sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A Seca.

No início da primavera, quando todos ansiavam por chuva, houve dias pesados. Sobre a terra, em um céu cinzento e nebuloso, estendia-se um silêncio implacavelmente tórrido. Por toda parte ardiam as queimadas do cerrado. De vez em quando um vento quente e seco, uivando e silvando feroz, arrancava as últimas folhas das árvores calcinadas e aos ipês arrebatava uma flor de seus galhos ressequidos; levantava nuvens de poeira, lançava-as no horizonte com a fumaça e refugiava-se na savana tupiniquim onde atiçava incêndios.

Quando levantei meus olhos tristes ao céu nublado, as pessoas em volta de mim imitaram-me, olhando com o mesmo ar suplicante o sol, descorado pela neblina, e acreditando talvez que eu divisava no firmamento alguém que me conhecia e me escutava. O silêncio que pairava sobre a cidade era ensurdecedor. Depois de mirar por alguns instantes o sol, semelhante a uma gota de gordura em água turva, encaminhei-me para debaixo do bloco. Perto, vários abanavam o corpo, à sombra cálida das árvores cobertas de pó. O ar tépido estava cheio de odores fúnebres e nada poderia apaziguar a fadiga que se apoderava dos moradores.

Quando, por instantes, consegui quebrar o aperto de minha garganta, graças a uma bela dose de água de coco, senti-me de novo envolto em espessa névoa de censura para com a natureza e de descontentamento para comigo mesmo. Olhava de soslaio, por assim dizer, o crescimento de uma impressão fora do vulgar, e que não fosse inevitável como o calor, a chuva. Depois de ter enchido o cerrado, a seca extinguiu-se rapidamente, dando lugar a um valente aguaceiro, cujos milhões de pesadas gotas tamborilavam nos galhos. Chapinhava os rostos, os corpos, a terra, enchendo a escuridão com seu frescor.

Eu achava-me timidamente sentado, como em um sonho, embaixo de um pequizeiro, na penumbra acolhedora de uma morada. Em meu semblante pálido brilhavam lindos olhos verdes. Sem me queixar, ao contrário, com muita euforia, contei aos demais a morte recente de um tamanduá e expliquei que desejava narrar mais essa potoca no poupadordeporra para ir instalar-me no litoral e abrir um restaurante. Fui.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Pinico de Ouro

A minha mão inábil sempre quer dizer coisas inteligentes e não consegue; e eu sempre as transcrevo aqui, na suposição de que sua ignorância passe despercebida. No presente momento o país é assolado por uma fetidez que me causa engulhos. Porque, convenhamos, há pulhas em demasia. A mentira, o engodo e a hipocrisia reinam e os homens continuam os mesmos boçais, vociferam os mesmos miasmas e dizem amar as massas. Os intelectuais, os grandes escritores, os artistas mentem. Todo dia, ao ligar a televisão, vejo pessoas ensandecidas se esgoelando totalmente histéricas diante de políticos patetas, e só se ouve a gritaria, a cólera de atoleimados.

Daqui a nove dias é o dia 3 de outubro, data oficial para as eleições em terras de Pindorama, e nada me leva a crer que possamos mudar nossa situação caótica, miserável, assustadoramente vil. Menos aqueles que todo mundo sabe: Sarney, Temer, Serra, Dilma, Roriz, banqueiros, empresários corruptores, imprensa vendida, deputados com verbas astronômicas para tratar das hemorróidas – as minhas vivem à custa do INSS. Ainda por cima somos assaltados por sábios argumentos demonstrando o novo, a sagacidade do detalhe inédito, inexplorado, um ponto de vista que escapou aos grandes mestres.

E nossa mentecapta inteligência nacional, como já observado no início do século vinte por certo cachaceiro inválido, não admite que tratem de política senão os cientistas políticos; e de altas idéias os baluartes da raça; quando, em verdade, nem uns nem outros se preocupam com tais coisas. Apenas o convescote da partição do butim ocupa as mentes desses dementes. Na verdade incorro em um erro grave. Parvos somos nós que em nome da democracia os colocamos para arbitrarem a educação de nossos filhos, como a mais absurda lei sancionada nesse país recentemente. O Estado, que era para ser quase invisível, se imiscuiu de tal forma na vida dos indivíduos que já não passamos de marionetes nas mãos medíocres dos BBBs de plantão.

