava, o céu abriu mil torneiras. Bem que ele já tinha pensado em construir outra casa no topo do vale. O pior é que a encosta não está com cara boa não. Pode ceder a qualquer momento. "E esse rio que não pára de crescer... parece que tomou fermento. Eh, aguão!...". Os baixios já estavam completamente inundados e o dilúvio não dava fim. "A enchente tá aumentando muito rápido e não estou gostando da enconsta, acho que teremos que ir". Falou quase imperceptivelmente. Olhou para a velha e a encontrou mirando o vale com um olhar distante, perdido, alheio e meio alucinado.

"Mulher, temos que ir". "As coisas estão prontas, eu já sabia", disse automaticamente. A chuva dera uma estiada o que facilitou a subida para o alto do vale. . "E se o riacho estiver muito cheio?", perguntou Gabi. "Já pensei nisso, vamos dar a volta pela cabeça do veado, andamos mais e não cruzamos o riacho que, com certeza, está cheio".

"Nunca vi isso em toda minha vida, nem no dia de nosso casamento", disse o velho. Gabi abriu um sorriso largo e silencioso e adiantou os passos. "Vamos logo velho preguiçoso, parece até que não conhece os caminhos de sua terra". E saiu lépida, com a brejeirice da juventude. Damião não entendeu nada e foi, fagueiro, atrás de seu raio de sol.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Pôr-do-sol

Minha única leitora não ignora que a troça comigo mesmo move esse parafuso. Por outro lado, leitor amigo, não é despropositado imaginar que escapo a mim mesmo. Nem eu, nem você, nem ela, niguém pode, exceto o transcorrer da cena, esclarecer essa relação estranha entre o autor, o narrador e o leitor. Porventura julgas que sou obrigado a escrever? Não está de todo errado, tampouco estais certo. Outrossim, você percebe que esse estado da alma, que vê no entardecer as minudências da vida, não passa de desavenças íntimas. Uma ponta de Iago nas convicções.

É bem provável que vocês tenham tido conflitos parecidos e, como meus leitores são só vocês dois, mínimas as tentativas de solução. Contudo, o mundo não é claro e obscura a narrativa. Meus pequenos olhos são ingênuos e vivem perscrutando a escuridão abafada, sem indícios de suavidade e sem o perfume das manhãs. Já encaro como normal a incompreensão nos olhares temerosos de meus vizinhos e não ligo a mínima para essas pessoas que lutam tenazmente para manter as aparências. Minha melacolia moral dispensa muletas e não admite Pilates. Lavar as mãos para a vida é o mesmo que confessar minha covardia e escancarar um sentimento de culpa que definitivamente não tenho.

Não serei eu a me submeter à uma vida com a qual nada tenho a ver. Já passei do tempo de flertes com pessoas que nada significam e minha repugnância, ao ver uma ferida da alma latejando, não passa de um gesto defensivo, uma bem arquitetada obra da razão. Quando, porém, o asco se vai, verifico que, afinal de contas, as coisas não são assim como o diabo pinta. Malgrado toda minha indisposição para com a vida, não me furto a vivê-la. Dessa maneira ainda alimento um desejo, ínfimo que seja, de fumar um cachimbo sentado na varanda, ao cair da tarde, e ver surgir por entre o crepúsculo uma noite radiosa depois de um dia melancólico.

Só que o destino é uma força real e maligna. A derrocada é inevitável e cavalga lépida, malogro após malogro, rumo ao baixio dos maus augúrios. No momento apenas cultivo o fracassado que todos testemunham em mim. Seria difícil dizer exatamente o que temo, mas me sinto como um equilibrista no gume da faca, pois vou tecendo minha inquietude interior brincando bem-humoradamente, como se o riso gostoso da exuberância infantil de minha face viesse do íntimo.

À hora do pôr-do-sol, outra vez tomado pela depressão, lágrimas vagarosas descem de minhas retinas e me volto novamente para a parede.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Outros Mares

O avião partiu pontualmente às três horas. A noite anterior havia sido mágica, suave, estrelada e repleta de relatos. Não me aborreci em nenhum momento, muito pelo contrário, foi lá que ouvi de uns lábios ressequidos, pele enrugada, pernas vacilantes e olhos ainda vivos a estória que se segue.

O dia amanhecera cinzento, o vento soprava curvando os coqueiros, chuva armada no horizonte e deixei o continente às escuras. "Assim como eu nesse avião. Esclareço que estou escrevendo nesse exato momento". Certamente cairia um temporal e eu não estaria presente para ver essa chuva de verão tão conhecida minha.

Ela estava linda. Seus olhos azuis resplandeciam de felicidade e eu me encantava com isso. Bastava vê-la feliz, rodopiando na pista e me lançando olhares lânguidos. Sabíamos muito bem que não nos veríamos mais. Inexplicavelmente eu sentia uma placidez, uma calma até certo ponto assustadora. Amanhã deixaria para trás a promessa de felicidade, desataria uma bela história de quinze anos e não me sentia nem um pouco preocupada com perdas. Era minha chance e éramos jovens. Eu fui chamada, não tentei nada. Mas ela... Nunca mais acharia alguém como ela, tinha certeza disso. O que se comprovou.

Durante trinta e cinco anos não tive notícias, apesar de minhas insistentes cartas. É moço... antes se escrevia cartas. Hoje não, só essas coisas curtas da rede. O moço não me leve a mal, mas não me dou com essas coisas eletrônicas. Sou de um tempo em que se lavava a própria roupa suja. Mas veja o senhor como o destino é irônico. Um belo dia compromissos profissionais me levaram direto de Paris para Brasília. Da cidade sabia apenas que era algo perdido no meio do nada. Realmente, quando cheguei a desolação era total. Muitos homens, poeira muita e uma precariedade de dar dó. Acho que era por volta de sessenta e dois ou três, não lembro bem.

Mas dela me lembro muito bem. Ao chegar ao ministério dei de cara com a secretária do ministro: Ela, linda como da última vez. Fiquei sem voz, apavorada. Ela, com o mesmo jeito infantil de nossa juventude, me abraçou, pediu notícias e, finalmente, me encaminhou para a reunião onde só havia uma mulher na mesa de negociação: eu. Tempos duros meu rapaz. Nenhuma palavra sobre minhas cartas. Durante toda reunião isso martelou minha cabeça. Estava dando motivo para os machistas, quase todos, taxarem as mulheres de incompetentes, pois eu estava meio longe, dispersa e alheia ao andamento das negociações. Resolutamente retomei a rédea de meus pensamentos e rapidamente fechei as discussões com bom saldo para todos. Não seria eu a dar argumentos para esses engomadinhos do terceiro mundo.

Minhas cartas foram um erro

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Alguns Mestres

Já muito falei, ou insinuei, ou citei alguns de meus mestres. Apresso a dizer de sua profusão, de maneira que são de vários feitios, tamanhos e situados em universos díspares. No entanto há três fascinantes. Os relatos de Borges, Kafka e James me são caríssimos, não só por haver uma certa unidade temática, mas pela maestria com que a pena desliza no papel. A angústia labiríntica de profundos conhecedores do ofício me embriaga.

Assim como Borges, procuro situar minha escrita na lonjura do tempo e do espaço onde a imaginação encontra a liberdade necessária. Não me atrevo sequer a aspirar ter a grandeza do ancião ancestral dos pampas. Como já disse em diversos escritos anteriores, não desejo compreender ou persuadir. Contento-me em distrair ou comover. O que me coloca ao menos próximo das Mil e Uma Noites, tão querida para o bardo hermano. Afinal, como diz nosso argentino, a literatura nada mais é que um sonho dirigido.

O leitor curioso e perspicaz perceberá certas incongruências de minhas narrativas. Outro dirá de minha monotonia; decididamente a mesmice é tema principal; um outro notará, ao contrário do portenho, um certo barroquismo, também haverá o leitor esperando o imprevisto, assim como o refratário às novidades nas regras da arte. Na realidade, leitores e atores são vários, há mil possibilidades escapando à observação do cronista mais sutil. Dir-se-ia, minha única leitora, que há aqui algo de inexprimido, de inacabado. Tem-se de novo a impressão de um enigma. Mas não há mistério, talvez a luz se faça. Não antecipemos. Eu poderia, enquanto espero, apresentar algumas considerações sobre minha narrativa.

Eventualmente, ou melhor, constantemente me sinto o agregado José Dias, um amante dos superlativos. Segundo o morador da Rua Mata-cavalos, voz que nos apresenta a personagem, o uso de superlativos só serve para alongar a falta de idéias. Mas é tempo de voltar aos três mestres anteriores e não colocar um outro. A verdade é que só vim a aprender escrever, se é que sei, com a leitura compulsiva de todos eles. Da mesma maneira que o bruxo, na literatura brasileira só há um e não é o retardado da contracultura, busquei nos vermes a minha resposta. Assim como eles não sei absolutamente nada dos textos, nem escolho o que escrevo, nem os amo ou detesto; apenas escrevo e nada mais arranquei das larvas. Ademais, admitir minha ignorância é deixar de ser ator para ser personagem, é o testemunho corrompido pelo narrador.

Relendo essas linhas pressinto, do mesmo modo que o cego portenho, que já não escreverei mais. "Mon siège est fait".

sábado, 22 de novembro de 2008

Passado Pesado

Fazia cinco anos que ele não a via. Foi uma separação traumática, porém silenciosa, sem um gemido e com urros estrondosos, nos íntimos. Nem sequer se falaram nessa meia década, apenas um último olhar restou daqueles anos. Lembrou nitidamente o dia em que tudo acabou. Parecia que alguém havia retirado um tapete sob seus pés. Tudo rodopiou e ele nunca entendera a razão do fim. Os três filhos choravam compulsivamente e ela contribuia com reclamações inúteis e bastante conhecidas. Só ele silencioso. Um vulcão prestes a vomitar toda sua fúria.

Agora ela ali, na sua frente, com a boca travada e olhar fixo no pai de seus filhos. Aturdido ele não conseguia articular balbucio algum, apenas o silêncio se aprofundando. Olhava com indiferença e um certo desprezo aquela mulher envelhecida, com um sorriso opaco e olhos esmaecidos. Sensação estranha devem ter sentido nossas personagens. De inopino se perguntou como pôde ter amado tanto aquela estranha. A olhava e via uma estrangeira, uma imagem da qual não se lembrava de ter visto.

