terça-feira, 30 de setembro de 2008

Peça Melancólica

Acordou, como de costume, muito cedo. Bebeu água, limpou a gaiola do canário, foi ao quintal cuidar do cão, esse era o nome do cachorro, e foi tomar banho. Todos os dias o mesmo ritual, a mesma ladainha antiga, assim como a casa. As portas gastas conheciam minuciosamente todos caminhos percorrido pela família da qual ele era o último representante. As janelas envelhecidas sabiam de cor a saga daquelas pessoas brutas, calcinadas pelo sofrimento. Corações endurecidos por tormentas violentas. O velho tinha a respiração cansada, a fadiga dos anos solitários, pois ele não daria continuidade ao drama, não seria mais um servo da morte. Resolução tomada aos quinze anos e com uma fé inquebrantável.

Permaneceu casto, intocado. Só o simples pensamento de ter relações o estremecia. Não pelo ato em si, mas pela possibilidade de gerar outro ser. Possibilidade que o atormentava profundamente. Fora testemunha dos horrores familiares e abençoava sua solidão. Lhe bastavam o canário e o cão. O convívio com as pessoas no trabalho era um martírio que ele driblava dedicando extrema concentração em suas tarefas. No exercício de seu cargo, amanuense, tornava-se ainda mais grave, tendo uma idéia exagerada de seu papel. Isso o ajudava a esquecer a podridão humana que o cercava. Uma de suas certezas, dentre as várias, aliás cumpre dizer que o velho era a própria certeza, residia na crença de ser o ser humano uma praga perniciosa.

Era um homem meticuloso, escravo da ordem, dos hábitos assentados e não tolerava o mínimo deslize. Sabia confundir os interlocutores com uma certa perspicácia psicológica penetrando no íntimo mais escondido das pessoas. Não se pode dizer que era de todo ignorante, mas seu olhar, de um cinzento-opaco, bruto, de animal acuado, denunciava toda impossibilidade de amabilidades. Rogo todavia à minha única leitora que não se apresse em conclusões, como já disse aqui nesse espaço, minha narrativa não procura compreender. Não somente não tenho a intenção de clarificar, ou de ensombrecer, ou mesmo tornar flutuante, mas declaro solenemente que apenas conto o acontecido, fatos que a impaciência do narrador insiste em detalhar. Ao diabo os detalhes, como diria o pueril Mítia.

Da antiga ostentação de seus antepassados, se perdendo em tempos imemoriais, apenas a casa decaída, quase em ruínas. Retrato perfeito de sua trajetória. Agora um simples funcionário, ao fazer a barba, mirava seu rosto em um espelho quebrado. Pressentira um hálito frio em seu pescoço - que imagenzinha gasta e frívola - que o incomodou, mas não ligou muito, seus presságios sempre foram infundados. Estranhou ainda mais ao perceber o cão imóvel. Mesmo com a idade avançado o pastor não era de ficar quieto. Caminhou lentamente, sabedor do fim, em direção ao animal e prostou-se ao seu lado. Quando deu por si, ficou devaneando longos minutos, foi conferir o que já estava estampado em sua menste. O canário estava morto e ele próprio tombou ao lado da gaiola.

Com um risinho maroto a casa fustigava as janelas. Palmas para um fim melancólico de uma peça que não deixará lembranças.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Sensibilidade Petrificada

Sou a personificação exata do ser dominante. Carrego em mim todos defeitos da raça e não trago nenhuma de suas virtudes, se é que elas existem. Para que não me tomem como perscrutador da alma humana – deixo isso para o bruxo do cosme velho e o jogador russo – esclareço logo que falo de mim, não de ti e muitos menos do poupadordeporra, esse já não me suporta mais e, como já disse antes, sou um perdulário. Toda tolice humana encontra em mim residência fixa, faz uma morada onde a beleza é injuriada constantemente. Não há um resquício de sensibilidade sequer. Em seu largo quintal a demência fincou profundas raízes, escavou largos aluviões e me deixou apenas a terra arrasada, o rio seco e, mais uma vez, a beleza injuriada.

Diferentemente do bardo gaulês, minha cervelle étroite não foi herdada de meus antepassados. Creio até que meu avô deva dar pinotes no além ao ver a situação de seu neto. Mas não se fie nas aparências, minha única leitora. A fuga é a mesma. Só não me aventurei rumo continente negro. Preferi ficar próximo de minhas origens, mas com o mesmo sentimento de estar zombando da loucura. Já escancarei em crônica anterior, e eu já nem sei se sei de mim, minha incrível capacidade em destruir a possibilidade de qualquer felicidade ao mesmo tempo em que crio outra, um sopro de vida. Uma mistura louca de Ângela Prallini e o assassino de deus. Não por acaso perambulo nessas esferas: a magia e a ironia.

