Acordou, como de costume, muito cedo. Bebeu água, limpou a gaiola do canário, foi ao quintal cuidar do cão, esse era o nome do cachorro, e foi tomar banho. Todos os dias o mesmo ritual, a mesma ladainha antiga, assim como a casa. As portas gastas conheciam minuciosamente todos caminhos percorrido pela família da qual ele era o último representante. As janelas envelhecidas sabiam de cor a saga daquelas pessoas brutas, calcinadas pelo sofrimento. Corações endurecidos por tormentas violentas. O velho tinha a respiração cansada, a fadiga dos anos solitários, pois ele não daria continuidade ao drama, não seria mais um servo da morte. Resolução tomada aos quinze anos e com uma fé inquebrantável.
Permaneceu casto, intocado. Só o simples pensamento de ter relações o estremecia. Não pelo ato em si, mas pela possibilidade de gerar outro ser. Possibilidade que o atormentava profundamente. Fora testemunha dos horrores familiares e abençoava sua solidão. Lhe bastavam o canário e o cão. O convívio com as pessoas no trabalho era um martírio que ele driblava dedicando extrema concentração em suas tarefas. No exercício de seu cargo, amanuense, tornava-se ainda mais grave, tendo uma idéia exagerada de seu papel. Isso o ajudava a esquecer a podridão humana que o cercava. Uma de suas certezas, dentre as várias, aliás cumpre dizer que o velho era a própria certeza, residia na crença de ser o ser humano uma praga perniciosa.
Era um homem meticuloso, escravo da ordem, dos hábitos assentados e não tolerava o mínimo deslize. Sabia confundir os interlocutores com uma certa perspicácia psicológica penetrando no íntimo mais escondido das pessoas. Não se pode dizer que era de todo ignorante, mas seu olhar, de um cinzento-opaco, bruto, de animal acuado, denunciava toda impossibilidade de amabilidades. Rogo todavia à minha única leitora que não se apresse em conclusões, como já disse aqui nesse espaço, minha narrativa não procura compreender. Não somente não tenho a intenção de clarificar, ou de ensombrecer, ou mesmo tornar flutuante, mas declaro solenemente que apenas conto o acontecido, fatos que a impaciência do narrador insiste em detalhar. Ao diabo os detalhes, como diria o pueril Mítia.
Da antiga ostentação de seus antepassados, se perdendo em tempos imemoriais, apenas a casa decaída, quase em ruínas. Retrato perfeito de sua trajetória. Agora um simples funcionário, ao fazer a barba, mirava seu rosto em um espelho quebrado. Pressentira um hálito frio em seu pescoço - que imagenzinha gasta e frívola - que o incomodou, mas não ligou muito, seus presságios sempre foram infundados. Estranhou ainda mais ao perceber o cão imóvel. Mesmo com a idade avançado o pastor não era de ficar quieto. Caminhou lentamente, sabedor do fim, em direção ao animal e prostou-se ao seu lado. Quando deu por si, ficou devaneando longos minutos, foi conferir o que já estava estampado em sua menste. O canário estava morto e ele próprio tombou ao lado da gaiola.
Com um risinho maroto a casa fustigava as janelas. Palmas para um fim melancólico de uma peça que não deixará lembranças.