Só que a memória é traiçoeira e implacável com os sentimentos, o coração o reino da incerteza e a razão uma única lança certeira. Em um minuto todo um passado esquecido no fundo mais escuro do porão se iluminou. Subitamente quinze anos deliberadamente apagados se revelaram límpidos. Toda cena se desenrolou em um piscar de olhos. Como era apegado aos filhos. Os passeios todo final de tarde. Iam olhando e identificando as árvores. Olha papai, pitanga. Mais na frente várias mangueiras. Tinha até dois pés de graviola, sem se falar no monte de sucupira, cajuzinho do cerrado, cagaita e tantas outras árvores, com ou sem frutos. Perdera tudo e tudo abandonou. Não, agora já não têm nem árvore nem passeios, e tudo por culpa minha. Agora já não têm sonhos. Ele era a desgraça; nada lhes dei, tudo lhes tirei. Obrigado mais uma vez mestre Fuentes.

Perguntou pelos filhos automaticamente, como um balconista se dirigindo ao cliente. Estavam bem e com saudades do pai. Explicou que esteve fora durante esse tempo. Nem uma notícia para seus filhos? Foi tudo muito rápido, passaporte, cartas de recomendação, arrumar lugar para deixar os livros, os quadros, os discos. Nada justifica sua falta de notícias. Parecia que tudo ia recomeçar. As cobranças, a tentativa de rédea curta, aporrinhação. Espere aí, já não somos mais casados. Estou falando de seus filhos e não de nós. Sou responsável pelas atitudes que tomo. Fiz o que achei que deveria ter feito. Foi excelente e, aliás, estou só de passagem. Volto amanhã e acho que nunca mais ponho os pés no Brasil novamente. Você sempre foi um egoísta mesmo, não vai nem ao menos ver seus filhos? Acho que não, eles não precisam de mim e eu não tenho família, sou só no mundo e assim me convém.

Dito isto, se afastou célere, sem olhar para trás, sem remorso e com um passado começando a se tornar pesado.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sintomas

Estava a fim de escrever uma crônica engraçada, mas as idéias andam escassas. Do meu mundinho nada falo, já que sou uma pessoa bastante desinteressante. Eis o impasse, príncipe do Cerrado. O jeito é fazer o parafuso dar uma volta ao redor do quarto. Aproveitando-me desses três grandes escribas esmiuço a casca pendendo da parede. Como se fosse escamação de pele queimada pelo sol, lascas grandes procuram a gravidade de sua queda e trombetas anunciam que é hora de partir, de procurar outro canto, outra morada.

Mas a morada é em mim. O espaço apenas reflete o desleixo, a falta de sensibilidade e a ampla gaiola da servidão. Nada que revele a antiga reverência ao destino solto, sem rédeas, procurando a pradaria sem cercas. Corcel indômito fugindo das amarras, como já disse há muito tempo em um poema. Com uma ponta de desdém noto que muinto do que fui se perdeu em pouco tempo, em coisa de minutos.

E esse não sou eu. Surrupio da memória os dias em que guardava baganas embaixo de pedras, em buracos nas árvores, em cima do elevador, enfim, em várias quadras e lugares havia um reservatório para os momentos difíceis. Tamborilava o tempo em vastas camadas, em finas fatias de lassidão. Ali sim, a disposição para o embate, a luta diária do cavalo chucro dando pinotes em direção à lonjura. Hoje o palco é pequeno e a Cena Dramática vazia, sem representação e eu não sou Henry James, nem Shakespeare e muito menos Xavier de Maistre.

As grandes indagações, as controvérsias, o discernimento entre a ilusão e o real, sugerir o que se oculta por trás das palavras, construir narrativas labirínticas, a ficção e o texto, são coisas que desconheço. Não passo de um apontador, escrivão de repartição com cheiro de mofo. Eis ao que se resume minha escrita.

E minha metamorfose é simbólica! Toma o barco do desencanto, fenece em um instante e a terceira margem é um fantasma real. As coisas mais abomináveis de mim mesmo são apenas sintomas de meu mal-estar e doença, como me diz a volta do parafuso ao redor do quarto.

E a crônica engraçada não saiu.


 

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ópio e Ócio

O políticamente correto, a ditadura da saúde, o antitabagismo, tudo isso me aborrece profundamente. Ter que ser o que eles querem, se comportar segundo um preceito preestabelecido, pautar seu cotidiano por regras nocivas ao bom viver me parece a mais absurda das bisbilhotices. Não as quero. Jamais farei isso com meu fígado. Água seria um choque insuportável, Quincas desavisado não me pega. Esse pessoal e suas perspectivas ligeiras não suporta a felicidade alheia regada a doses generosas do mais fino destilado escocês.

Imagine só, euzinho caminhando todo dia, perdendo um tempo precioso com ruminações de um coroa chato, solitário e mal-humorado. Só de pensar já fico cansado e agastado. Antes o folgazão da mesa, o cultivo da pilhéria se esvanecendo na fumaça do cachimbo, a refrescante bobagem fresca, molhada e sorvida, gota após gota. Não me queira mal, comportado leitor, apenas a desafinação nesse acorde perfeito. O pingo para manchar, a mácula necessária. Afinal, como já disse, não falo de mim, nem do narrador. Apenas a personagem em cena.

Atravessar o oceano Atlântico de avião tornou-se uma tarefa impossível para os fumantes de plantão. Ficar horas sem um traguinho, uma barrufadazinha, um tapinha sequer. Martírio total e absoluto. O pior de tudo é ter que aguentar o ar de reprovação de um contigente cada vez maior. O cara se sente perante um tribunal do Santo Ofício. Ovelha em oferenda. Para aumentar o tormento a turba ruge, arreganha seus dentes em franca hostilidade aos que ainda ousam acender um. Pelo direito irrefutável de se regular o nível de nicotina.

Os vícios são a prova inconteste do prazer humano. Desde priscas eras que há algum tipo de entorpecente nos grupos sociais. A variante está na relação desenvolvida. Uns incorporam os usos rituais, outros assumem uma postura coercitiva, algumas radicais e há, ainda, a liberação geral. Essa histéria é hipócrita e resume bem a miopia política do homem contemporâneo. Ao tomar a padronização como referência de uma política pública nego toda e qualquer diversidade, as diferenças, o diálogo. Não que eu queira ser arauto de algo, apenas o reconhecimento e o direito de minha cirrose cultivada por anos, de meu enfisema pulmonar de meu distúrbio neurológico.

Sim, só sendo louco para proferir tantas bobagens, deve estar pensando meu leitor de conduta irrepreensível. Só posso lamentar. Eu, de minha parte, vou vivendo assim, nos vapores do ópio e do ócio.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Cumpleaños

Antes de mais nada, senhor cavalheiro, lhe direi o seguinte: longos anos de preconceito nos ensinaram que podemos nos fiar somente em nossos cinco sentidos. A idéias florescem e murcham rapidamente, as recordações perdem-se, as esperanças nunca são realizadas, os sentimentos são inconstantes.

Carlos Fuentes – Terra Nostra.


 

O panamenho cosmopolita naturalizado mexicano faz oitenta anos hoje. Toda geração hispano-americana que ganhou o mundo com o chamado "realismo fantástico" a partir dos anos cincoenta foi fundamental em minha formação literária. Primeiro Borges e seus duplos labirintos me encantaram. Depois vieram muitos outros: Sarduy, Carpentier, Bioy Casares, Lezama Lima, Cabrera Infante, Paz, Juan Rulfo e o aniversariante Carlos Fuentes foi um deles. Com sua atmosfera insólita de lendas, sonhos e História o autor é tão realista que a complexidade do drama humano se despreende da razão e se torna puro fantasma, magia em seu estado mais bruto.
É provável que o equivocado termo realismo fantástico tenha encontrado aqui seu berço. Não simplifiquemos, senhor cavalheiro.

A árdua batalha de usurpadores é mera revelação do que não foi dito. Longos anos de preconceitos em nossa também longa história feita de silêncio, retórica e cumplicidades. Ao desvendar o novo mundo o escriba aciona o teatro da memória, da gente da selva e aos pés do senhor recusa a racionalidade do velho mundo. Sendo assim a América é mera miragem, fantasma arrastando seus grilhões, até porque a representação da realidade nada mais é que os cinco sentidos nos dando a única prova segura de nossa existência. Somente os sentidos podem nos dotar de identidade.

Entre a História e a ficção, a lenda. Sei que, depois de toda essa pretensa erudição, o senhor deve estar se perguntando quais as novidades em tudo isso. Por favor não me julgue com indulgência, não a mereço e a repasso para os humildes. Reconheço que trago notícias requentadas, mas não vamos brigar em dia tão nobre, já basta nossa guerra íntima. Quanto a mim, tenho cá com meus botões que não passo de um tolo pretensioso. Não creio poder sair por aí dizendo o que acho do que não conheço. Aliás, não perdi nada para ficar achando algo.

Fuentes furta cor e sempre o mesmo. Sempre o mesmo camaleão errante na temática obsessiva explorando os limites da linguagem. As sensações mais diretas são fundamentais nessa narrativa do corpo, dos sentidos. Não por acaso o erotismo ocupa lugar nobre no universo poético de Fuentes. Como bem observado por outro mexicano, em Fuentes e Bioy Casares os fantasmas não são menos reais que o corpo. Dessa maneira a identidade se dispersa e eu me despeço desejando um FELIZ CUMPLEAÑOS, GEORGE.

domingo, 9 de novembro de 2008

O Dito Dito

Pretendo contar um pedaço da história de um cabra que conheci em um butiquim pé-sujo que costumava freqüentar. Nome incerto e com uma malemolência tupiniquim bastante temperada com a cultura universal. Deixemos logo de cara registrado que o referido era de uma erudição invejável. De Bach a Elomar, o sujeito não só conhecia tudo, como cantava com uma afinação de dar inveja a Fischer-Diskau, além disso, tocava um belo violão. Aqui se faz necessário abrir um pequeno comentário:

- Este violão foi a única coisa, fora a minha vil presença, que sobrou de minha inimiga. Ele deverá ser guardado como troféu de minha vitória.

Em princípio achei apenas uma peça de retórica barata e não dei muita atenção. Mas após nossa convivência íntima, mais de cinco anos, acabei por achar que entendi. Terminei por descobrir que o violão era de luthier e custava uma pequena fortuna. Não era o valor que importava. Para ele ali se escondia vinte anos de sua vida, a eterna inimiga. Segundo ele, foi o momento em que se deu a única trégua em sua luta com a inimiga.

Do que sua memória registrou, – primeira contradição: sabia de cor uma infinidade de músicas, textos, mapas, poemas, até artigos inteiros ele já me citou, enfim, uma memória prodigiosa – ficou uma janela aberta mostrado todo interior da casa.

- Sabe, qual é mesmo sua graça?

- Odaízio.