Deus está morto e esse textículo é um grito de ave de rapina. É a confissão de um ateu consciente de seu destino cada vez mais à margem da vida. A eternidade colada inexoravelmente em um segundo infernal, sem saida, sem esperança. Sentimentos pueris de um solitário rodeado de abismos, cercado de dores e, acima de tudo, pusilânime. Dou-me perfeitamente conta que se trata de uma mentira. Qual a razão de se colocar no plano literário o grito mesmo da vida? Por quê dar aparência de ficção à realidade? Seria conveniente a vida se travestir em literatura? Qual o sentido de vestirmos a realidade de fantasia? Do que estou falando?

Tantas especulações atormentando meus nervos fragéis, minha impotência. Sofro de maneira atroz, padeço em miragens, vago em pensamentos sem refúgio, em vapores de ópio envolvendo minha visão. Sempre injuriando a beleza. Jamais pensei em deitá-la em meu colo. Coisa meio infantilóide, de tio tarado. Mas sinto que respiro um ar com muita pressão, oprimindo minha razão de ser. O fato é que já não sou mais eu mesmo, meu eu autêntico, se é que há, está em coma. Não sou nada, careço de mim mesmo.

Estou cansado, espantosamente cansado. Com certeza minha única leitora também. Deitemos ponto nessa narrativa enfadonha, sem estrutura e enfermiça. Reflexo límpido de minha sensibilidade petrificada.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Vagau

Para Plínio Marcos.

O vagau chegou no muquifo todo jururu, mas nada disse. Entrou mudo e calado permaneceu. A nega, escolada por anos de praia, sacou que a parada era séria. Não tinha jeito, o malandro tava enrustido e nada faria com que falasse. Como o dito era da jogatina, ficou imanginando que o otário mais uma vez se fudeu na roda. A merda é que sempre sobrava prá ela e não raro fazia uma visita ao xadrez para livrar a cara do loque. Perguntar não adiantaria, o jeito era esperar, mas pelo andar da carruagem a treta não era a de costume, parecia haver algo mais no ar e barra pesada.

A mulher ficou cabreira e pelos caminhos esquisitos da cachola cavucou minhocas. Mais tarde, depois do desfecho, soube que a quizila era antiga. Tudo começou quando o Waldemar, um patrício metido a besta, deu com as fuças no rabo da Marinalva. O homem endoideceu, ficou vidrado no bagulho. Sim... bagulhão! A moça era conhecida na área como desmoralizadora do tesão. Uma vez o cabra se safou de uma justamente em função do dragão a tiracolo. Como a grana era curta os dois se meteram em um pedaço cavernoso prá mandar ver. Nas preliminares foram surpreendidos por uma rapaziada do mal. Limpeza geral. O padeiro, esqueci de dizer sua profissão e até creio ser desnecessário, foi logo dizendo:

- Meu gajo, tá certo. Só vou te pedir pra tu não tocares na morena.

- Ô portuga, vai tomar no cú. Não achei meu pau no lixo prá meter nessa mocréia.

Falou o Vagau. O fato é que ninguém tocou na baranga e o luso ficou achando que foi Deus. Como o portuga estava com os quatro pneus arriados era natural sua gratidão ao bom deus. Coisas desse mundão véio sem porteira. Mas deixemos isso de lado e vamos ao entrevero entre o Waldemar e o vagau. Acontece que o sarro tirado com o portuga o deixou puto nas calças. Marola à-toa virou tragédia. Apesar de otário, o portuga, além de ter amigos em uns puteiros escrotos, tinha a valentia dos trouxas. Ficou dias maquinando a presepada. O vagau esbarrou algumas vezes com o padeiro e nada disse, nem o gajo. Mas o olhar de além mar aterrorizou o malandro. Ficou sabendo por um dedo-duro que neguinho tava afim de apagar ele. O que o deixou nas tintas. A nega percebeu. Fazia um tempo que o homem dela tava acanhado. Quando estava assim é porque tava na maior roubada. Ela bem sabia que o vagau estava metido em muitos enguiços e fazia e acontecia no pedaço. Pressentido alguma coisa a nega encostou os caixotes na porta do mocó e foi dormir. Fez o que podia. Mas, não adiantou.

De madruga, uma rapaziada toda cheirada chegou na captura do vagau e, sem fazer a mínima cerimônia invadiram o barraco com os berros na mão. O vagou se encolheu na cama miserável e a nega se colocou diante dele. Reconheceu a curriola. Tudo vagabundo do puteiro da Maria Boa, rapaziada barra pesadíssima e sinal que a sujeira era grande. O portuga veio na frente e deu logo um tapão na orelha da nega que a estatelou no chão.

- Portuga, deixa comigo. Tem uma data que tô nas grimpas com esse filho-da-puta.

