sábado, 29 de novembro de 2008

Inundação

Fazia cinco dias que chovia sem parar. A velha começou a se preocupar. Lembrava nitidamente da grande cheia de... foi no dia de seu casamento, andava com a memória fraca. "Tempos que já lá se vão. E essa chuva... parece a mesma. Naquela época morava mais embaixo, lá no sítio do pai". Filha única, Gabi, ao atingir os dezoitos anos, casara-se com Damião, e viera para cá sem que, na casa paterna,onde vivera todo esse tempo, houvesse uma imagem sequer para substituí-la. Com efeito, ao pai não havia sido concedida uma segunda prole, pois a esposa mesmo, só a tivera ao tempo justo de uma gravidez. Certamente minha única leitora ficaria satisfeita se eu apenas mencionasse a data, ou se era tarde, noite ou de manhã. Basta saber que foi um dia de um aguaçeiro danado. A água invadiu tudinho. Lembrou nitidamente como ficara triste no dia mais feliz de sua vida. De inopino se sentiu desolada com a direção que tomavam seus pensamentos. "E essa chuva... parece a mesma".

O velho se inquietava por seu lado. O rio não parava de subir, mas a água nunca tinha chegado até a casa, pensava ele apaziguando um pouco a apreenssão. Dessa vez a coisa tava mais brava, o céu abriu mil torneiras. Bem que ele já tinha pensado em construir outra casa no topo do vale. O pior é que a encosta não está com cara boa não. Pode ceder a qualquer momento. "E esse rio que não pára de crescer... parece que tomou fermento. Eh, aguão!...". Os baixios já estavam completamente inundados e o dilúvio não dava fim. "A enchente tá aumentando muito rápido e não estou gostando da enconsta, acho que teremos que ir". Falou quase imperceptivelmente. Olhou para a velha e a encontrou mirando o vale com um olhar distante, perdido, alheio e meio alucinado.

"Mulher, temos que ir". "As coisas estão prontas, eu já sabia", disse automaticamente. A chuva dera uma estiada o que facilitou a subida para o alto do vale. . "E se o riacho estiver muito cheio?", perguntou Gabi. "Já pensei nisso, vamos dar a volta pela cabeça do veado, andamos mais e não cruzamos o riacho que, com certeza, está cheio".

"Nunca vi isso em toda minha vida, nem no dia de nosso casamento", disse o velho. Gabi abriu um sorriso largo e silencioso e adiantou os passos. "Vamos logo velho preguiçoso, parece até que não conhece os caminhos de sua terra". E saiu lépida, com a brejeirice da juventude. Damião não entendeu nada e foi, fagueiro, atrás de seu raio de sol.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Pôr-do-sol

Minha única leitora não ignora que a troça comigo mesmo move esse parafuso. Por outro lado, leitor amigo, não é despropositado imaginar que escapo a mim mesmo. Nem eu, nem você, nem ela, niguém pode, exceto o transcorrer da cena, esclarecer essa relação estranha entre o autor, o narrador e o leitor. Porventura julgas que sou obrigado a escrever? Não está de todo errado, tampouco estais certo. Outrossim, você percebe que esse estado da alma, que vê no entardecer as minudências da vida, não passa de desavenças íntimas. Uma ponta de Iago nas convicções.

É bem provável que vocês tenham tido conflitos parecidos e, como meus leitores são só vocês dois, mínimas as tentativas de solução. Contudo, o mundo não é claro e obscura a narrativa. Meus pequenos olhos são ingênuos e vivem perscrutando a escuridão abafada, sem indícios de suavidade e sem o perfume das manhãs. Já encaro como normal a incompreensão nos olhares temerosos de meus vizinhos e não ligo a mínima para essas pessoas que lutam tenazmente para manter as aparências. Minha melacolia moral dispensa muletas e não admite Pilates. Lavar as mãos para a vida é o mesmo que confessar minha covardia e escancarar um sentimento de culpa que definitivamente não tenho.

Não serei eu a me submeter à uma vida com a qual nada tenho a ver. Já passei do tempo de flertes com pessoas que nada significam e minha repugnância, ao ver uma ferida da alma latejando, não passa de um gesto defensivo, uma bem arquitetada obra da razão. Quando, porém, o asco se vai, verifico que, afinal de contas, as coisas não são assim como o diabo pinta. Malgrado toda minha indisposição para com a vida, não me furto a vivê-la. Dessa maneira ainda alimento um desejo, ínfimo que seja, de fumar um cachimbo sentado na varanda, ao cair da tarde, e ver surgir por entre o crepúsculo uma noite radiosa depois de um dia melancólico.