- Ah, sim! Odaízio na sala está todo meu resumo, a parte essencial de minha existência. E ela foi pintada com o pincel do fracasso desde o início. Bate nítido o dia, qual foi mesmo? Tinha sete anos? Seis? Cinco... em que se manifestou minha sina de sempre quebrar a obra, destruir o que construí, desfolhar a rosa cultivada com afinco e denodo durante tempos. Depois: o pavor. A sensação eterna de ter o malogro como companheiro. Graças ao meu temperamento irracional sempre consigo acabar com a mais dura armadura, aniquilo de um golpe toda sorte de salvação. Deliberadamente corro rumo ao fim, como se buscasse o bálsamo redentor de minha miséria: a morte. Pois não é exatamente a vida minha maior inimiga?

Conforme o grau de alcoolismo, este ponto de vista sofria algumas alterações interessantes. Uma delas, talvez a mais significativa, era o fato de ele sempre fazer uma confusão, buscando uma polissemia qualquer, entre vida, Aída e ávida. Convém esclarecer que a ex-mulher dele chamava Aída, sim, com acento no i. Deste triângulo vocabular, surgia uma curiosa dialética anárquica, digamos assim, pois a cada segundo as premissas, assim como a síntese, quando havia, tomavam contornos cada vez mais imprecisos e doloridos. Agora, isso não é nada diante dos longos discursos produzidos – essa arenga, deixemos claro mais uma vez, era de uma lucidez e erudição que dificilmente se acha por aí, mesmo nos melhores salões – por sua mente corroída em um coquetel de álcool, todo tipo de tabaco, noites insones, livros, música, solidão e loucura.

Vir Ver a Vida

Houve uma ocasião, uma boa época, em que eu perambulava pelas calçadas da cidade como quem procura algo ignorado. Passado tanto tempo, continuo não sabendo o que procuro, assim como não me sinto em busca de nada. Meu escaravelho dourado jaz inerte em minha memória. Eu bem poderia encontrá-lo de novo, mas falta-me agora, mais que nunca, o ânimo de outrora, a força de antanho. É... eu poderia, mas prefiro o silêncio das profundezas marítimas.

Hoje tenho uma idéia fixa alagada por uma torrente de sangue esguinchando de meu coração. Sutilmente se apoderou de mim e agora me consome. Por um breve instante pensei perceber o quanto estava enganado. Mas me enganei e continuei caminhando cuidadosamente enquanto recolhia rumores vagos de minha insânia. É, é isso mesmo. Estou ficando louco. Já não jogo cueca na sala, não fumo mais, bebida nem pensar, leio meu jornal de maneira civilizada e, suprema glória, não mijo fora do vaso.

Aqui, meu amigo, onde vejo alucinações, meu temperamento se excita, por muitas e nenhuma razão. Mas ainda há um outro estraho motivo para que eu creia em minha sandice. No presente caso a questão é considerar as minhas faculdades e impulsos destituidas de juizo. Os fenomenologistas podem até dizer se tratar de um sentimento irredutível e moralista. Não creio em tal leitura. Acredito que vivemos como náufragos agarrados na boía arrogante da razão.
A fatura das mentes analíticas é, por si mesma, mais fácil de ser protestada.

Me viro abruptamente. Esquivo e escorregadio saio ligeiro e não noto o mecanismo sendo acionado. Meu erro! Um jogador de xadrez, por exemplo, nunca faz um lance sem saber das próximas jogadas. Nesta tarde, quando as peças estavam diferentes, com bizarras formações, notei a lenta agonia revestindo o dia e não havia variáveis. Apenas o mate se anunciando esmagador. Não há um só instante em que não o diviso pronto e é muito possível que o intervalo entre o movimento das brancas e os poucos segundos de meu delírio, seja apenas meu senso me deixando.

Estou doente, terrivelmente enfermo. Vi, com horror, a barca humana naufragar. Vi, com um sorriso cínico, o amor ser violentado. Vi, não sem comiseração, o assassinato do carinho. Não! Definitivamente não vi a vida.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Pipa Voando na Maré

Alguns anos atrás conheci um certo médico, Dr. Plácido Barreto. Era de uma tradicional família paulista e crescera com bastante mordomia. Mas uma série de infortúnios o reduziu à miséria. Para minimizar as consequências de sua falência, deixou a cidade dos bandeirantes, terra de seus antepassados, e foi se aventurar no nordeste, fixando residência em Pipa, próximo de Natal.

Pipa é bastante singular. Longas praias emolduradas por falésias imensas, escondem uma maré traiçoeira e alta, bastante alta. Com o pouco que restou de sua fortuna, comprou um belo de um terreno, construiu uma casa confortável, montou um consultório na beira da praia e ainda sobrou algum. Atendia de bermuda, camiseta leve e chinelo. Sendo uma pessoa extremamente simpática, além do fato de ser médico em um fim de mundo, apresso a esclarecer que quando ele foi para lá, Pipa não passava de um lugarejo de nativos, não essa loucura turística de hoje, não lhe foi difícil granjear uma certa popularidade. Contribuia também o fato de nunca cobrar consultas e remédios.

Passado uns dez anos após sua chegada, surge na cidade um playboy conterrâneo de nosso doutor. Tendo a patroa do mesmo se sentido mal procurou o único médico existente: Dr. Plácido. Como sempre o nosso herói se encontrava em trajes pouco compatíveis para o exercício da profissão, segundo asseverou o paulista. Placidamente; não se trata de trocadilho barato, minha única leitora, o sujeito é de uma mansidão de dar sono em pé de maracujá, faz juz ao nome; o doutor disse "como queira" e foi atender a paciente.

Entretanto, o buraco era mais embaixo. O rapaz começou a dar escândalo. Não iria permitir isso, aliás onde estava o diploma, deveria estar pendurado na parede, emoldurado e passado. Com o alvoroço a pequena população da vila foi se apinhando em frente ao hospital do doutor. O consultório virou hospital e a curiosidade acirrou os ânimos de nosso ator canastrão acostumado com dramas baratos. Se vendo protagonista da cena não titubeou em carregar nas tintas. Isso aqui é caso para o Conselho de Medicina. Onde já se viu um charlatão exercendo tão nobre profissão. Será que os senhores se deixariam cuidar por alguém que nem diploma ostenta? O que diabo é isso? É de comer? Perguntou um. Deixa de ser leso homem, é de beber. Você os tenta comer mas só bebe, o homem é fino, da capital. Respondeu outro mais sabichão ainda.

Barreto, como o povo acostumou a chamá-lo, não ligou a mínima e continuou a atender a moça. Bonita, elegante e perfumosa, observou um mais galanteador, a jovem já demonstrava irritação com a atitudes de seu noivo, como se soube mais tarde. Enquanto o profissional cumpria seu juramento, o jumento continuava seu espetáculo sob os olhares curisos e atônitos dos nativos. Constatou-se uma indisposição estomacal que foi logo resolvida. Ao se restabelecer a linda moça se aproximou do rapaz e, na frente de todo mundo, tirou, sem uma palavra sequer, sua alinça da mão direita e entregou ao embasbacado paulista.

Voltando-se para o médico perguntou se não havia um quarto para alugar. Para alugar não tinha, mas teria imenso prazer em hospedar uma conterrânea. Isso seria outra estória ou o início do fim?

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Sereia da Tarde

Eu, apaixonado que sou pelo belo sexo, não compactuo com essa estória de poupar. Vamos gastar que o tempo é curto. Inclusive dizem que você pode ficar maluco se não colocar para fora. Sobe prá cabeça e você fica pinel. Mesmo porque considero as mulheres, assim como certo médico de um estupendo romance, criaturas ideais e superiores. Embora eu seja um obtuso no tocante a sua natureza, esclareço que as percebo como uma encarnação do belo em sua atitude de entrega, obrigado Neruda, no fino labirinto formando imagens e na força bruta de uma tromba d´água.

Ontem estava um calor infernal, a porta do purgatório aberta e eu com uma reunião marcada no centro da cidade. Cheguei pontualmente, como é de meu feitio. Ao entrar em uma sala minúscula, sem ar condicionado e com seis mulheres, desnecessário dizer que todas belas, quase desmaiei. O cheiro de fêmea suada pairava absoluto no ar, reinava imponente em minhas narinas e um tesão louco tomou conta de minha cabeça não pensante, embevecida que estava com o aroma.

Tinha uma, pude olfatar, com uma característica própria, um timbre peculiar que lhe conferia uma animalidade toda especial. Esbelta, olhos verdes, com uma longa cabeleira loira amarrada acima da nuca, dotava o ambiente de um odor delicado, sensual e meio amadeirado. Quantos mundos não se escondiam atrás daquele sorriso, perguntei meio sem jeito, pois meu semblante denunciava todo desejo de meus poros abertos, atento ao mais insignificante gesto. "Só desbravando para saber", me disse em um quase convite. Relaxei e esqueci a filha da mãe que me deu um bolo.

Fiquei por ali, esperando a outra ligar para a furona. Sem perder um espaço sequer fui cercando a dona de olores imperscrutáveis. Logo combinamos um chopp ao final do expediente: o calor tava de lascar e nada melhor que um bom gole de colarinho, daqueles que deixam bigode. Finalmente consegui falar com a fonte pagadora. É foda trabalhar com amadores, a falta de compromisso me causa engulhos. Na verdade, devo gratidão à ela, pois me fez esperar e conhecer uma sereia que seria, dentre as inúmeras, mais uma grande paixão. Explico: nunca fui de ficar chorando o que passou. Paixões rodopiam em um interminável novelinho e a fila anda.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Genro Gringo

O império ruiu. O leão da metro perdeu os dentes e está com adenóides. Não passa de um gatinho manco. Minha cisma agora é outra: seu sucessor será mais perverso ainda. Na história humana os impérios se sucedem em uma lenta agonia. Façam suas apostas. Mas cuidado, a bolsa não anda nada confiável. Por outro lado, assumindo todos os riscos, coloco minhas fichas na China. Poderia até assumir um tom acadêmico e tecer considerações teoricamente fundamentadas sobre o caso. Mas deixemos de lado essas viadagens e vamos navegar na crista de meus preconceitos.

Nunca fui simpatizante do American way of life. Me rendo ao jazz, ao cinema até meados dos anos cincoenta e poucos, pouquíssimos escritores. Ella Fitzgerald cantado Cole Porter me arrepia até a medula, Jonh Ford e sua narrativa cara-pálida faz com que me sinta uma criança encantada e Poe dispensa comentários. Essa antipatia acabou por me colocar em uma saia justíssima. Para minha desilusão tenho uma prima que se alojou na terra do tio sam e por lá casou com um ianque. Essa minha prima eu vi crescer, costumava chamá-la de filhota ou de pequerrucha e a tenho como realmente minha filha. Deixemos de delongas e vamos ao assunto.