Falou o manda-chuva. E, sem mais delongas, deu no gatilho. O melado desceu no rosto do vagau. Foi falar com deus. O portuga, mesmo com o malandro já arrebitado, descarregou bala no corpo. E foi assim que na madrugada do dia vinte e três de dezembro de dois mil e oito abotoaram mais um malandro. É, como diz nosso cronista maldito, mulher de vagau sabe das coisas.


quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Paralelas

Expor o curso de meus pensamentos nunca foi minha pretensão. Nunca pensei ser o momento para se entrar em minha personagem; chegará a vez dela. Apenas relato causos miúdos, coisas rasteiras de uma mão inquieta, com uma agitação que se traduz em desejos estranhos e atormentados. Seria, aliás, uma temeridade eu assumir tal risco. Permaneço indiferente à minha sorte e confesso, não sem uma certa pontinha de desdém, que absolutamente não tenho o mínimo interesse pelo amanhã. Suportar a passagem do tempo já tem sido odioso.

Não gostaria de submeter minha única leitora aos segredos mais penosos dessa marionete sem direção, dessa vaga sensação de que a verdade não está nela, nem em ti e muito menos nesse que vos narra. Eis que vago na paisagem ardente da cidade, onde, justamente na véspera, na presença de meus chefes, mandei rasgar um texto inteiro. Desatinos de uma alma dilacerada por representações maliciosas. Só não perdi o trabalho porque rapidamente joguei uma conversa mole qualquer e apresentei, ao final do dia, um texto supostamente muito superior. Nisso sou craque: enrolar mané.

Sim, mas... Fique sabendo, meu Karmann-guia de leitores, que as tolices são fundamentais. Sem elas seríamos meros digitadores da comédia grotesca envolvendo a tragédia humana. Meu desígnio é contar-te o mais rápido possível a essência de uma lorota, é envolter-te em uma mansa conversinha que não procura compreender. Ouso mesmo supor que minha narrativa não passa de duas paralelas que jamais se encontrarão no infinito. Até penso que essa entativa de diálogo direto é rídicula e já bastante gasta. Posso ao menos me penitenciar, ao perceber seu sorrisinho maroto, de canto, como se encarnasse famoso quadro me dizendo: você é um mero contador de estória e não existe sem mim.

Acreditaria que hoje escrevi apenas para ter com quem conversar? Não! Definitivamente não estou zombando de ti e não penso que minha inapetência de vida tenha algo a ver com isso. É como aquela velha estória de amar certas pessoas sem saber por quê. Eu amo o vazio, no qual talvez nunca tenha acreditado, mas que venero por hábito, como fumar. Há três meses que vivo aqui e tenho notado como o autor me observa. Se vê em seus olhos várias expectativas, todas individualizadas. Seu semblante demonstra uma certa insegurança que não condiz com seus atos e gestos. Há algo irritadiço, áspero conduzindo suas ações envilecidas.

Meus parcos leitores, pergunto a mim mesmo: Quem é o narrador? A personagem? O autor? Defino assim: uma narrativa sem sofrer por não poder mais amar. Assim finalizo essa crônica mais que influenciada pelo contumaz jogador russo da alma humana.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Notícias Baratas.

Três notícias me chamaram atenção essa semana. A primeira foi a moça estadunidense leiloando sua piriquita virgem pela qual almeja abocanhar a bagatela de hum milhão de doláres, a segunda foi a imensa criatividade de um alemão ao solucionar o problema de sua manguaça, o que não passa de uma mera redundância: simplesmente cedia a mulher para o vizinho que, por sua vez, retribuia o favor na materialização divina de um engradado de cerveja. E, finalmente, a encenação da última peça de Nelson Rodrigues "A Serpente".

Os três eventos se comunicam em uma louca conversa de surdos. Vejamos:

A estudante Natalie Dylan, pseudônimo naturalmente, de vinte e dois anos, nascida em San Diego, Califórnia, afirma candidamente que vive em um mundo capitalista, precisa pagar o mestrado e conta com sua moeda de comercialização, a imaculada perseguida, para que tal sonho se concretize. Interessante que os lances serão dados, sem trocadalhos, por favor, em um bordel em Nevada, onde sua irmã também abocanha, literalmente, a grana acadêmica. Trata-se efetivamente de uma das sete gatinhas perdidas na terra do tio sam. Com graduação em estudos femininos, a moça em questão decreta enfaticamente o fim do descabaçamento no banco de trás do carro, segundo um especialista consultado.

Não que isso me cause estranheza, pois nos puteiros desse interior brasileiro isso é prática mais que comum e, vileza das vilezas, envolve crianças. O inusitado fica por conta do modus operandis e, digamos, vá lá, da idade da moça. Ainda há virgens com duas décadas de existência! Em Tehran... Ou será que a alma mais cândida ainda creia no hímem Californiano? O veículo usado foi nossa querida rede na qual me deito. Tempos globais.

Já o ariano não fez por menos: ao único lance dado a patroa foi alugada. Creio ser a consorte de nosso locatário uma baranga. Onde já se viu? Trocar a mulher por apenas uma caixa de cerveja? Acho, mesmo considerando que seja uma mocréa mor, que valeria no mínimo cinco caixas. Porra, o cara tá sacaneando o mercado. Eu, por exemplo, só empresto a patroa por no mínimo cem caixas. E olha que a véia já não ostenta a glória do passado. Apenas uma caixa? é demais... além de depreciar o produto caseiro a cerveja tá pela hora da morte. Há casos em que o sujeito até paga umas brahminhas pra você levar a madame. Nesses casos não aconselho. Geralmente você está negociando uma bomba armada e com efeito retardado.

