Nos olhos dela ele redescobriu o mundo. Estava ali sua redenção, sua volta à vida. Com ela o compasso deixava de ser quadrado, se tornava mágico. Em sua companhia sentia uma malemolência rítmica que o transportava para uma dança antiga, daquelas onde o rodopio era puro prazer. De certa maneira sentiu novamente a sensação de se atirar na vida, sem pudor de ser feliz, embora com centenas, milhares de receios. Durante anos sua vida fora uma sucessão de atos prevísiveis e estivera submetido de tal modo à vida familiar que se esquecera do ritmo frenético das ruas. Havia esquecido de si. Não passava de uma pálida imagem dos outros.De um momento para outro se viu desamparado, perdido em sua estupidez pretensiosa que o havia jogado inapelavelmente nos braços da solidão.
Ela apareceu e agora, enquanto caminhava pelas quadras, só pensava em beijá-la. Sentiu também que tudo que fizesse seria bom. Ouviu com olhos de ontem o canto de uma sabiá laranjeira. Viu a fêmea no chão com dois filhotes e instintivamente procurou pelo macho. Estava no alto de um galho seco assuntando a área. O horizonte, mesmo encoberto por uma névoa seca feita de poeira e fumaça, se mostrou límpido. Tudo envolto em uma doce contemplação, um alheamento inebriante, como se tivesse fumado unzinho.
Mas a fumaça se dissolveu em uma vergonha esmagadora. Lembrou-se do velho padre de sua catequese: você é um bom garoto, humilde, andando longe das tentações, evitando as más companhias. "Puta que pariu. Isso é hora para me lembrar daquele velho? Não, o mundo é outro. Procurei ser um bom garoto e só me fudi". Ou não era nítida a lembrança das porradas que tomou seguindo os preceitos dos mandamentos? "A bondade só se reconhece na base da paulada, do chicote. Mas tudo isso mudou e não vou ficar lamentando ou mesmo me indispondo com coisas inúteis, que só servem para me fuder". Concluiu enfáticamente.
Ele ainda não sabia que para ela era apenas uma aventura regada a sexo. Você me ama? A pergunta saiu de sopetão e ficou perdida no ar. Ela nunca respondia, mas havia algo no beijo dela que o levava a crer em uma resposta positiva. Havia no jeito dela olhar, com um certo ar de Capitu da Prais da Glória, um amor estranho, inseguro, mas isto lhe bastava e não seria ele a "ficar como uma flor lívida e solitária". Isso já havia sido estabelecido anteriormente.
O Astro Rei ia descendo sobre a cidade que se oferecia, ao fundo, como uma fera na selva espreitando, com suas garras, o destino, quando suas hostes guerreiras se postaram para a defesa. O negócio dela era o velho mundo na veia. Você precisa ir para a Europa, ela disse uma vez. Ele indefeso, sozinho, a sentiu escapar por seus dedos. Ela nem percebeu uma lágrima escorrendo. Ela se afastava. Nada mais restava a ele senão pensar no vasto mundo, se ele se chamasse Raimundo e fosse barão, bem mais que uma rima seria uma solução.
O principal era a certeza de que ela nunca lhe pertencera. Verbo que, em última hipótese, era a sentença escancarada de sua espada de Demócrito. Fazendo um enorme esforço reuniu o que lhe restava de razão para ordenar uma retirada célere, para, assim, salvar a fortaleza inexpugnável de sua posição. Resolução que lhe recobrou o ânimo. Muito embora às vezes a tivesse sob domínio, subjugada pelo prazer não seria bom correr o risco de uma derrota. Não foi ele que, afinal, decretou o fim da bondade?
De resto, apenas a intuição que não pode ser confirmada: se ele soubesse esperar com humildade e contrição, talvez ela lhe viesse. É... de nada adiantaram as aulas do velho padre. No fundo ele não passa de um cristão.
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