O rapaz aportou em terras de pindorama para conhecer a família. Naturalmente fui intimado a comparecer para conhecer meu "genro". Assim que cheguei, antes mesmo de me dar um beijo e abraço para matar minha saudade, pequerrucha me puxou e disse: "olha lá, veja o que você vai falar". Naturalmente em português, respondi com um ar cínico. Ela percebeu e riu. "Não mudou nada, sempre a mesma ironia" e para minha felicidade me cobriu de beijos. Estava com saudades, eu também, enfim, as praxes costumeiras e só nós dois, o que deixou minha tia com cíumes. Só que ela não sabia se era de mim, dela ou dos dois. Gosto muito da minha tia e ela também me adora.

O fato é que ao ser apresentado ao moço não pude deixar de demonstrar um sorriso de canto de boca que toda minha família conhece muito bem. Se prepararam para o pior. A figura, grande, de um branco vermelho, pernas arqueadas e compridas era o símbolo exato do caipira estadunidense. Conversamos amenidades para desanuviar o ambiente que eu percebera procupante. Um alívio aflorou nos lábios de minha mãe e minha tia veio se intrometer em nossa conversa, estava preocupadíssima, segundo me contou mais tarde.

Contudo, mais tarde, quando ele falou sobre a amazônia não pude me conter. Em perfeito inglês, para o seu espanto, pois até então estava falando um inglês sofrível, misturando gestos, frases erradas e tudo que eu tinha direito, fiz ver minha opinião sobre o assunto. Me furtarei a narrar, pois é insignificante. O gringo ficou lívido, engoliu a seco todo meu arrazoado a respeito da empáfia estadunidense. Meu irmão foi o salvador da pátria. Contou uma piada, ele sabia que eu iria rir. Era uma que eu gostava muito. Com o tempo me aproximei de meu "genro gringo", como passei a chamá-lo. Acabamos nos tornando grandes amigos e nutro uma alegria muito grande ao ver o belo casal.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Mensagem

Hoje vou me permitir falar do cara que coloca esse parafuso para voltear. Não, é preciso que eu me explique em primeiro lugar. Como já foi dito várias vezes, não digo de mim, nem do narrador, tampouco do autor e muito menos do poupardor, isso é lá com ele, comigo é o contrário, mas daquele que vejo: o escriba. Há em ti uma fibra romântica que você insiste em negar. Que fazer, rapaz? Ainda há pouco, ao lembrar-me de você, pensei, não sem ironia, que o momento seria bom para um bate papo. Não se assuste, sou meio como o diabo do Ivã Fiodorovitch, uma incógnita.

Você, assim como os demais, leva essa comédia muito a sério. Acaba que o sabor do humor se vai, se perde em sentimentalismos baratos e cai sempre na esparrela de malandro descolado nas artes, com regrinhas feitas e assuntos requentados. Não que eu queira me intrometer, mas escuta, desculpa-me, quero somente ajudar, não era para ser essencialmente chalaça? Aonde a veia do buteco? Faz tempo que não me deparo com um troço chamado troça. Cadê a zombaria chula de um final de domingo engarrafado? É isso mesmo, depois de horas ali sentado você olha para o lado e vé um monte de garrafa vazia na sua frente e está todo mijado de tanto rir.

Embora eu não queira, sou obrigado a confessar que ando de saco cheio dessa sua narrativa de meia pataca, dessa sua pose de literato almofadinha. Meu amigo, quero, no entanto, lhe dizer que, malgrado toda série de senões, sua escrita leva um certo futuro. Trabalhe, persevere que um dia, quem sabe, você produzirá algo grande, talvez belo. Não se amofine, até os maiores só deram o que podiam.

Veja bem o caso dessa famosa assertiva: Je pensee, donc je suis. Sempre vi a tradução como sendo Penso, logo existo. Nunca entedi. Não seria melhor, em belo brasileiro, Penso, donde sou? Mas o que isso tem a ver com minha missiva? Pois é isso meu caro, a gente vai enrolando, vai bebendo uma braminha e fuçando assunto. Não pense, absolutamente, você que o critico. Torço muito por seu teclado e tenho fé inquebrantável que irás prosseguir em sua jornada. Afinal sou seu único leitor, o que me vale ao menos uma mísera atenção.

Só para terminar gostaria de lhe dizer que você é um usuário muito fraco. Foi fácil demais te achar. Vê se cuida melhor do seu computador. Coloque ao menos um sistema de segurança. Abraços e tenha fé.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Semeador de Brisa

Tudo é deserto, já disse o bardo luso. Não pense, caríssima, que eu esteja angustiado, pois não estou. Apenas olho a janela e não me vejo na paisagem. O horizonte distante apenas amplia meu cubículo, masmorra construida com minhas próprias mãos. Longe, perto do horizonte, vejo uma torre de comunicação e não entendo esse mundo tão exacerbado. Quanto mais se escuta, menos se ouve. A profusão de mensagens, amores, amizades é a própria ausência de tudo. Náufrago de mim, vago a esmo em águas torrenciais.

Gostaria muito de ter um amor, mas isso não foi feito para mim. O amor não é coisa que se ache por aí, distraidamente plantado em nossa frente. Acredito até, que não tive a honra de conhecê-lo. Muito se diz sobre essa entidade. Sim, algo que não se materialize não passa de um espectro, uma alucinação. Vejo loucuras sendo perpetradas em seu nome. Não creio na enxurrada de propaganda dirigida aos enamorados, não acredito nas marcas deixadas em almas tão sensíveis, em romantismo eivado de subjetividade. Senhor, dai-nos hoje a abstração imemorial de suas paixões. Náufrago de mim, vago a esmo em um mar tumultuoso.

Quando muito, vislumbro uma incapacidade de se ficar só. A eterna necessidade do outro. O homem da multidão. Uma criatura singular. Vivendo no meio do turbilhão recusa-se a estar só. Eu padeço de mal contrário. Não aceito estar vadiando de lá para cá. Ruas tortuosas, gente... Tudo isso me parece melancólico demais, me aborrece e sinto engulhos. Essa terra foi um achado. Perdida no meio do nada me reconforta. Meu único elo com o burburinho humano é a antena, lá na lonjura. Náufrago de mim, vago a esmo em um rio corrente.

Faz vinte anos que a única pessoa que vejo é o entregador de meus pedidos, que não é lá muita coisa, só o que não consigo produzir. Infelizmente ainda necessito do mundo para algumas coisas. Na vilazinha mais próxima, cerca de 50 léguas, me chamam de velho maluco. Talvez eu seja. Pense um pouco: qual a razão pela qual alguém se enterra vivo? Uma ânsia de solidão, um atroz sentimento de não pertencimento? Não faço a mínima idéia. O fato é que vim e fiquei. Constato que não possuo mais aquele olhar opaco, meus gestos não denotam mais uma humildade abjeta e não me vejo desolado, inexpressivo. Já não tão náufrago, vago firme em águas mansas.

O avanço dos anos... vou suportando estoicamente, até melhorei de saúde. Nunca mais tive dores no corpo. Tenho os livros fundamentais, na verdade, acabei descobrindo que a gente lê poucos livros. O essencial cabe em uma estante e só releio, sempre a mesma meia dúzia. Acho que a urbe nunca me comportou, foi um desvario do destino. Não volto mais. Apenas lamento não ter me despedido de parcas pessoas, pouquíssimas mesmo. Já em terra firme, semeio brisa.

Fim.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Ligeireza do Felino

Sonho com o dia em que teremos o renascimento dos primitivos, dos românticos, dos artistas da bola. Desencantar o espírito livre do felino negro, da criação imprevista, do toque sutil desconcertando meio time adversário. O esporte bretão em terras de pindorama perdeu o encanto, o canto e o violão. Logo ele, que em um genial lance de apropriação, tornou o ludopédio o mais brasileiro dos esportes. Minha única leitora poderá arguir, aproveitando mais uma reforma na língua oficial, que os tempos eram outros, outros carnavais e outros Angenores. Mas sempre fica uma pontinha de nostalgia.

Enquanto Braguinha anunciava ao mundo que tínhamos bananas, o escrete brasileiro, futuro canarinho, abria o pano do espetáculo que se anunciava ao mundo. Nascia o futebol arte. Aquele feito de lampejos impensáveis, geniais e torturantes, para o inimigo, lógico. No ano de 1938, em campos franceses, a seleção é recebida com desdém por uma Europa prestes a entrar em guerra e ciosa de sua superioridade racial. Mandamos para o velho mundo dois representantes da raça, afinal a superioridade nos esportes refletia a supremacia: o defensor e o diamante negros. Domingos da Guia, teríamos outro da Guia, e Leônidas da Silva mostraram ao tapete verde a canção malemolente do divino Cartola.

Com a argúcia da malandragem velada por bordões cheios de malícia, de uma ligeireza felina, feita de inopinos nossa alma lasciva reclama o drible curto e dispensa os espartilhos vitorianos. Pela centésima vez, pergunto-me como, no início, com Lazaroni, quando a brisa ainda era violentamente açoitada pelos fantasistas da redonda, deixamos a arte para nos contentar com a eficiência do mercado. Bem sei que meu único leitor deitado na rede torcerá o nariz para esse textículo desbragadamente saudosista e ufanista, mas o que fazer se ando carente de samba e de futebol.

O desenvolvimento racional, previsto, matemático do conjunto pertence ao continente da cultura e da civilização. Nós, os primitivos, circulamos em outra esfera. Transitamos em uma região onde os meios naturais, que são grandes, dispensam o método, a direção e a educação. Passes curtos e no chão revelam nossa preguiça, aumentam nossas saúvas, também loucas correndo atrás da pelota.

Assim o berço da civilização conhecia a criança da criação e os bugres dos tristes trópicos se deleitavam com uma época de ouro. Surfava-se nas ondas do rádio. Longos tubos do sambista lírico nos diziam que o baile encerrou. Nossa canção deu um lançamento digno de Gérson e fez definitivamente uma linda linha de passe, daquelas onde uma pintura não passa de uma tosca garatuja, não tanajura.

Se em 38 tivemos nossa noite de gala, vinte depois nosso candango, na copa seguinte o oscar, em 70 a coroação definitiva, em 82 os aplausos embriagados, mesmo com a derrota para a eficiência, em 90 tivemos nossa noite dos cristais. Já com Parreira, como demonstra a obra pictórica do mesmo, em 94, nos despimos da fantasia e nos travestimos com uma máscara para um carnaval que não era nosso. A final da ciência foi para a penalidade máxima. Finalmente os ímpios entenderam a matemática e nos sagramos tetra, sem nenhum brilho e com uma caricatura. Parafraseando nosso comentarista cego: os idiotas da objetividade venceram.