Nosso renomado mestre, Nelson Rodrigues, nos brindou em 1978 com uma versão familiar e cristã do empréstimo sexual. Nessa tragédia carioca de um ato com fortes ares míticos, já o título nos remete ao simbólico mundo da tentação, duas irmãs, Guida e Lígia, são cúmplices em uma deliberada desobediência ao mandamento que nos rouba o paraíso da inocência. Ao comer a maçã, Lígia toma consciência da vida e da morte. "O que senti foi tudo – a vida e a morte. Agora posso viver e posso morrer". Nota isto: a fraude na qual acreditamos e é chamada de relacionamentos humanos, não é uma tragédia? E se se encontra, seja apemas uma única criatura que não compactue com isso, não é o suficiente para que se estabeleça a tragédia? Vejo que não acreditas nisso. Tá bom, deixo por menos, um drama.

É como uma estranha sensação de ansiedade indefinida e é isso que incomoda, não a sensação. Simplesmente o fato de você ser incapaz de determinar com exatidão o motivo de sua pertubação. É, também, a percepção que se instaura ao romper com tudo que o liga ao mundo e entrar em um novo caminho, desconhecido, sempre solitário, com muitas expectativas e poucas esperanças. A queda cristã é apenas um engano absurdo, aliás, a cultura cristã é um acúmulo de absurdos.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Submissão Definitiva

Tive uma namorada que era um vulcão. Seu furor e curiosidade sexual não permitiam qualquer rotina. Cada dia me vinha com uma novidade, as mais alucinadas possíveis. Creio que ela ficava o tempo inteiro maquinando, pesquisando, estudando possibilidades, mesmo as mais estaparfúdias. O kama sutra era sua bíblia e ali, para ela, já não havia novidades. Inegavelmente era uma mulher e tanto na cama. Não havia interditos e tudo, desde o mais singelo carinho inocente até a mais pura sacanagem, era motivo para o prazer.

De certa feita me chegou ela com um estranho embrulho na mão que, a julgar pelo aspecto, deduzi logo se tratar de um acessório. Quando o involucro foi desfeito me deparei com um dildo imenso, devia ter uns quarenta centímetros. Conhecendo a moça como eu já conhecia tomei um susto danado. Primeiro pensei que ela estava me chamando de pinto pequeno. Desisti logo dessa idéia, pois eu, como um bom estudante de medicina, sabia muito bem que daquele tamanho se endurecesse o cara desmaiaria, se não sucumbisse de vez e, por outro lado, eu estava acima da média nacional. Depois, para um sobressalto maior ainda, imaginei que ela estaria querendo colocar aquela tromba em mim, o que me deu calafrios de pavor.

Fui logo dizendo que no meu ninguém ia enfiar nada, nem dedinho. Imagina só, tudo tem limite. Se for prá introduzir isso aí no meu brioco, tô fora, continuei com a voz demonstrando todo meu terror ante a idéia que se me apresentava. Ela riu como uma criança sabedora de seu domínio sobre o parque.

    - Nada disso, seu bobinho. Só quero ter preenchimento total. Enquanto você mete na minha xoxotinha vai enfiando isso aí no meu cuzinho, ou vice-versa. Agora, se você quiser experimentar, não terei pudor nenhum em ir colocando pedacinho por pedacinho – disse com um sorrisinho enigmático enquanto olhava fixamente o enorme utensílio, o que só aumentou meu temor.

    - Que o quê... tenho um nome a zelar. Atrás de mim nem sombra. Aliás, já até brochei. Só de imaginar começo a suar frio.

    - Tá vendo só? Suor é sinal de desejo.

    - Olha, acho melhor você ir embora, não estou gostando nada dessa conversinha.

    - Vem cá seu medroso, não vou fazer nada disso, só estou brincando para ver esse seu ar apavorado. Ainda não quero sua submissão definitiva.

Não demorou muito e nos engalfinhamos um nos braços do outro. Detalhes eu deixo para o "rei". O fato é que foi com ela que começei a perceber o corpo de uma mulher. Não a mentalidade feminina, pois essa acho que nunca conseguirei entender e já desisti de tentar há muito tempo. Creio que minha estupidez não permita sequer que eu me aproxime da sutileza feminina. Penso até que seja essa, a minha tolice, a explicação mais plausível de minhas atitudes rudes.

Suas últimas palavras, "Ainda não quero sua submissão definitiva", me perseguiram implacavelmente. Aquilo não me saia da cabeça depois daquele dia. O que ela queria dizer com isso? O melhor é não esperar para compreender e sair fora. Por via das dúvidas, mesmo consciente do que estava perdendo, acabei com a farra, pois o diabo não dorme.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Carta.

M..., 6 de setembro de 1....