Só que o destino é uma força real e maligna. A derrocada é inevitável e cavalga lépida, malogro após malogro, rumo ao baixio dos maus augúrios. No momento apenas cultivo o fracassado que todos testemunham em mim. Seria difícil dizer exatamente o que temo, mas me sinto como um equilibrista no gume da faca, pois vou tecendo minha inquietude interior brincando bem-humoradamente, como se o riso gostoso da exuberância infantil de minha face viesse do íntimo.

À hora do pôr-do-sol, outra vez tomado pela depressão, lágrimas vagarosas descem de minhas retinas e me volto novamente para a parede.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Outros Mares

O avião partiu pontualmente às três horas. A noite anterior havia sido mágica, suave, estrelada e repleta de relatos. Não me aborreci em nenhum momento, muito pelo contrário, foi lá que ouvi de uns lábios ressequidos, pele enrugada, pernas vacilantes e olhos ainda vivos a estória que se segue.

O dia amanhecera cinzento, o vento soprava curvando os coqueiros, chuva armada no horizonte e deixei o continente às escuras. "Assim como eu nesse avião. Esclareço que estou escrevendo nesse exato momento". Certamente cairia um temporal e eu não estaria presente para ver essa chuva de verão tão conhecida minha.

Ela estava linda. Seus olhos azuis resplandeciam de felicidade e eu me encantava com isso. Bastava vê-la feliz, rodopiando na pista e me lançando olhares lânguidos. Sabíamos muito bem que não nos veríamos mais. Inexplicavelmente eu sentia uma placidez, uma calma até certo ponto assustadora. Amanhã deixaria para trás a promessa de felicidade, desataria uma bela história de quinze anos e não me sentia nem um pouco preocupada com perdas. Era minha chance e éramos jovens. Eu fui chamada, não tentei nada. Mas ela... Nunca mais acharia alguém como ela, tinha certeza disso. O que se comprovou.

Durante trinta e cinco anos não tive notícias, apesar de minhas insistentes cartas. É moço... antes se escrevia cartas. Hoje não, só essas coisas curtas da rede. O moço não me leve a mal, mas não me dou com essas coisas eletrônicas. Sou de um tempo em que se lavava a própria roupa suja. Mas veja o senhor como o destino é irônico. Um belo dia compromissos profissionais me levaram direto de Paris para Brasília. Da cidade sabia apenas que era algo perdido no meio do nada. Realmente, quando cheguei a desolação era total. Muitos homens, poeira muita e uma precariedade de dar dó. Acho que era por volta de sessenta e dois ou três, não lembro bem.

Mas dela me lembro muito bem. Ao chegar ao ministério dei de cara com a secretária do ministro: Ela, linda como da última vez. Fiquei sem voz, apavorada. Ela, com o mesmo jeito infantil de nossa juventude, me abraçou, pediu notícias e, finalmente, me encaminhou para a reunião onde só havia uma mulher na mesa de negociação: eu. Tempos duros meu rapaz. Nenhuma palavra sobre minhas cartas. Durante toda reunião isso martelou minha cabeça. Estava dando motivo para os machistas, quase todos, taxarem as mulheres de incompetentes, pois eu estava meio longe, dispersa e alheia ao andamento das negociações. Resolutamente retomei a rédea de meus pensamentos e rapidamente fechei as discussões com bom saldo para todos. Não seria eu a dar argumentos para esses engomadinhos do terceiro mundo.

Minhas cartas foram um erro

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Alguns Mestres

Já muito falei, ou insinuei, ou citei alguns de meus mestres. Apresso a dizer de sua profusão, de maneira que são de vários feitios, tamanhos e situados em universos díspares. No entanto há três fascinantes. Os relatos de Borges, Kafka e James me são caríssimos, não só por haver uma certa unidade temática, mas pela maestria com que a pena desliza no papel. A angústia labiríntica de profundos conhecedores do ofício me embriaga.