O resto... bem, o resto é um rosto pálido. Uma quarta-feira cinzenta, não de cinzas.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Simião Fortunato

Na manhã quase sem luz Simião Fortunato percorria um longo trajeto solitário. Lembrava-se de como acordara todos esses anos feito sonâmbulo, flanando pela vida tal qual a queda calma de um folha seca. Quando acordou, Simião Fortunato notou a longa passagem do tempo, descolorindo o que acabara de ser pintado. No momento não soube perceber o significante de símbolos nunca antes vistos. Ao se olhar no espelho viu um rosto aparentemente manso, sempre com uma pontinha de sorriso. "Adoro você por causa de seu sorriso". As últimas palavras de sua mulher.

Lembrou-se da noite em que conheceu Maia Guacamayal. Ficara deslumbrado. Dando a maior bandeira de sua adolescência desbundada. Maia, embora não fosse sequer parecida, conseguiu fazer com que Simião Fortunato despencasse de sua arrogância e a desejasse como sempre desejou Natassia Kinski, ou seria Tess? Nunca soube direito a distinção. A melhor atuação de Klaus Kinski foi na cama, gerando aquele monumento que é sua filha, costumava dizer.

Maia não escondeu seu interesse, sua curiosidade em penetrar uma fortaleza aparentando palácios. Simião fortunato, tranquilo, estudava sua atitude dissimulada, encenando a farsa de não dar muita pelota ao fato de ter Maia ao seu lado. Olhava com indiferença a rotina do bar. Aquela vagabunda ali já comi, pensou com rancor quando viu Edwirgens passando agarrada com um jornalista que Simião Fortunato conhecia de vista. Isto fora há muito tempo! Para ser mais exato faz trinta anos. Envelheceu muito. E o que fez nestes quarenta e sete anos? Quatro filhos, como sempre desejou, um emprego ordinário que lhe rendia um salário extremamente generoso, um reconhecimento que lhe parecia excessivo e uma viuvez nunca abalada.

Todos seus amores, inclusive o curto casamento, um filho para cada ano, foram conquistados através de artíficios. É certo que artimanhas só dizem que ela é imbecil e você idiota. Assim seu passado começou a se acomodar. Uma narrativa linear, com regras elementares, personagem principal, secundários, sujeito, verbo, complemento, um mistério estrutural, enfim, uma escrita seguindo as regras da arte

Com Maia não foi diferente. Mas algo começou a se mover dentro, como uma esfinge com fígado de Prometeu e o seu estômago dóia terrivelmente. Assim se consumou seu casamento com Maia. Mas isso é para depois.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O Vinho e a Dança

Nos olhos dela ele redescobriu o mundo. Estava ali sua redenção, sua volta à vida. Com ela o compasso deixava de ser quadrado, se tornava mágico. Em sua companhia sentia uma malemolência rítmica que o transportava para uma dança antiga, daquelas onde o rodopio era puro prazer. De certa maneira sentiu novamente a sensação de se atirar na vida, sem pudor de ser feliz, embora com centenas, milhares de receios. Durante anos sua vida fora uma sucessão de atos prevísiveis e estivera submetido de tal modo à vida familiar que se esquecera do ritmo frenético das ruas. Havia esquecido de si. Não passava de uma pálida imagem dos outros.De um momento para outro se viu desamparado, perdido em sua estupidez pretensiosa que o havia jogado inapelavelmente nos braços da solidão.

Ela apareceu e agora, enquanto caminhava pelas quadras, só pensava em beijá-la. Sentiu também que tudo que fizesse seria bom. Ouviu com olhos de ontem o canto de uma sabiá laranjeira. Viu a fêmea no chão com dois filhotes e instintivamente procurou pelo macho. Estava no alto de um galho seco assuntando a área. O horizonte, mesmo encoberto por uma névoa seca feita de poeira e fumaça, se mostrou límpido. Tudo envolto em uma doce contemplação, um alheamento inebriante, como se tivesse fumado unzinho.

Mas a fumaça se dissolveu em uma vergonha esmagadora. Lembrou-se do velho padre de sua catequese: você é um bom garoto, humilde, andando longe das tentações, evitando as más companhias. "Puta que pariu. Isso é hora para me lembrar daquele velho? Não, o mundo é outro. Procurei ser um bom garoto e só me fudi". Ou não era nítida a lembrança das porradas que tomou seguindo os preceitos dos mandamentos? "A bondade só se reconhece na base da paulada, do chicote. Mas tudo isso mudou e não vou ficar lamentando ou mesmo me indispondo com coisas inúteis, que só servem para me fuder". Concluiu enfáticamente.

Ele ainda não sabia que para ela era apenas uma aventura regada a sexo. Você me ama? A pergunta saiu de sopetão e ficou perdida no ar. Ela nunca respondia, mas havia algo no beijo dela que o levava a crer em uma resposta positiva. Havia no jeito dela olhar, com um certo ar de Capitu da Prais da Glória, um amor estranho, inseguro, mas isto lhe bastava e não seria ele a "ficar como uma flor lívida e solitária". Isso já havia sido estabelecido anteriormente.

O Astro Rei ia descendo sobre a cidade que se oferecia, ao fundo, como uma fera na selva espreitando, com suas garras, o destino, quando suas hostes guerreiras se postaram para a defesa. O negócio dela era o velho mundo na veia. Você precisa ir para a Europa, ela disse uma vez. Ele indefeso, sozinho, a sentiu escapar por seus dedos. Ela nem percebeu uma lágrima escorrendo. Ela se afastava. Nada mais restava a ele senão pensar no vasto mundo, se ele se chamasse Raimundo e fosse barão, bem mais que uma rima seria uma solução.

O principal era a certeza de que ela nunca lhe pertencera. Verbo que, em última hipótese, era a sentença escancarada de sua espada de Demócrito. Fazendo um enorme esforço reuniu o que lhe restava de razão para ordenar uma retirada célere, para, assim, salvar a fortaleza inexpugnável de sua posição. Resolução que lhe recobrou o ânimo. Muito embora às vezes a tivesse sob domínio, subjugada pelo prazer não seria bom correr o risco de uma derrota. Não foi ele que, afinal, decretou o fim da bondade?

De resto, apenas a intuição que não pode ser confirmada: se ele soubesse esperar com humildade e contrição, talvez ela lhe viesse. É... de nada adiantaram as aulas do velho padre. No fundo ele não passa de um cristão.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Servo da Morte.

Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria

atacar-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e

traidores de vós mesmos?

Etiene de La Boitié.

Discurso da Servidão Voluntária


 

Há várias espécies de coitadinhos. Todas me causam náuseas. No entanto, há um tipo pernicioso: o coitadinho bonzinho. Essa eterna vítima vive em uma servidão voluntária que me causa repugnância. Apenas um capacho em uma porta na qual ninguém entrará. Em sua cegueira há uma luz branca ofuscando todo desejo, há um negrume iluminando as vilanias que o tornam feliz. Com uma auto-estima baixa o pobre diabo só é feliz se alguém o achincalha.

Ao instituir uma só rainha, ou rei, o infortúnio do sujeito reside no fato de se colocar à mercê de uma senhora, ou senhor, a qual nunca será vedada a tirania. Não tento compreender, isso foge de minha alçada, mas gostaria de entender como suportar quem lhe prejudica? Enfeitiçado pelo pensamento único o servo se prosta miseralvelmente diante de seu verdugo e pede perdão. A natureza desse indíviduo é invariavelmente no sentido de diminuir seu bem-estar para aumentar o da amada.

Sua falta de fibra não permitiria jamais que fosse pegar na corda do Círio de Nazaré. Note-se que, geralmente, esse ser é dúbio. Sustentar a força do mar, como os gregos, ou mesmo, a força da corda, como os fiéis nortistas, lhe é sufocante, pois o sisal é sem cio. Geralmente é dotado de uma bondade quase ilimitada, prefere não discutir, pois lhe é simpática a idéia de que o interlocutor sempre tenha razão. Dessa maneira se furta a qualquer polêmica e abraça opiniões discutíveis. A aquiescência é sua quinta essência.

E finalmente, resta dizer uma única coisa, a liberdade lhe é estranha e confusa. Corrompidos pela obstinada vontade de servir são presas fáceis dessa doença mortal: a necessidade de uma gaiola.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Último gesto

Ele gostava de abusar do lirismo. Frases derramando subjetividade era com ele mesmo. Não se fiava nessas novidades truncadas, fragmentadas e obscuras. Para sua pena, ainda a usa, a clareza da estória bem contada era o que contava. No fundo era um grande romântico. Sempre achei interessante sua teoria de que escritor era quem escrevia livros e não quem publicava. Por outro lado, sempre me assaltou a desconfiança de uma justificativa barata, uma desculpa de escritor fracassado. Não largava seu bloquinho de anotações.Rabiscando ditos, tecendo lacrimosas falas ia de pito em pito.

Li seu primeiro livro, "Jardins do Enlevo", em uma noite chuvosa e fria. Um caderno tosco e amarfanhado contando as agruras de um casal até seu desenlace feliz, bem no estilo novela da rede globo. Devo dizer, embora não me agrade, que sua escrita é rigorosa, poucos erros e é evidente um bom domínio da ferramenta. Bem ao contrário de certos magos charlatões. Prefiro uma literatura honesta e bem cuidada à uma cheia de promessas, receitas para o cidadão feliz, íntegro e com atentados à lingua materna.

Por falar nisso, as garatujas do mago falastrão apontaram para o ministro da cultura, Juca Ferreira. Irritado o escrevinhador, entre irônico e sarcástico, pediu de volta o convite ao saber que o sucessor de Gil, segundo o parceiro do maluco beleza, seu amigo íntimo, não iria comparecer na feira alemã que vai homenageá-lo. Com a marca de cem milhões de livros vendidos pelo mundo, diz que "já não me interessa mais sua presença e de seus convidados. Quero apenas que me devolva o convite; será entregue ao primeiro mendigo ou desempregado que passar na porta". Palmas para o alquimista. Ao menos a ralé comerá. Atente, minha única leitora, para o tom desdenhoso e preconceituoso embutido na assertiva. A comparação é simbólica e se pode ver claramente o desdém do bicho grilo com o bicho rato.

Voltemos ao nosso herói. Seu passado era uma incógnita e eu não ousava tocar no assunto, pois ele tinha horror do passado. Só fui entender mais tarde a razão de sua fuga. Havia abandonado sua mulher e único filho há mais de trinta anos. Em nome da liberdade, do aqui e agora, rompeu laços e não deu mais notícias. Um pouco antes de sua morte seu filho o achou. Tudo que fora minuciosamente mascarado aflorou como um vulcão em erupção. Creio até que isso tenha contribuido para seu passamento.

O último gesto fez honra ao que fora aos meus olhos. Alegria desbragada, descompromisso com tudo, apenas o lápis frenético anotando o olhar mais vulgar. Vivera como quis: solto como um passarinho. Não morreu como viveu.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Outra Carta.


 

Colinas do Oeste, 8 de outubro de 2008.