Meu Crispiniano,

Podes supor como me sinto, como se encontra minha alma após sua partida. Afirmo que não sei como vivo. Saudades, cuidados de toda sorte tomam conta de meus modos. Já te contei, em uma das minhas cartas anteriores, o que o infame, covarde, o maior dos monstros fez. Logo que você partiu, espalhou que havia lhe dado uma coça violenta e que você não reagiu. Até teria pedido desculpas. Bem sei não ser de seu feitio levar desaforo para casa, impudência que até me preocupa. Não há de ser nada, alguém há de calar esse falastrão.

Meu querido, nossa filha Maria Pérpetua está vindo para a fazenda com toda família, inclusive as empregadas e a família do marido. Já viu, né? Mil coisas para arrumar. Não quero que a chata da sogra de nossa menina tenha um mínimo motivo de queixas. Com aquele arzinho esnobe pensa que só ela sabe receber. Deixe estar, um dia a lagoa há de secar jacaré. Júnior foi à cidade por precisão. O alambique quebrou e nosso estoque está baixo, não está sendo possível atender todos pedidos, até recusamos alguns. Primeiro os clientes antigos e leais, depois os outros. Aliás, a cana desse ano foi muito boa. Até separei um trecho para ampliar nossa adega particular, tudo do jeito que você faria caso estivesse aqui.

Crispiniano do coração, se me fosse possível adivinhar, eu não ficaria sem ti um dia sequer. Muitas e muitas folhas de papel serão precisas para lhe contar essa minha existência de não poder estar ao seu lado. Esse martírio que me consome lentamente. Felizmente as coisas andam boas, a produção vai bem, o animal também, o que atenua sua ausência atroz. Os meninos estão se saindo muito bem no trato com a fazenda. Também pudera, aprenderam tudo com o pai. Só o Benício não parece muito satisfeito, você sabe... o menino sempre quis ir para a cidade. Maria Emília, de quem tive notícias ontem, me pede que te diga mil coisas. Está cheia de saudades. O marido esteve aqui na fazenda ontem, com mil agrados, mas eu já o conheço bem e não me seduzo com suas bajulações mentirosas. Enfim, nossos filhos estão bem, a fazenda vai bem e não há motivos para preocupações.

Meu amantíssimo Crispiniano, vou finalizando essa dizendo-te de como o amo e como é doloroso para mim suportar mais um dia longe de ti, meu adorado. Te amo silenciosamente, como se estivesse escutando um concerto de flauta, daqueles suavíssimos. Lembra de nossos silêncios, como ficavámos a dois, juntinhos bordando um sentimento requintado se exprimindo independentemente de palavras? Você sabe disso, foi você quem me mostrou a fala do silêncio. Eu gostaria de traduzir tudo isso em palavras, mas sou tão fraca das idéias e seria uma afronta o manuseio para o ignorado. Se ao menos eu soubesse escrever um pouquinho melhor! Escrevo ao sabor da pena, falo daquilo que me vem à idéia, com a única intenção de lhe dar notícias, com o intuito final de lhe proporcionar distração.

Tua, muito amante,

Maria.

PS: Por amor de Deus, não se esqueça de minha recomendação para sua mãe. Fixe bem: a massa é grossa e não fina!

domingo, 7 de setembro de 2008

Sentimentos

para Baden Powell

Tenho uma capacidade incrível de destruir tudo que há de bom em mim. Deliberadamente mato toda possibilidade de felicidade, aniquilo com um só golpe, certeiro e célere, toda e qualquer semente que brote. Esse meu proceder é antigo, se perde em regiões remotas da memória e não sei ao certo a razão que me condena a isso. Uma morbidez cultivada com denodo e afinco ao longo de décadas. Nada mais impróprio para esses tempos de felicidade em doses homeopáticas. Talvez seja essa a solução: ler algumas linhas de Paulo Coelho e sair sorrindo para todos.

Sinto essa estranha morbidez amplificada ao perceber que não caibo no mundo. Um estrangeiro em sua própria casa e mamãe não morreu ontem. A adaga retinindo ao sol projeta uma estranha cena, estabelece um diálogo maroto com a inapetência e tudo gira, um corpo que cai. Aguilhões perfurando a fina camada do racíocinio não explicam a razão do fracasso, sobretudo o pessoal. Nada dura. A provisoriedade desses seres brutos me causa engulhos, sua efemeridade os condena à ignorância, alimenta sua aneroxia intelectual. Não devemos crer em pessoas que confundem saber com arrogância. E nosso país do futuro não pensa que são sinônimos? Indubitavelmente não fui talhado para legitimar posturas medíocres e isso me afasta cada vez mais do convívio humano.

Estar em si e para si, eis o dilema. Embora haja algo de reconfortante nessa misantropia, a solidão não é redentora. Estar só é só estar, sem almejar ser não estou e não estando não posso ser. Explico: a existência de algo só se concretiza mediante a consciência de outro. Não estando, não sou existo, pois não faço parte do repertório do outro, aquele que dá sentido à minha existência. Apenas em mim não existo senão para mim. E isso é insuficiente. Por outro lado existir é farsa, comédia indigna de ser representada e fazer parte desse ato é compactuar com um diretor maluco. Não entro em clube que me aceita como sócio. Nunca soube ao certo a autoria dessa frase, fica na conta do populário. Uns dizer ser de Oscar Wilde, outros de Groucho Marx, mas tanto se dá como se deu.