Mais não falo, pois minha ânsia de vômito é enorme e preciso urgentemente do meu pinico de barro. Já o deles é de ouro maciço.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Vale o que está escrito

Depois de longo e tenebroso inverno, voltei. Fiquei até tentado a seguir os ditames da canção do "rei" e dizer que aqui é meu lugar. Na verdade, não sendo mais que uma miragem, só existo na mente corroída pelo álcool desse que se diz narrador. Ser na ficção de outro fantasma demonstra apenas o desatino de se ter um pretenso lugar. Seria o mesmo que tecer um labirinto onde a saída seria mera ilusão. Não vá imaginar, meu caríssimo leitor, que, em vez de cumprir minha obrigação, ou seja, escrever, estava a vagar, divagando para me livrar das dificuldades da escrita. O tortuoso caminho da metafísica não me foi destinado.

Antes de ir mais longe, gostaria de deixar claro, sem concessões para dúvidas, que não desejo, como, aliás, nunca almejei, navegar em altas rodas da imaginação. E por que haveria eu de meter o bedelho em searas desconhecidas? Afinal, o conhecido não é o porto seguro de todo marinheiro de terra?

Na verdade é aquela sensação de solidão e abandono do jovem Törless. Aquela nítida percepção de que quanto mais me conheço, mais estranho e incompreensível me pareço. E a melhor maneira para isso é se sentir singular em mundos aparentemente distintos. Então voltar é mera figura embaçada, nada mais que pretexto para uma ida, sem volta, ao início. Bem sei que o solo é hostil e tudo não passa de reles figuras retóricas. Mas é preciso partir, vagar ao acaso. Como um indigente histrião perambular do prólogo ao ocaso. Eis a sina da mão inquieta. Tecer a urdidura mais pura, montar o paradoxo mais duro, eis ao que se resume o relato. E como no jogo do bicho, vale o que está escrito.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Tamanduá

Eu voltava para casa, anos atrás, através dos amplos espaços das quadras. Era bem no meio da seca. O capim esturricado e o ipê florido se moviam com estudada lentidão. Nessa época do ano há um colorido todo especial se misturando com a poeira e a fumaça das queimadas. O amarelo felpudo, tal como uma abertura de cena, descortinava um azul intenso ao sol. Observar o entardecer róseo azulado nos meses de maio e junho, era perceber a fauna invadindo o tempo suspenso no horizonte do cerrado. As árvores, em contraste, têm a copa ressequida, folhas duras, o tronco vigorosamente rugoso e cascudo. Contudo, se retorciam como bailarinas flutuando no horizonte da savana tupiniquim. Ontem, hoje de novo, amanhã outra vez, na verdade todos os dias não passam de prelúdio para ver o brilho metálico da lua refletida no lago. Longe, sempre lá, na lonjura.

O caminho para casa me obrigava a passar em um grande campo, mais de quatro quadras, ainda sem blocos e com a vegetação nativa intacta. Eu caminhava ao léu, pelo caminho poeirento. A terra virgem era vasta; de ambos os lados e na frente, planalto ermo, via-se toda sorte de vida, ainda imaculada. O dia estava muito claro, de modo que em todo arrabalde se vislumbrava perfeitamente todo ritmo do final de tarde. Na minha frente, à direita, via-se um filhote de tamanduá-mirim. Chegando mais perto, pude ver uma carcaça, cópia perfeita da cria cuja dança tresloucada denunciava o parentesco maternal.

O cadáver do animal estava com um profundo corte em sua cabeça afilada. Uma das patas fora cortada, e o resto de um formigueiro aparecia como lápide de um macabro ritual. A criatura assassinada revelou-me um estado de ânimo causado pelo cansaço. E essa fadiga devia-se ao fato de que, tendo estado na véspera em Itiquira, e passeando então nas trilhas, adornadas por uma infinidade de animais, por entre as milhares de árvores, encontrara mais de um tamanduá, que, na sua luta diária, despertara em mim uma curiosidade incomum.

- Il y a quelqu'un – disse eu, gritando no deserto.

Quando, nesse dia, voltei para casa e me deitei em minha cama macia e larga, da qual me orgulhava, e me cobri com a coberta, levei muito tempo para conciliar o sono. Lembrava ora a expressão assustada do filhote, ora os restos da mãe. Não me vinha à mente a idéia, com acento, de que a morte de animais era o preço cobrado pela cidade que nascia. Eu estava em casa.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Caso de Polícia I

Em razão de um medo atroz e uma coragem enfurecida, matei os três e não me lembro de mais nada. Os olhos de um deles em minhas mãos me trouxeram à realidade e não pude crer no que via ao meu redor. O destino, contudo, reteve seus passos e no silêncio da noite ouvi bem longe as sirenes soarem. A dúvida: me mandava ou esperava e teria uma encheção de saco do caralho para explicar que focinho de porco não é tomada, que foi legítima defesa e essas baboseiras. Me mandei.