Assim como Borges, procuro situar minha escrita na lonjura do tempo e do espaço onde a imaginação encontra a liberdade necessária. Não me atrevo sequer a aspirar ter a grandeza do ancião ancestral dos pampas. Como já disse em diversos escritos anteriores, não desejo compreender ou persuadir. Contento-me em distrair ou comover. O que me coloca ao menos próximo das Mil e Uma Noites, tão querida para o bardo hermano. Afinal, como diz nosso argentino, a literatura nada mais é que um sonho dirigido.

O leitor curioso e perspicaz perceberá certas incongruências de minhas narrativas. Outro dirá de minha monotonia; decididamente a mesmice é tema principal; um outro notará, ao contrário do portenho, um certo barroquismo, também haverá o leitor esperando o imprevisto, assim como o refratário às novidades nas regras da arte. Na realidade, leitores e atores são vários, há mil possibilidades escapando à observação do cronista mais sutil. Dir-se-ia, minha única leitora, que há aqui algo de inexprimido, de inacabado. Tem-se de novo a impressão de um enigma. Mas não há mistério, talvez a luz se faça. Não antecipemos. Eu poderia, enquanto espero, apresentar algumas considerações sobre minha narrativa.

Eventualmente, ou melhor, constantemente me sinto o agregado José Dias, um amante dos superlativos. Segundo o morador da Rua Mata-cavalos, voz que nos apresenta a personagem, o uso de superlativos só serve para alongar a falta de idéias. Mas é tempo de voltar aos três mestres anteriores e não colocar um outro. A verdade é que só vim a aprender escrever, se é que sei, com a leitura compulsiva de todos eles. Da mesma maneira que o bruxo, na literatura brasileira só há um e não é o retardado da contracultura, busquei nos vermes a minha resposta. Assim como eles não sei absolutamente nada dos textos, nem escolho o que escrevo, nem os amo ou detesto; apenas escrevo e nada mais arranquei das larvas. Ademais, admitir minha ignorância é deixar de ser ator para ser personagem, é o testemunho corrompido pelo narrador.

Relendo essas linhas pressinto, do mesmo modo que o cego portenho, que já não escreverei mais. "Mon siège est fait".

sábado, 22 de novembro de 2008

Passado Pesado

Fazia cinco anos que ele não a via. Foi uma separação traumática, porém silenciosa, sem um gemido e com urros estrondosos, nos íntimos. Nem sequer se falaram nessa meia década, apenas um último olhar restou daqueles anos. Lembrou nitidamente o dia em que tudo acabou. Parecia que alguém havia retirado um tapete sob seus pés. Tudo rodopiou e ele nunca entendera a razão do fim. Os três filhos choravam compulsivamente e ela contribuia com reclamações inúteis e bastante conhecidas. Só ele silencioso. Um vulcão prestes a vomitar toda sua fúria.

Agora ela ali, na sua frente, com a boca travada e olhar fixo no pai de seus filhos. Aturdido ele não conseguia articular balbucio algum, apenas o silêncio se aprofundando. Olhava com indiferença e um certo desprezo aquela mulher envelhecida, com um sorriso opaco e olhos esmaecidos. Sensação estranha devem ter sentido nossas personagens. De inopino se perguntou como pôde ter amado tanto aquela estranha. A olhava e via uma estrangeira, uma imagem da qual não se lembrava de ter visto.

Só que a memória é traiçoeira e implacável com os sentimentos, o coração o reino da incerteza e a razão uma única lança certeira. Em um minuto todo um passado esquecido no fundo mais escuro do porão se iluminou. Subitamente quinze anos deliberadamente apagados se revelaram límpidos. Toda cena se desenrolou em um piscar de olhos. Como era apegado aos filhos. Os passeios todo final de tarde. Iam olhando e identificando as árvores. Olha papai, pitanga. Mais na frente várias mangueiras. Tinha até dois pés de graviola, sem se falar no monte de sucupira, cajuzinho do cerrado, cagaita e tantas outras árvores, com ou sem frutos. Perdera tudo e tudo abandonou. Não, agora já não têm nem árvore nem passeios, e tudo por culpa minha. Agora já não têm sonhos. Ele era a desgraça; nada lhes dei, tudo lhes tirei. Obrigado mais uma vez mestre Fuentes.