Estou fadado, desde cedo, a não existir. Ser apenas uma leve lembrança na memória de minha mãe, nada mais. Um Meursault errante se recusando a acatar as regras do jogo. Talvez esteja aí a explicação para minha absurda morbidez. A incompatibilidade entre meu anseio e a realidade, entre os filhos da noite – os sonhos – e o leito amaldiçoado de Tebas – o sofrimento. Um incômodo binário estampado em traços finos, labirintos de rendeiras suavizando a dureza do bordado.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Saída Sul

Era 1979 e o mundo se resumia em uma buceta. Por essa época eu era membro do grupo Carroça. Uma trupe de adolescentes descobrindo o mundo, se enrolando nas sensualidades atomizadas, uma exuberância juvenil e com uma louca curiosidade sobre os mistérios da arte. Nada que se comparasse ao prazer desenfreado de testesteronas indóceis, nervosos em sua ânsia de serem gastos. Tampouco se assemelhando ao narrador. Até creio que o narrador seja personagem inútil na cena, já que o propósito da crônica de hoje é falar sobre a gastança de porra.

Sendo eu apenas a personagem, nada posso asseverar sobre os objetivos do nosso escriba mor. Apenas intuo sua desafortunada benesse, da qual falaremos mais tarde. Ainda guardo a impressão, estampada em meus olhos atônitos, do dia em que resolvemos, eu, o Lago, mais uma vez ele, e o Zé, partimos completamente duros em busca de aventuras. Desejo esse que mostrou toda sua bonomia em duas belas faces infantis. Ao sair do ensaio resolvemos tomar uma cerveja, o que era naturalmente natural. Eu tinha o equivalente a um tanque, o Zé não tinha nada e o Lago tinha algo em volta de meio tanque, que serviu para pagar a conta.

Fomos ao Cafofo, lá na 407 norte, que nessa época já pertencia ao Rênio e sua mulher da qual não lembro o nome. O bar havia sido inaugurado por um outro casal de amigos, o Éder e a Tânia. Conversa vai, conversa vem, cerveja chega, cerveja sai, o Zé nos deu a idéia de irmos visitar um staff inteiro de amigos recém-empossados em uma cidadezinha do Goiás na fronteira com São Paulo.

- Pô, o gás dá certinho prá gente ir, lá a gente azara um gás da Lili – disse o Lago.

- Então está decidido. Depois dessa a gente cai na rodagem – emendou de supetão o Zé.

- Beleza, vamos nessa que é bom à bessa. Só quero passar em casa para pegar mais bagulhinho, esse dá no máximo até Cristalina – disse sem saber muito bem do que se tratava, pois estava de conversinha mole com uma loirinha na mesa ao lado. Embarquei de gaiato no navio, como diz uma canção. Minha atenção estava toda voltada para as mechas de sol e essas tiveram que esperar.

Lá fomos nós. Três alucinados em busca do nada, às duas da manhã, roupa do corpo, contando com a grana da Lili para voltar, fumando unzinho sem parar e com uma grande necessidade de vagar. Ao chegarmos, já anunciando a larica e azarando o café, a moçada nos recebeu maravilhosamente. O Lago e o Zé foram para a casa do Max e eu fui logo me enroscando na Lili. Relembrança de tempos anteriores. Nem bem entramos em casa e ela já foi logo me puxando.

- Seu porra, cê tá cada veiz mais bunito – disse no seu minerês e me tascou um daqueles seus beijos já conhecidos.

Nem sei quanto tempo ficamos transando e isso porque eu estava cansado prá caralho. Dormi não, apaguei e ela foi para a prefeitura. Acordei já quase no meio da tarde com os gritos do Zé.

- Acorda seu merda, lugar de dormir é em casa.

Levantei meio sonolento, zumbi sendo bombardeado por novidades.

- Vamos fazer um show lá nas escadas da Igreja Nossa Senhora do Rosário. Nosso pagamento vai ser a gasolina – disse o Lago.

- Ah, é? E qual vai ser o repertório? – perguntei com um arzinho arrogante de quem não acreditava ser possível segurar uma hora de música com esses dois.

- Porra, a gente improvisa – falou o Zé em mais um de seus rompantes.

- Espera aí, vamos pensar... A gente pode tocar as músicas da peça, aquelas duas do João do Vale, aquelas três merdas do Caetano, faço duas sozinho e o resto a gente improvisa. – falei com a autoridade do violonista, compositor e cantor.