Meu caríssimo Gildo,

Estava discutindo com Maria as entrelinhas da Sibila, livro de uma escritora portuguesa chamada Agustina Bessa Luis e que eu detestei, quando sua carta me pegou de surpresa. Literalmente de calças na mão. Isso era lá hora de carteiro bater em sua porta? Sacanagem. Você sabe que as moças, ou musas, como queiras, que visitam esse tugúrio perdido no meio do nada são de outras artes, outras manhas. Deves ter percebido também que a feiticeira de meu interesse atende por outro nome. Desculpe-me a demora em responder, mas havia outras pelejas para o momento e você mais que ninguém sabe que jamais traio a confiança de meus companheiros de batalha.

Fiquei satisfeito ao ver que andas escrevendo. Mas que putaria é essa? Eu? Escrever prefácio? Ficou maluco meu irmão... você é sabedor de que não escrevo uma linha sequer. Aliás, responder sua carta está sendo mais que um martírio, é, verdadeiramente, uma tarefa de Sísifo. Minha escrita, depois dessa onda de cartão, não assina mais nem cheque, não manda mais cartão com flores, pois isso é besteira e perda de tempo. Já lhe detalhei minha teoria. Poesia? Nunca imaginei... Mas taí, acho que você é mais cronista que poeta e teria um futuro promissor em nosso balcão de negócios. Não foi à toa que o convidei para vir se juntar aos inescrupulosos.

É bem verdade que em nome de nossa velha amizade curtida em cerveja, mesas fétidas, mulheres, farras, futebol, viagens e vadiagens, botei a caraminhola para trabalhar. Como não saía nada e a garrrafa de whisky já estava pela metade, resolvi te escrever essa missiva para dizer que, não me leve a mal, declino do convite e passo a bola adiante. Sugiro o Perneta, além de gostar de seus escritos ele anda com um cartaz danado com o manda-chuva. Não me leve a mal novamente, mas sabe como é... no nosso ramo a vaselinagem come solta.

Percebo que me desculpo em demasia. Não lembro de ter lhe pedido uma desculpa sequer em nossa longa convivência, agora em um único parágrafo me sai duas vezes. É, meu camarada, os tempos são bicudos e outros ares sopram. Há quanto tempo não nos vemos? Quinze anos, mais... Muita coisa mudou e já não sou mais aquele moleque que curtia a vida com a ânsia de um desbravador e muito menos o adulto tolo de nossos últimos encontros. Não lhe dei ouvidos e deu no que deu. Você fez bem em se mandar. Lembro muito bem do dia em que lhe deixei no aeroporto.

    - Meu irmão, meu brother não cometa essa loucura. Vamos nessa, lá está nosso sonho e você sabe muito bem que a Michelle tá babando por você.

    - Não dá. Tenho que ficar. Muita gente depende de mim.

    - Que nada, manda todo mundo prá puta que o pariu.

    - Não posso.

    - Então é isso. Até mais, um dia a gente se vê. Não é você que vive dizendo que até as pedras se encontram? Você é um brother de fé.

    - Valeu, você também é meu irmão and have a nice trip, vai treinando viu sua anta.

Lembra? Seu inglês era uma merda, agora tá até escrevendo, publicando.

Meu erro. De nada valeu a atenção e muito cara ficou minha solidão.

Abração e tenho certeza do sucesso do livro.

K.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Tabaco

Tive como senhorias um trio de senhoras altamente sintonizadas com as coisas do mundo contemporâneo. D. Tertúlia tinha lá seus quase oitenta, D. Maricotinha uns setenta e pouco e a ninfetinha, como se autodenominava D. Emerenciana, algo por volta de sessenta e pouco. Viviam me dizendo: "Meu filho o santo das causas perdidas já não é santo Expedito, é a internet". Enquanto fui hóspede era elas quem arrumavam essa porra toda vez que dava pau. Fui até sacaneado pela ninfentinha. "Essa gurizada hoje em dia é meio burrinha, não dá conta de um defeitinho besta desse".

Me davam notícias de tudo que rolava na rede. A onda do momento são os sites de relacionamento, mais acessados que os de putaria, fui informado por D. Maricotinha. As véias falavam palavrão prá caralho. De certa maneira me tornei confidente dessas aventureiras radicais. Explico e complico: eram gamadas, como se dizia antigamente, por esportes radicais. D. Tertúlia foi a primeira. Muito antes de agora, empacou idéia em descer o Tororó de rapel. Foi o início para todas. Uma fazendo, a outra nem pestanejava em aderir, mesmo ao mais absurdo projeto. Não havia um só desses esportes que as velhinhas não haviam experimentado. As danadas até pularam de pára-quedas.

As representantes da melhor idade, olha eu sendo políticamente correto, minha única leitora há de notar a incongruência, acabaram por simpatizar comigo e passaram a prodigalizar-me com mimos, pedindo opiniões, dando conselhos e brigando comigo por causa do meu desleixo ao vestir-me. Enfim, se tornaram minha segunda mãe por inesquecíveis quatro anos. O tempo de minha permanência naquela cidade borboleta. Elas me foram indicada por meu coordenador. "Tenho certeza absoluta que vocês vão se dar bem". Fato consumado.

Uma vez me levaram a Lençóis, cidade na chapada diamantina, para uma caminhada leve. Quase me mataram. Prá variar fui alvo das chacotas de ninfetinha. "Aposto que esse moleque não aguenta nem dar uma. Na nossa época os homens eram machos, não essa cambada de frouxo". Ria espalhando uma alegria imensa ao mesmo tempo em que exibia, não sem vaidade, os dentes alvos e intactos. Maricotinha, como sempre acontecia nessas ocasiões, saia em minha defesa. "Coitadinho, é aquela porra de-ar condicionado da universidade. Tá precisando de tomar um sol e dar uma trepadinha né, meu filho? Fica só estudando, dá nisso."

Confesso que valeu a pena. Depois de mais de quatro horas caminhando por trilhas precárias chegamos em umas piscinas subterrâneas que me enlouqueceram de puro êxtase. Ainda fiquei sabendo que demoramos por minha causa. Foi nesse dia que as diabas me aplicaram. Na maior naturalidade apertaram um baseado, ou melhor, uma vela. "É bom para relaxar e não há lugar mais apropriado prá fumar unzinho que no meio do mato", falou D. Tertúlia, a mais ajuizada do trio. Devido ao meu estado, embevecido é o mínimo que posso dizer, nem percebi que estava fumando maconha. Depois de ter passado a adolescência sem enconstar em um cigarro sequer, eis-me iniciado nos assuntos do tabaco via diamba.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Milena

Ela morreu ontem. Nem sei ao certo como foi, mas o fato é que chegou a hora de sua decomposição. Esvaneceu no ar feito fumaça de cigarro, uma tênue névoa ondulando sensualmente diante do fim, não haveria de ser de outra maneira. Sua morte foi natural, correnteza mansa arrastando o poente solitário. Milena tinha um olhar estranho. Dissimulado e curioso percorria friamente toda sua espinha, como quem procura um pormenor revelador, uma fresta por onde penetrar seu poder malévolo. Gostava de ver os homens rastejarem aos seus pés. Todo seu prazer era servilizar seus adoradores. Feito isso, abandonava-os inapelavelmente.

Creio ter sido o único a não sucumbir aos seus encantos, que eram tantos. Daí seu eterno jogo comigo. Eu, na verdade, não passava de um doce desconhecido, atiçando desejos, fantasiando o não possuido e, sobretudo, um golpe mortal em sua vaidade de fêmea devoradora, de rainha ofendida por um súdito. Só eu sei como não foi fácil resistir aos olhares lânguidos dirigidos acintosamente para mim. Ficava até meio desconcertado. Desde o início percebi que eu não poderia me envolver com ela. Seria meu fim. Algo sussurrava isso em meu ouvido.

Logo que a conheci, por volta de meus dezesete anos, revelou-se sua faceta mais cruel, isto me marcou e foi minha salvação. Estávamos embaixo do bloco, uns quinze adolescentes entre homens e mulheres, nessa época não havia essa divisão toda entre meninos e meninas, conversando potoca quando ela surgiu do nada, imponente em sua beleza, senhora altiva da cena. Fiquei simplesmente embasbacado. Nunca havia visto algo tão belo. Desnecessário dizer que ela notou o pateta aparvalhado, o que só fez aumentar meu constrangimento e me irritou profundamente. Com o olhar já descrito me fitou todo e disse, melhor, ordenou: "Acabei de me mudar e não conheço ninguém, me leva à padaria. Não sei onde fica". Não acreditei, estremeci todo e tudo rodopiou.

Evidentemente acompanhei a moça depois de recomposto do susto. Estupidificado fui feito um carneirinho rumo ao abate. Hoje penso que essa ida ao portuga da comercial foi minha redenção. Explico melhor. Sempre tive uma sensibilidade excessiva. Desde criança que sofro horrores com perdas, sobretudo as sentimentais e fui, ao longo do tempo, conforme fui tomando consciência de seu poder destrutivo, criando aparatos de absorção que me protegiam. Com ela tive a certeza de que sairia perdedor. Uma convicção inexplicável e contraditória, pois sempre fomos muito íntimos. Mas vamos aos fatos.

Após ela ter comprado balas e cigarros, a moça era moderna, mas nem tanto... as balas abafavam o bafo perante os pais, sugeri irmos ao parque. Fomos. Balançamos, brincanos na roda, conversamos, vimos a lua e a beijei como nunca havia beijado ninguém. Ficamos suspensos em um tempo onde nada importa, um fiapo de eternidade que só aos adolescentes é permitido. Estava eu perdidamente envolto em sua teia até que o Febo dos cabelos de ouro deu o ar de sua graça. No dia seguinte, novamente embaixo do bloco, esperava ansiosamente sua chegada quando surgiu seus olhos luminosos que logo se tornaram trevas. Sem mais nem menos sentou ao lado do alemão, cara alto, de olho azul, bastante desbotado, diga-se de passagem, com um jeitão de galã canastrão e todo cioso de si. Parecia um pavão. Um frêmito percorreu meus lábios e não pude ver mais nada. Nem ao menos se dignou a um cumprimento. Entendi ali que eu nunca poderia ter nada com ela, seria minha ruína.

Anos depois descobrimos que nossos desejos sempre foram os mesmos. Mas já era tarde e eu estava, como desde o início, ocupado em construir um castelo onde não havia lugar para rainhas.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Ária de Kólia

Geralmente não gosto de personagens que revelem algo de mim, mas com Kólia Krasótkin foi diferente. Adianto que não gostar de personagens parecidas comigo não significa receio de me reconhecer, mas simplesmente crer que eu não seja uma pessoa interessante, digna sequer de uma nota no obituário. Ao me perceber na arrogância petulante desse moleque astucioso, agradei-me profundamente de sua representação se levando a sério, em demasia eu diria. Noto como meu festim adolescente seguiu trilhas parecidas e percebo, meio aturdido, como ainda traço um compasso similar.