Perguntou pelos filhos automaticamente, como um balconista se dirigindo ao cliente. Estavam bem e com saudades do pai. Explicou que esteve fora durante esse tempo. Nem uma notícia para seus filhos? Foi tudo muito rápido, passaporte, cartas de recomendação, arrumar lugar para deixar os livros, os quadros, os discos. Nada justifica sua falta de notícias. Parecia que tudo ia recomeçar. As cobranças, a tentativa de rédea curta, aporrinhação. Espere aí, já não somos mais casados. Estou falando de seus filhos e não de nós. Sou responsável pelas atitudes que tomo. Fiz o que achei que deveria ter feito. Foi excelente e, aliás, estou só de passagem. Volto amanhã e acho que nunca mais ponho os pés no Brasil novamente. Você sempre foi um egoísta mesmo, não vai nem ao menos ver seus filhos? Acho que não, eles não precisam de mim e eu não tenho família, sou só no mundo e assim me convém.

Dito isto, se afastou célere, sem olhar para trás, sem remorso e com um passado começando a se tornar pesado.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Sintomas

Estava a fim de escrever uma crônica engraçada, mas as idéias andam escassas. Do meu mundinho nada falo, já que sou uma pessoa bastante desinteressante. Eis o impasse, príncipe do Cerrado. O jeito é fazer o parafuso dar uma volta ao redor do quarto. Aproveitando-me desses três grandes escribas esmiuço a casca pendendo da parede. Como se fosse escamação de pele queimada pelo sol, lascas grandes procuram a gravidade de sua queda e trombetas anunciam que é hora de partir, de procurar outro canto, outra morada.

Mas a morada é em mim. O espaço apenas reflete o desleixo, a falta de sensibilidade e a ampla gaiola da servidão. Nada que revele a antiga reverência ao destino solto, sem rédeas, procurando a pradaria sem cercas. Corcel indômito fugindo das amarras, como já disse há muito tempo em um poema. Com uma ponta de desdém noto que muinto do que fui se perdeu em pouco tempo, em coisa de minutos.

E esse não sou eu. Surrupio da memória os dias em que guardava baganas embaixo de pedras, em buracos nas árvores, em cima do elevador, enfim, em várias quadras e lugares havia um reservatório para os momentos difíceis. Tamborilava o tempo em vastas camadas, em finas fatias de lassidão. Ali sim, a disposição para o embate, a luta diária do cavalo chucro dando pinotes em direção à lonjura. Hoje o palco é pequeno e a Cena Dramática vazia, sem representação e eu não sou Henry James, nem Shakespeare e muito menos Xavier de Maistre.

As grandes indagações, as controvérsias, o discernimento entre a ilusão e o real, sugerir o que se oculta por trás das palavras, construir narrativas labirínticas, a ficção e o texto, são coisas que desconheço. Não passo de um apontador, escrivão de repartição com cheiro de mofo. Eis ao que se resume minha escrita.

E minha metamorfose é simbólica! Toma o barco do desencanto, fenece em um instante e a terceira margem é um fantasma real. As coisas mais abomináveis de mim mesmo são apenas sintomas de meu mal-estar e doença, como me diz a volta do parafuso ao redor do quarto.

E a crônica engraçada não saiu.


 

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Ópio e Ócio

O políticamente correto, a ditadura da saúde, o antitabagismo, tudo isso me aborrece profundamente. Ter que ser o que eles querem, se comportar segundo um preceito preestabelecido, pautar seu cotidiano por regras nocivas ao bom viver me parece a mais absurda das bisbilhotices. Não as quero. Jamais farei isso com meu fígado. Água seria um choque insuportável, Quincas desavisado não me pega. Esse pessoal e suas perspectivas ligeiras não suporta a felicidade alheia regada a doses generosas do mais fino destilado escocês.

Imagine só, euzinho caminhando todo dia, perdendo um tempo precioso com ruminações de um coroa chato, solitário e mal-humorado. Só de pensar já fico cansado e agastado. Antes o folgazão da mesa, o cultivo da pilhéria se esvanecendo na fumaça do cachimbo, a refrescante bobagem fresca, molhada e sorvida, gota após gota. Não me queira mal, comportado leitor, apenas a desafinação nesse acorde perfeito. O pingo para manchar, a mácula necessária. Afinal, como já disse, não falo de mim, nem do narrador. Apenas a personagem em cena.