De noite estávamos lá. Aborrecentes ciosos de seu público. Quase toda cidade presente, o que, convenhamos, não era muita coisa. Ainda bem que eu era filho, neto, bisneto de mineiros e conhecia bem o repertório das modas de viola. Logo que iniciamos, com Pisa na Fulô, percebi que não ia dar certo. Foi quando ataquei uma guarânia antiga que meu avô cantava. Sucesso total. Virei para o dois e disse para irem atrás de mim e seja o que deus quiser. Meu receio maior era o Lago com sua flauta, pois o Zé era um talento imenso naquela parafernália percussiva. Tudo correu maravilhosamente bem, tocamos muito mais que uma hora e fizemos juz ao nosso pagamento.

No dia seguinte banhados, alimentados, abastecidos e já no caminho para a rodovia federal, fomos surpreendidos, eu e o Lago:

- Vamos para Ribeirão Preto? – mais uma vez a pergunta saiu com a resposta pronta.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Até Amanhã.

Eis que estamos aqui, perdido diante da tela em branco. Finalmente choveu. Seria um bom início se bons inícios fossem suficientes. Contudo, choveu e limpou um pouco o horizonte empoeirado de cinzas. Uma lavagem básica no foco de nossas retinas ressequidas, intumecidas pela brasa do cerrado. A longa seca rasgou de ponta a ponta o verde, amareleceu a paisagem em ipês azuis e se vestiu de rainha ao ser beijada pelo vapor saindo da terra, quente, rachada, como um solo de sax.

Na estiagem o cerrado revela suas cores, mostra sua magnífica manta de água. Abre-se em um esplendor sutil, delicado e retorcido. Pequenas manchas coloridas salpicam o cinza emoldurado por um azul límpido. Uma luz renascentista se espraia longe, saliento não se tratar do distante e sim da lonjura, do pensamento. Nessa época narizes sangram uma imagem estourada, os pés atravessam idéias calcinadas e a miragem molhada do asfalto atesta nossa sede. Alguns já me julgam doido só pelo fato de eu gostar do cerrado, gostar da seca então é caso de internação, patologia desconhecida e perigosa.

Mesmo os mais simpáticos ao nosso bioma, responsável por cerca de 35% da biodiversidade brasileira, sucumbem ao tempo das queimadas. Falo das naturais, pois elas são próprias do sistema, não das ateadas por mãos criminosas. O sol ao lamber ávidamente um seixo liso, ejacula sua porra no mais delicado fio de capim esturricado. Não por acaso que as bailarinas calçam grossas sapatilhas para o bailado da vida. O fogo ao destruir traz a novidade, aquela nascendo vigorosa no na aba do chuveirinho, na lobeira e sua flor roxa, no encantado sabor da cagaita, na mama-cadela, que conhecíamos na infância como chiclete-de-onça, nas canelas-de-ema, das siriemas. Para que os pouco familiarizados com os assuntos da savana brasileira não estranhem, creio ser preciso dizer que a siriema e ema são dois seres da fauna. Já a canela-de-ema é uma legítima representante da flora. Não a companheira do ex-ministro da fogueirinha de papel.

- É melhor dar um basta e colocar ponto final nessa apologia cerratinesca. Não posso dar a mínima trela que lá vem ele com seu jeitinho de intelectual sabe-tudo se imiscuindo em searas fora de sua alçada. É insuportável sua obstinação em levar a serieadade para palcos que não a comporta. Já falei mil vezes: aqui não é academia. A mente despreocupada não necessita de exercícios que despertem sua lassidão e nosso risco do bordado é ligeiro, fácil, não suporta o peso acadêmico. Porra, caralho, será que é tão complicado assim entender, como dizem os sabichões enfatuados, o insight da coisa? Tendo sido preciso me ausentar tanto nos dias que se passaram, deixei o blog na mão desse cara aí. Deu no que deu. Deixou uma semana no vazio e quando publicou... desfilou um arrazoado. Venho percebendo, desde que soltei a rédea, um certo ar esnobe nessas viadagens aí de gregos, cristão alcoólatra cheio de culpa e que tais. Até companheira o cara usou. Porra, não é mole não... A gente faz um esforço danado para ser políticamente incorreto e o distinto me sai com essa. É como aquela velha estória: a gente dá a mão neguinho já quer o braço. Ponto final, retomemos o fio da esculhambação. Até amanhã.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Cangibrina de Lázaro.

Eu, assim como os demais, sou um bêbado chato, além de depressivo. O que me confere um certo toque de individualidade, não de originalidade. Costumo desfilar um rosário de queixas, lamúrias aos borbotões. Praguejo contra meu patrão, alvo primeiro e maior, renego meu Deus, cuspo em meus privilégios e, finalmente, cago e ando com a sociabilidade. Geralmente me torno enfadonho, com um monodiscurso atroz. Repito à exaustão o mesmo bordão, samba de uma nota só desafinando a canção triste demais. Não é difícil deduzir que isso me causa embaraços, constrangimentos e uma longa fila de desafetos. Até mesmo meu espelho não me suporta. Torce o nariz, maldiz os deuses, ele é politeísta, e não compreende como divindades magnânimas deixaram tal criatura vingar.