Não que eu ainda queira educar ou liderar alguém, acho que isso está muito além de minhas possibilidades, mas as atitudes de déspota esclarecido ainda charfundam em máximas proferidas com grande sapiência, com enfáticas sublinhações e coisas que a gente não entende nada. Assim como Kólia, permaneço com um amor-próprio egoísta impedindo que eu me desvencilhe do despotismo. É como a história do alemão, no mesmo trecho, jogando em nossa cara colegial os "conhecimentos nulos e uma presunção sem limites". A diferença é que hoje, aos oitenta anos, posso me dar ao luxo de não entender absolutamente nada e berrar aos quantro cantos que li e compreendi Voltaire e Bielínski. Já não sou um menino que ouviu alguém dizer. Aos reticentes provo com minha memória.

No despertar da adolescência somos poderosos, trazemos todas soluções e não nos defrontamos com patranhas, pois elas não existem. Além do que, o ridículo é uma pálida mancha que não nos faz sombra. Aliócha tinha razão: o tempo exerce grande influência nas idéias e só ele, nada mais, dota-as de personalidade, de palavras. A frivolidade é nossa companheira e tudo se resume ao desenlace de mais um lance de dados. Andamos de braços dados com o acaso. Nossas loucas aventuras são passaportes para a leviandade e o pedantismo. No entanto, são, também, o vigor, o esteio da velhice, essa ingrata senhora que vai nos subtraindo aos poucos o desejo de correr livre, feito cavalo chucro largado na campina.

Hoje meus olhos possuem a reflexão soturna da noite, uma certeza calma e silenciosa, mas inflexível e cua rota não se desvia do distrate com a vida. As peripécias de outrora são apenas fogos iluminando uma janela escura da lembrança. O palco de meus golpes está sem luz, minha reputação de maluco consolidada, minhas espertezas findas e só resta uma, de negro, na platéia. Mas não é minha única leitora. A cortina se fecha.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Espólio

Eu, embora afetado por um ar de superioridade, sou um bom sujeito. Não dissimulo meus sentimentos e não me escondo na facilidade da hipocrisia. Não carrego culpas intransponíveis, apenas os dissabores diários de uma existência fadada a conviver. Solidão não é minha praia. Invertendo o dito comum, eu diria que é melhor estar mal acompanhado que só. Cabeça vazia é a morada do tinhoso. Só ocupando-a é que não dou trela para a tentação. E nada melhor que a confusão das ruas para distraí-la. Acredito, mais uma vez o senso comum orientando minha bússola, em minha generosidade ao perceber como as crianças gostam de mim. Não lembro de uma sequer que não tenha vindo em meu colo e aberto aquele sorriso que só um bebê pode ter.

Conheço sobretudo meus limites. Sei a medida exata do momento de se deter o tempo, as ações e a palavra. Essa última é cruel, pois engendra monstros terríveis. Jamais ultrapassei a fronteira além da qual a vivacidade se torna intolerável. No entanto, desde priscas eras, estou sempre pronto para travessuras, quando se me apresenta uma oportunidade de bancar o malicioso, ou mesmo chamar atenção, não a perco. Cheio de amor-próprio, sempre soube ganhar a confiança de meus pares, mesmo que para isso eu tenha me valido de subterfúgios ingênuos.

Para muitos, sobretudo para as várias namoradas que tive, acho até que perdi muitas delas em função desse meu proceder, não passo de um insensível, frio como os rios do cerrado. Pode parecer contraditório eu não gostar de efusões, já que afirmei lá em cima não disfarçar minha emoção. Mas o fato é que elas me aborrecem e quanto mais me exigem demonstrações eloqüentes de carinho, mais me furto à elas. Não que fosse uma atitude deliberada, provinha antes de meu caráter que de meu desejo. Eles se enganam; eu sempre os amei, somente não gosto de expansões exageradas. Sempre me pareceram teatrais demais.

Contudo, um acontecimento inesperado fez com que eu mudasse completamente. De folgazão, apreciador de uma chalaça, tornei-me mais silencioso, pensativo e até um pouco taciturno. Minhas paixões, que nunca foram arrebatadoras, se tornaram excessivamente reclusas e operou-se um milagre: minhas travessuras desapareceram e surgiu um ser cruel, monstro cometendo diariamente as mesmas vilanias calorosamente abandonadas em promessas anteriores.

Absurdamente tornei-me presa do negado. Enveredei em um caminho onde eu era vítima fácil da puerilidade arrebatadora das paixões. Diante de mim desenrolava lentamente a película de minha servidão e nem percebi. Eu, que tinha aos meus pés a devoção servil dos amantes ternos, aqueles aos quais eu respondia aos seus gestos de ternura com frieza, noto que desenvolvo não sei que sensibilidade, sentimentalidade juvenil me arrastando implacavelmente rumo ao abismo.

Mas sou altivo e me corrijo a tempo. Não me submeto, bato-me orgulhosamente e não deixarei que minha alma sensível seja arrastada por essa ironia melévola. Não permitirei que semelhante palhaçada seja trágica. Para que o senhor veja de relance minha natureza é preciso que a mire como se fosse uma representação teatral, um número representando o fundo até onde os sentimentos podem descer.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Peça Melancólica

Acordou, como de costume, muito cedo. Bebeu água, limpou a gaiola do canário, foi ao quintal cuidar do cão, esse era o nome do cachorro, e foi tomar banho. Todos os dias o mesmo ritual, a mesma ladainha antiga, assim como a casa. As portas gastas conheciam minuciosamente todos caminhos percorrido pela família da qual ele era o último representante. As janelas envelhecidas sabiam de cor a saga daquelas pessoas brutas, calcinadas pelo sofrimento. Corações endurecidos por tormentas violentas. O velho tinha a respiração cansada, a fadiga dos anos solitários, pois ele não daria continuidade ao drama, não seria mais um servo da morte. Resolução tomada aos quinze anos e com uma fé inquebrantável.

Permaneceu casto, intocado. Só o simples pensamento de ter relações o estremecia. Não pelo ato em si, mas pela possibilidade de gerar outro ser. Possibilidade que o atormentava profundamente. Fora testemunha dos horrores familiares e abençoava sua solidão. Lhe bastavam o canário e o cão. O convívio com as pessoas no trabalho era um martírio que ele driblava dedicando extrema concentração em suas tarefas. No exercício de seu cargo, amanuense, tornava-se ainda mais grave, tendo uma idéia exagerada de seu papel. Isso o ajudava a esquecer a podridão humana que o cercava. Uma de suas certezas, dentre as várias, aliás cumpre dizer que o velho era a própria certeza, residia na crença de ser o ser humano uma praga perniciosa.

Era um homem meticuloso, escravo da ordem, dos hábitos assentados e não tolerava o mínimo deslize. Sabia confundir os interlocutores com uma certa perspicácia psicológica penetrando no íntimo mais escondido das pessoas. Não se pode dizer que era de todo ignorante, mas seu olhar, de um cinzento-opaco, bruto, de animal acuado, denunciava toda impossibilidade de amabilidades. Rogo todavia à minha única leitora que não se apresse em conclusões, como já disse aqui nesse espaço, minha narrativa não procura compreender. Não somente não tenho a intenção de clarificar, ou de ensombrecer, ou mesmo tornar flutuante, mas declaro solenemente que apenas conto o acontecido, fatos que a impaciência do narrador insiste em detalhar. Ao diabo os detalhes, como diria o pueril Mítia.

Da antiga ostentação de seus antepassados, se perdendo em tempos imemoriais, apenas a casa decaída, quase em ruínas. Retrato perfeito de sua trajetória. Agora um simples funcionário, ao fazer a barba, mirava seu rosto em um espelho quebrado. Pressentira um hálito frio em seu pescoço - que imagenzinha gasta e frívola - que o incomodou, mas não ligou muito, seus presságios sempre foram infundados. Estranhou ainda mais ao perceber o cão imóvel. Mesmo com a idade avançado o pastor não era de ficar quieto. Caminhou lentamente, sabedor do fim, em direção ao animal e prostou-se ao seu lado. Quando deu por si, ficou devaneando longos minutos, foi conferir o que já estava estampado em sua menste. O canário estava morto e ele próprio tombou ao lado da gaiola.

Com um risinho maroto a casa fustigava as janelas. Palmas para um fim melancólico de uma peça que não deixará lembranças.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Sensibilidade Petrificada

Sou a personificação exata do ser dominante. Carrego em mim todos defeitos da raça e não trago nenhuma de suas virtudes, se é que elas existem. Para que não me tomem como perscrutador da alma humana – deixo isso para o bruxo do cosme velho e o jogador russo – esclareço logo que falo de mim, não de ti e muitos menos do poupadordeporra, esse já não me suporta mais e, como já disse antes, sou um perdulário. Toda tolice humana encontra em mim residência fixa, faz uma morada onde a beleza é injuriada constantemente. Não há um resquício de sensibilidade sequer. Em seu largo quintal a demência fincou profundas raízes, escavou largos aluviões e me deixou apenas a terra arrasada, o rio seco e, mais uma vez, a beleza injuriada.

Diferentemente do bardo gaulês, minha cervelle étroite não foi herdada de meus antepassados. Creio até que meu avô deva dar pinotes no além ao ver a situação de seu neto. Mas não se fie nas aparências, minha única leitora. A fuga é a mesma. Só não me aventurei rumo continente negro. Preferi ficar próximo de minhas origens, mas com o mesmo sentimento de estar zombando da loucura. Já escancarei em crônica anterior, e eu já nem sei se sei de mim, minha incrível capacidade em destruir a possibilidade de qualquer felicidade ao mesmo tempo em que crio outra, um sopro de vida. Uma mistura louca de Ângela Prallini e o assassino de deus. Não por acaso perambulo nessas esferas: a magia e a ironia.

Deus está morto e esse textículo é um grito de ave de rapina. É a confissão de um ateu consciente de seu destino cada vez mais à margem da vida. A eternidade colada inexoravelmente em um segundo infernal, sem saida, sem esperança. Sentimentos pueris de um solitário rodeado de abismos, cercado de dores e, acima de tudo, pusilânime. Dou-me perfeitamente conta que se trata de uma mentira. Qual a razão de se colocar no plano literário o grito mesmo da vida? Por quê dar aparência de ficção à realidade? Seria conveniente a vida se travestir em literatura? Qual o sentido de vestirmos a realidade de fantasia? Do que estou falando?