Atravessar o oceano Atlântico de avião tornou-se uma tarefa impossível para os fumantes de plantão. Ficar horas sem um traguinho, uma barrufadazinha, um tapinha sequer. Martírio total e absoluto. O pior de tudo é ter que aguentar o ar de reprovação de um contigente cada vez maior. O cara se sente perante um tribunal do Santo Ofício. Ovelha em oferenda. Para aumentar o tormento a turba ruge, arreganha seus dentes em franca hostilidade aos que ainda ousam acender um. Pelo direito irrefutável de se regular o nível de nicotina.

Os vícios são a prova inconteste do prazer humano. Desde priscas eras que há algum tipo de entorpecente nos grupos sociais. A variante está na relação desenvolvida. Uns incorporam os usos rituais, outros assumem uma postura coercitiva, algumas radicais e há, ainda, a liberação geral. Essa histéria é hipócrita e resume bem a miopia política do homem contemporâneo. Ao tomar a padronização como referência de uma política pública nego toda e qualquer diversidade, as diferenças, o diálogo. Não que eu queira ser arauto de algo, apenas o reconhecimento e o direito de minha cirrose cultivada por anos, de meu enfisema pulmonar de meu distúrbio neurológico.

Sim, só sendo louco para proferir tantas bobagens, deve estar pensando meu leitor de conduta irrepreensível. Só posso lamentar. Eu, de minha parte, vou vivendo assim, nos vapores do ópio e do ócio.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Cumpleaños

Antes de mais nada, senhor cavalheiro, lhe direi o seguinte: longos anos de preconceito nos ensinaram que podemos nos fiar somente em nossos cinco sentidos. A idéias florescem e murcham rapidamente, as recordações perdem-se, as esperanças nunca são realizadas, os sentimentos são inconstantes.

Carlos Fuentes – Terra Nostra.


 

O panamenho cosmopolita naturalizado mexicano faz oitenta anos hoje. Toda geração hispano-americana que ganhou o mundo com o chamado "realismo fantástico" a partir dos anos cincoenta foi fundamental em minha formação literária. Primeiro Borges e seus duplos labirintos me encantaram. Depois vieram muitos outros: Sarduy, Carpentier, Bioy Casares, Lezama Lima, Cabrera Infante, Paz, Juan Rulfo e o aniversariante Carlos Fuentes foi um deles. Com sua atmosfera insólita de lendas, sonhos e História o autor é tão realista que a complexidade do drama humano se despreende da razão e se torna puro fantasma, magia em seu estado mais bruto.
É provável que o equivocado termo realismo fantástico tenha encontrado aqui seu berço. Não simplifiquemos, senhor cavalheiro.

A árdua batalha de usurpadores é mera revelação do que não foi dito. Longos anos de preconceitos em nossa também longa história feita de silêncio, retórica e cumplicidades. Ao desvendar o novo mundo o escriba aciona o teatro da memória, da gente da selva e aos pés do senhor recusa a racionalidade do velho mundo. Sendo assim a América é mera miragem, fantasma arrastando seus grilhões, até porque a representação da realidade nada mais é que os cinco sentidos nos dando a única prova segura de nossa existência. Somente os sentidos podem nos dotar de identidade.

Entre a História e a ficção, a lenda. Sei que, depois de toda essa pretensa erudição, o senhor deve estar se perguntando quais as novidades em tudo isso. Por favor não me julgue com indulgência, não a mereço e a repasso para os humildes. Reconheço que trago notícias requentadas, mas não vamos brigar em dia tão nobre, já basta nossa guerra íntima. Quanto a mim, tenho cá com meus botões que não passo de um tolo pretensioso. Não creio poder sair por aí dizendo o que acho do que não conheço. Aliás, não perdi nada para ficar achando algo.

Fuentes furta cor e sempre o mesmo. Sempre o mesmo camaleão errante na temática obsessiva explorando os limites da linguagem. As sensações mais diretas são fundamentais nessa narrativa do corpo, dos sentidos. Não por acaso o erotismo ocupa lugar nobre no universo poético de Fuentes. Como bem observado por outro mexicano, em Fuentes e Bioy Casares os fantasmas não são menos reais que o corpo. Dessa maneira a identidade se dispersa e eu me despeço desejando um FELIZ CUMPLEAÑOS, GEORGE.

domingo, 9 de novembro de 2008

O Dito Dito

Pretendo contar um pedaço da história de um cabra que conheci em um butiquim pé-sujo que costumava freqüentar. Nome incerto e com uma malemolência tupiniquim bastante temperada com a cultura universal. Deixemos logo de cara registrado que o referido era de uma erudição invejável. De Bach a Elomar, o sujeito não só conhecia tudo, como cantava com uma afinação de dar inveja a Fischer-Diskau, além disso, tocava um belo violão. Aqui se faz necessário abrir um pequeno comentário:

- Este violão foi a única coisa, fora a minha vil presença, que sobrou de minha inimiga. Ele deverá ser guardado como troféu de minha vitória.