As queixas são constantes. Se ao menos eu me embebedasse uma vez por semana, mas não, é todo dia. Lá no buteco tem um cara que diz que só bebe seis meses por ano. Dia sim, dia não. Conta perfeita. Eu não conheço feriado etílico. Bebo, melhor dizendo, tomo um porre em cada dia santo. Cumpre clarificar para nosso autor, desconhecedor dos desígnios divinos, a existência de um santo para cada dia do ano. O que me torna um bebum full time, feliz e torcendo pelo time. Alto lá, bom cidadão. Não pense, incorretamente, diga-se de passagem, que sou um leviano alcoólotra. Não senhor. Só bebo pinga. Cerveja é coisa de viado, pequeno burguês mascarando sua covardia. Não passam de vendilhões do templo. Não que eu não tenha dinheiro, posso encharcar o fígado com a birita que eu bem entender. Dinheiro não é problema e só trabalho para não fincar raízes na sarjeta.

O trampo me segura, mesmo considerando todas escapulidas ao longo do dia. Impõe um limite em minha sofreguidão Báquica. O que é uma grande contradição. Nunca ouvi dizer que Brômio tivesse o mínimo discernimento de fronteiras. Além de tudo tenho uma mania rídicula: fico comendo cutícula e unha o tempo inteiro, já não tenho mais dedos e meus dentes estão com síndrome de abstinência. Penitência de um cristão pregado na cruz pesada de seu destino. Os gregos nada sabem, não passam de adoradores pecaminosos.

Na verdade, não passo de um beberrão e me escondo na nebulosidade mental dos pau d' água. Bem sei que minha ventura, minha redenção não está condicionada à embriaguez. Há um ser maior que vela por mim e se envergonha desse filho decaído, mas sou filho e um pai jamais abandona os seus. Embora eu não sinta nenhum sentimento de culpa, percebo em minhas ações, não muitas ao longo do dia, um certo desdém com o que meu pai professa.

A embriaguez é minha hóstia, a remissão de meus pecados e nela se vê claramente um reflexo descorado de Fiódor Pávlovitch e meu fim será ainda mais trágico. Pelas mãos do pai morrerei, seu filho pródigo que não retornou, seu rebento libertino negando o paraíso patriarcal. Esse, assim como para o pai de Áliocha, não me interessa. Não pode haver mulheres devassas no reino azul. A retidão cansa a vista e nos faz mirar um único ponto. Sangue de cristo tem poder e dele não bebo nem o vinho.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A Casa Real de Tebas.

Minha linda e única leitora, não direi que cheguei até aqui por causa de sua benevolência para com esse pobre escriba menor, mas depois que coloquei em movimento a engrenagem dessas crônicas muitas inquietações assaltaram meu espírito. Dizia ele assim: - Maldito, qual a razão de ir com tanta pressa para o cadafalso? Miserável, então tens receio do futuro e queres voltar? Dessa maneira minha jornada, com um caminho curto, se torna longa. Falo apenas do que me diz respeito, não serei eu a proferir coisas alheias, isso eu deixo para o narrador.

- Então porque hesitas?

Me pergunta, com um arzinho cínico. Questão mortal para quem tem a língua travada, a pena calada. Hesito ao perceber o engenho sutil surgido no interior dessas crônicas, levando-as para além do esperado. Vacilo ao notar opinões enfáticas, oscilo ao sacar a tentativa de Erínia em cumprir seu desígnio. Mas meus crimes de sangue é a própria desobediência, o que a torna personagem fora de foco. A tibieza nasce de uma visão única. Um só modo de ver revela apenas o oco. Ao nos julgarmos únicos, donos de argumentações mais sólidas que os demais, ou ao pensarmos ter um espírito incomum, como nenhum outro, nos mostramos nus em nosso palco vazio. Não que eu esteja fazendo uma apologia ao servilismo humilde e pusilânime. Ao contrário. Uma alma nobre, ao se confrontar com a injustiça, não se conforma com a obediência cega e burra.

Há muito vi a filha de Édipo, nascida de um leito amaldiçoado e causador de doloroso desgosto, ser conduzida ainda viva ao sepulcro, sem esponsais, sem himeneu e sem tálamo. Sempre os dramas familiares trazendo trevas clamando por vingança. Às vezes penso ser uma mera marionete nas mãos de divindades perversas fiando meu destino. Não que eu seja um Labdácido, mas a história da casa real de Tebas me toca. A proibição divina de descendência é meu grande argumento para não ter filhos. Acredita você, minha única leitora, que isso me atormenta? Não, você não crê, vejo em seus olhos.

Meu destino trágico não será traçado com rezas, nem com coros, nem será fios em uma mão invisível. A bela desgraça se aproximando traz a certeza da vilania e não é nenhum conto das Mil e Uma Noites. Até o dedo mindinho de meu pé bichado sabe a sinopse. O narrador mais uma vez exibe em seus lábios trêmulos aquele arzinho cínico. Parece até que vai ter uma crise de epilepsia. Acho melhor parar, senão o cara vai ter um troço.