Tantas especulações atormentando meus nervos fragéis, minha impotência. Sofro de maneira atroz, padeço em miragens, vago em pensamentos sem refúgio, em vapores de ópio envolvendo minha visão. Sempre injuriando a beleza. Jamais pensei em deitá-la em meu colo. Coisa meio infantilóide, de tio tarado. Mas sinto que respiro um ar com muita pressão, oprimindo minha razão de ser. O fato é que já não sou mais eu mesmo, meu eu autêntico, se é que há, está em coma. Não sou nada, careço de mim mesmo.

Estou cansado, espantosamente cansado. Com certeza minha única leitora também. Deitemos ponto nessa narrativa enfadonha, sem estrutura e enfermiça. Reflexo límpido de minha sensibilidade petrificada.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Vagau

Para Plínio Marcos.

O vagau chegou no muquifo todo jururu, mas nada disse. Entrou mudo e calado permaneceu. A nega, escolada por anos de praia, sacou que a parada era séria. Não tinha jeito, o malandro tava enrustido e nada faria com que falasse. Como o dito era da jogatina, ficou imanginando que o otário mais uma vez se fudeu na roda. A merda é que sempre sobrava prá ela e não raro fazia uma visita ao xadrez para livrar a cara do loque. Perguntar não adiantaria, o jeito era esperar, mas pelo andar da carruagem a treta não era a de costume, parecia haver algo mais no ar e barra pesada.

A mulher ficou cabreira e pelos caminhos esquisitos da cachola cavucou minhocas. Mais tarde, depois do desfecho, soube que a quizila era antiga. Tudo começou quando o Waldemar, um patrício metido a besta, deu com as fuças no rabo da Marinalva. O homem endoideceu, ficou vidrado no bagulho. Sim... bagulhão! A moça era conhecida na área como desmoralizadora do tesão. Uma vez o cabra se safou de uma justamente em função do dragão a tiracolo. Como a grana era curta os dois se meteram em um pedaço cavernoso prá mandar ver. Nas preliminares foram surpreendidos por uma rapaziada do mal. Limpeza geral. O padeiro, esqueci de dizer sua profissão e até creio ser desnecessário, foi logo dizendo:

- Meu gajo, tá certo. Só vou te pedir pra tu não tocares na morena.

- Ô portuga, vai tomar no cú. Não achei meu pau no lixo prá meter nessa mocréia.

Falou o Vagau. O fato é que ninguém tocou na baranga e o luso ficou achando que foi Deus. Como o portuga estava com os quatro pneus arriados era natural sua gratidão ao bom deus. Coisas desse mundão véio sem porteira. Mas deixemos isso de lado e vamos ao entrevero entre o Waldemar e o vagau. Acontece que o sarro tirado com o portuga o deixou puto nas calças. Marola à-toa virou tragédia. Apesar de otário, o portuga, além de ter amigos em uns puteiros escrotos, tinha a valentia dos trouxas. Ficou dias maquinando a presepada. O vagau esbarrou algumas vezes com o padeiro e nada disse, nem o gajo. Mas o olhar de além mar aterrorizou o malandro. Ficou sabendo por um dedo-duro que neguinho tava afim de apagar ele. O que o deixou nas tintas. A nega percebeu. Fazia um tempo que o homem dela tava acanhado. Quando estava assim é porque tava na maior roubada. Ela bem sabia que o vagau estava metido em muitos enguiços e fazia e acontecia no pedaço. Pressentido alguma coisa a nega encostou os caixotes na porta do mocó e foi dormir. Fez o que podia. Mas, não adiantou.

De madruga, uma rapaziada toda cheirada chegou na captura do vagau e, sem fazer a mínima cerimônia invadiram o barraco com os berros na mão. O vagou se encolheu na cama miserável e a nega se colocou diante dele. Reconheceu a curriola. Tudo vagabundo do puteiro da Maria Boa, rapaziada barra pesadíssima e sinal que a sujeira era grande. O portuga veio na frente e deu logo um tapão na orelha da nega que a estatelou no chão.

- Portuga, deixa comigo. Tem uma data que tô nas grimpas com esse filho-da-puta.

Falou o manda-chuva. E, sem mais delongas, deu no gatilho. O melado desceu no rosto do vagau. Foi falar com deus. O portuga, mesmo com o malandro já arrebitado, descarregou bala no corpo. E foi assim que na madrugada do dia vinte e três de dezembro de dois mil e oito abotoaram mais um malandro. É, como diz nosso cronista maldito, mulher de vagau sabe das coisas.


quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Paralelas

Expor o curso de meus pensamentos nunca foi minha pretensão. Nunca pensei ser o momento para se entrar em minha personagem; chegará a vez dela. Apenas relato causos miúdos, coisas rasteiras de uma mão inquieta, com uma agitação que se traduz em desejos estranhos e atormentados. Seria, aliás, uma temeridade eu assumir tal risco. Permaneço indiferente à minha sorte e confesso, não sem uma certa pontinha de desdém, que absolutamente não tenho o mínimo interesse pelo amanhã. Suportar a passagem do tempo já tem sido odioso.

Não gostaria de submeter minha única leitora aos segredos mais penosos dessa marionete sem direção, dessa vaga sensação de que a verdade não está nela, nem em ti e muito menos nesse que vos narra. Eis que vago na paisagem ardente da cidade, onde, justamente na véspera, na presença de meus chefes, mandei rasgar um texto inteiro. Desatinos de uma alma dilacerada por representações maliciosas. Só não perdi o trabalho porque rapidamente joguei uma conversa mole qualquer e apresentei, ao final do dia, um texto supostamente muito superior. Nisso sou craque: enrolar mané.

Sim, mas... Fique sabendo, meu Karmann-guia de leitores, que as tolices são fundamentais. Sem elas seríamos meros digitadores da comédia grotesca envolvendo a tragédia humana. Meu desígnio é contar-te o mais rápido possível a essência de uma lorota, é envolter-te em uma mansa conversinha que não procura compreender. Ouso mesmo supor que minha narrativa não passa de duas paralelas que jamais se encontrarão no infinito. Até penso que essa entativa de diálogo direto é rídicula e já bastante gasta. Posso ao menos me penitenciar, ao perceber seu sorrisinho maroto, de canto, como se encarnasse famoso quadro me dizendo: você é um mero contador de estória e não existe sem mim.

Acreditaria que hoje escrevi apenas para ter com quem conversar? Não! Definitivamente não estou zombando de ti e não penso que minha inapetência de vida tenha algo a ver com isso. É como aquela velha estória de amar certas pessoas sem saber por quê. Eu amo o vazio, no qual talvez nunca tenha acreditado, mas que venero por hábito, como fumar. Há três meses que vivo aqui e tenho notado como o autor me observa. Se vê em seus olhos várias expectativas, todas individualizadas. Seu semblante demonstra uma certa insegurança que não condiz com seus atos e gestos. Há algo irritadiço, áspero conduzindo suas ações envilecidas.

Meus parcos leitores, pergunto a mim mesmo: Quem é o narrador? A personagem? O autor? Defino assim: uma narrativa sem sofrer por não poder mais amar. Assim finalizo essa crônica mais que influenciada pelo contumaz jogador russo da alma humana.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Notícias Baratas.

Três notícias me chamaram atenção essa semana. A primeira foi a moça estadunidense leiloando sua piriquita virgem pela qual almeja abocanhar a bagatela de hum milhão de doláres, a segunda foi a imensa criatividade de um alemão ao solucionar o problema de sua manguaça, o que não passa de uma mera redundância: simplesmente cedia a mulher para o vizinho que, por sua vez, retribuia o favor na materialização divina de um engradado de cerveja. E, finalmente, a encenação da última peça de Nelson Rodrigues "A Serpente".

Os três eventos se comunicam em uma louca conversa de surdos. Vejamos:

A estudante Natalie Dylan, pseudônimo naturalmente, de vinte e dois anos, nascida em San Diego, Califórnia, afirma candidamente que vive em um mundo capitalista, precisa pagar o mestrado e conta com sua moeda de comercialização, a imaculada perseguida, para que tal sonho se concretize. Interessante que os lances serão dados, sem trocadalhos, por favor, em um bordel em Nevada, onde sua irmã também abocanha, literalmente, a grana acadêmica. Trata-se efetivamente de uma das sete gatinhas perdidas na terra do tio sam. Com graduação em estudos femininos, a moça em questão decreta enfaticamente o fim do descabaçamento no banco de trás do carro, segundo um especialista consultado.

Não que isso me cause estranheza, pois nos puteiros desse interior brasileiro isso é prática mais que comum e, vileza das vilezas, envolve crianças. O inusitado fica por conta do modus operandis e, digamos, vá lá, da idade da moça. Ainda há virgens com duas décadas de existência! Em Tehran... Ou será que a alma mais cândida ainda creia no hímem Californiano? O veículo usado foi nossa querida rede na qual me deito. Tempos globais.

Já o ariano não fez por menos: ao único lance dado a patroa foi alugada. Creio ser a consorte de nosso locatário uma baranga. Onde já se viu? Trocar a mulher por apenas uma caixa de cerveja? Acho, mesmo considerando que seja uma mocréa mor, que valeria no mínimo cinco caixas. Porra, o cara tá sacaneando o mercado. Eu, por exemplo, só empresto a patroa por no mínimo cem caixas. E olha que a véia já não ostenta a glória do passado. Apenas uma caixa? é demais... além de depreciar o produto caseiro a cerveja tá pela hora da morte. Há casos em que o sujeito até paga umas brahminhas pra você levar a madame. Nesses casos não aconselho. Geralmente você está negociando uma bomba armada e com efeito retardado.

Nosso renomado mestre, Nelson Rodrigues, nos brindou em 1978 com uma versão familiar e cristã do empréstimo sexual. Nessa tragédia carioca de um ato com fortes ares míticos, já o título nos remete ao simbólico mundo da tentação, duas irmãs, Guida e Lígia, são cúmplices em uma deliberada desobediência ao mandamento que nos rouba o paraíso da inocência. Ao comer a maçã, Lígia toma consciência da vida e da morte. "O que senti foi tudo – a vida e a morte. Agora posso viver e posso morrer". Nota isto: a fraude na qual acreditamos e é chamada de relacionamentos humanos, não é uma tragédia? E se se encontra, seja apemas uma única criatura que não compactue com isso, não é o suficiente para que se estabeleça a tragédia? Vejo que não acreditas nisso. Tá bom, deixo por menos, um drama.

É como uma estranha sensação de ansiedade indefinida e é isso que incomoda, não a sensação. Simplesmente o fato de você ser incapaz de determinar com exatidão o motivo de sua pertubação. É, também, a percepção que se instaura ao romper com tudo que o liga ao mundo e entrar em um novo caminho, desconhecido, sempre solitário, com muitas expectativas e poucas esperanças. A queda cristã é apenas um engano absurdo, aliás, a cultura cristã é um acúmulo de absurdos.