Em princípio achei apenas uma peça de retórica barata e não dei muita atenção. Mas após nossa convivência íntima, mais de cinco anos, acabei por achar que entendi. Terminei por descobrir que o violão era de luthier e custava uma pequena fortuna. Não era o valor que importava. Para ele ali se escondia vinte anos de sua vida, a eterna inimiga. Segundo ele, foi o momento em que se deu a única trégua em sua luta com a inimiga.

Do que sua memória registrou, – primeira contradição: sabia de cor uma infinidade de músicas, textos, mapas, poemas, até artigos inteiros ele já me citou, enfim, uma memória prodigiosa – ficou uma janela aberta mostrado todo interior da casa.

- Sabe, qual é mesmo sua graça?

- Odaízio.

- Ah, sim! Odaízio na sala está todo meu resumo, a parte essencial de minha existência. E ela foi pintada com o pincel do fracasso desde o início. Bate nítido o dia, qual foi mesmo? Tinha sete anos? Seis? Cinco... em que se manifestou minha sina de sempre quebrar a obra, destruir o que construí, desfolhar a rosa cultivada com afinco e denodo durante tempos. Depois: o pavor. A sensação eterna de ter o malogro como companheiro. Graças ao meu temperamento irracional sempre consigo acabar com a mais dura armadura, aniquilo de um golpe toda sorte de salvação. Deliberadamente corro rumo ao fim, como se buscasse o bálsamo redentor de minha miséria: a morte. Pois não é exatamente a vida minha maior inimiga?

Conforme o grau de alcoolismo, este ponto de vista sofria algumas alterações interessantes. Uma delas, talvez a mais significativa, era o fato de ele sempre fazer uma confusão, buscando uma polissemia qualquer, entre vida, Aída e ávida. Convém esclarecer que a ex-mulher dele chamava Aída, sim, com acento no i. Deste triângulo vocabular, surgia uma curiosa dialética anárquica, digamos assim, pois a cada segundo as premissas, assim como a síntese, quando havia, tomavam contornos cada vez mais imprecisos e doloridos. Agora, isso não é nada diante dos longos discursos produzidos – essa arenga, deixemos claro mais uma vez, era de uma lucidez e erudição que dificilmente se acha por aí, mesmo nos melhores salões – por sua mente corroída em um coquetel de álcool, todo tipo de tabaco, noites insones, livros, música, solidão e loucura.

Vir Ver a Vida

Houve uma ocasião, uma boa época, em que eu perambulava pelas calçadas da cidade como quem procura algo ignorado. Passado tanto tempo, continuo não sabendo o que procuro, assim como não me sinto em busca de nada. Meu escaravelho dourado jaz inerte em minha memória. Eu bem poderia encontrá-lo de novo, mas falta-me agora, mais que nunca, o ânimo de outrora, a força de antanho. É... eu poderia, mas prefiro o silêncio das profundezas marítimas.

Hoje tenho uma idéia fixa alagada por uma torrente de sangue esguinchando de meu coração. Sutilmente se apoderou de mim e agora me consome. Por um breve instante pensei perceber o quanto estava enganado. Mas me enganei e continuei caminhando cuidadosamente enquanto recolhia rumores vagos de minha insânia. É, é isso mesmo. Estou ficando louco. Já não jogo cueca na sala, não fumo mais, bebida nem pensar, leio meu jornal de maneira civilizada e, suprema glória, não mijo fora do vaso.

Aqui, meu amigo, onde vejo alucinações, meu temperamento se excita, por muitas e nenhuma razão. Mas ainda há um outro estraho motivo para que eu creia em minha sandice. No presente caso a questão é considerar as minhas faculdades e impulsos destituidas de juizo. Os fenomenologistas podem até dizer se tratar de um sentimento irredutível e moralista. Não creio em tal leitura. Acredito que vivemos como náufragos agarrados na boía arrogante da razão.
A fatura das mentes analíticas é, por si mesma, mais fácil de ser protestada.

Me viro abruptamente. Esquivo e escorregadio saio ligeiro e não noto o mecanismo sendo acionado. Meu erro! Um jogador de xadrez, por exemplo, nunca faz um lance sem saber das próximas jogadas. Nesta tarde, quando as peças estavam diferentes, com bizarras formações, notei a lenta agonia revestindo o dia e não havia variáveis. Apenas o mate se anunciando esmagador. Não há um só instante em que não o diviso pronto e é muito possível que o intervalo entre o movimento das brancas e os poucos segundos de meu delírio, seja apenas meu senso me deixando.

Estou doente, terrivelmente enfermo. Vi, com horror, a barca humana naufragar. Vi, com um sorriso cínico, o amor ser violentado. Vi, não sem comiseração, o assassinato do carinho. Não! Definitivamente não vi a vida.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Pipa Voando na Maré

Alguns anos atrás conheci um certo médico, Dr. Plácido Barreto. Era de uma tradicional família paulista e crescera com bastante mordomia. Mas uma série de infortúnios o reduziu à miséria. Para minimizar as consequências de sua falência, deixou a cidade dos bandeirantes, terra de seus antepassados, e foi se aventurar no nordeste, fixando residência em Pipa, próximo de Natal.

Pipa é bastante singular. Longas praias emolduradas por falésias imensas, escondem uma maré traiçoeira e alta, bastante alta. Com o pouco que restou de sua fortuna, comprou um belo de um terreno, construiu uma casa confortável, montou um consultório na beira da praia e ainda sobrou algum. Atendia de bermuda, camiseta leve e chinelo. Sendo uma pessoa extremamente simpática, além do fato de ser médico em um fim de mundo, apresso a esclarecer que quando ele foi para lá, Pipa não passava de um lugarejo de nativos, não essa loucura turística de hoje, não lhe foi difícil granjear uma certa popularidade. Contribuia também o fato de nunca cobrar consultas e remédios.

Passado uns dez anos após sua chegada, surge na cidade um playboy conterrâneo de nosso doutor. Tendo a patroa do mesmo se sentido mal procurou o único médico existente: Dr. Plácido. Como sempre o nosso herói se encontrava em trajes pouco compatíveis para o exercício da profissão, segundo asseverou o paulista. Placidamente; não se trata de trocadilho barato, minha única leitora, o sujeito é de uma mansidão de dar sono em pé de maracujá, faz juz ao nome; o doutor disse "como queira" e foi atender a paciente.

Entretanto, o buraco era mais embaixo. O rapaz começou a dar escândalo. Não iria permitir isso, aliás onde estava o diploma, deveria estar pendurado na parede, emoldurado e passado. Com o alvoroço a pequena população da vila foi se apinhando em frente ao hospital do doutor. O consultório virou hospital e a curiosidade acirrou os ânimos de nosso ator canastrão acostumado com dramas baratos. Se vendo protagonista da cena não titubeou em carregar nas tintas. Isso aqui é caso para o Conselho de Medicina. Onde já se viu um charlatão exercendo tão nobre profissão. Será que os senhores se deixariam cuidar por alguém que nem diploma ostenta? O que diabo é isso? É de comer? Perguntou um. Deixa de ser leso homem, é de beber. Você os tenta comer mas só bebe, o homem é fino, da capital. Respondeu outro mais sabichão ainda.

Barreto, como o povo acostumou a chamá-lo, não ligou a mínima e continuou a atender a moça. Bonita, elegante e perfumosa, observou um mais galanteador, a jovem já demonstrava irritação com a atitudes de seu noivo, como se soube mais tarde. Enquanto o profissional cumpria seu juramento, o jumento continuava seu espetáculo sob os olhares curisos e atônitos dos nativos. Constatou-se uma indisposição estomacal que foi logo resolvida. Ao se restabelecer a linda moça se aproximou do rapaz e, na frente de todo mundo, tirou, sem uma palavra sequer, sua alinça da mão direita e entregou ao embasbacado paulista.

Voltando-se para o médico perguntou se não havia um quarto para alugar. Para alugar não tinha, mas teria imenso prazer em hospedar uma conterrânea. Isso seria outra estória ou o início do fim?