Mal dormi. Fiquei a noite inteira procurando notícias. Até que finalmente ela apareceu com os primeiros jornais impressos. Em um box pequeno, à esquerda, dava o acontecido e a evasão do suspeito. Me chamou a atenção a omissão do texto sobre o fato de um deles estar sem os olhos. Acho até que os canas usaram para o trafico e abafaram. Os caras eram rodados nas manhas da bandidagem. Ninguém daria falta dos meliantes. Mas isto não foi motivo para eu me apaziguar, muito pelo contrário. Algo me dizia que era a trama de minha ruína. O destino, contudo, reteve em suas mãos a sorte que eu carecia e o golpe passou longe.

É bem verdade nunca pude confiar em meus pressentimentos. Sempre se dava exatamente o contrário. Eu, de minha parte, receei por mim e confesso que fiquei confuso. Os meganhas podiam achar que era acerto de contas e vir atrás de mim. Passei a andar pelas ruas com a atenção redobrada, mesmo ela já sendo extremamente alerta. Só para lembrar meus tempos de escoteiro. Não podia ver uma viatura que já mudava meu rumo. Usava o fato de não dirigir para me misturar, estar sempre em aglomerados humanos para que a rota de fuga, em caso de estar sendo seguido, fosse do tipo questão múltipla escolha.

Mas os meses se passaram e nada mudou. O assunto, como era de se esperar, morreu e foi enterrado em alguma gaveta. Após dois anos, pensando eu ter esquecido, alguém toca o interfone e o porteiro me avisa que era a polícia e que queria falar comigo. Desnecessário dizer que estremeci nas bases. Um turbilhão de imagens passou em minha mente, tudo rodou e nem sei direito o que disse ao porteiro. Tremendo mais que vara verde, vermelho que nem pimentão, abri a porta para os homens da lei. Mas isso fica para a próxima. Fui.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Estilete

"Se alguém deseja realizar a arte com seriedade/ e aplica sua mente a causas importantes,/ primeiro, com o maior rigor, habitue-se à moderação". Petrônio.

O dia chegou, isto é, a tão esperada data de sua primeira individual. Entretanto, estava angustiada, sentia uma ferida a consumindo e não sabia ao menos o que a afligia. Afinal, não era esse o momento tão sonhado, aguardado como se fosse o instante supremo? Durante algum tempo, ainda se vestindo, ficou olhando o espelho e vendo surgir uma lápide com um mármore de um branco indescritível lembrando um antigo quadro seu. Seria demorado relembrar cada detalhe e agradeço, de antemão, a generosidade e a condescendência de meu caro e único leitor, em relevar esse desvio de percurso da narrativa.

Se a escrita não está agradando, o escriba se vê na obrigação de trocar? Graças aos deuses, eu não sou bardo nenhum ou coisa que o valha. Sem argúcia tramo a representação das máscaras e traço mais um embaraço. Não se aborreça meu distinto leitor se eu lanço mão de dizer essas coisas. É que, riscando o bordado com a sonoridade fácil e frívola me vejo como um saltimbanco de calendas perdidas na história.

Tantas vezes já disse aqui nesse espaço que me ocupo de coisas miúdas, minudências totalmente destituídas de significação. Apenas a banalidade da fantasia. Causas importantes? As deixo para os doutores, pois meu caminho é mínimo. Rigor? Cabe melhor aos poetas e eu não passo de um mero cronista. Moderação? Sou filho de Dioniso e o excesso da desordem é minha cena.

Mas voltemos ao tema, se é que ele existe. Já na galeria, Pauline, sim, esse era seu nome, voltou a sentir o mesmo temor. Durante anos eu me lembrei desse dia, e o repassei, examinei minuciosamente em uma angustiada ruminação e não consegui novas interpretações para o fato. Aterrado, quis examinar novamente essa lembrança. O espelho e a lápide reapareceram. Só que agora em mim. E fico estacado no mesmo lugar. Sempre amei Pauline? O que a incomodava? Perguntas eternamente fadadas ao silêncio da ignorância.

Em um repentino acesso de fúria, coisa que eu já vislumbrara, Pauline saiu rasgando todos os quadros. Não deixou um único intacto e o estilete em sua mão era a prova do crime. Naturalmente a abertura da individual de Pauline K. fechou.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

“Barulhos Constrangedores”

A propósito de certa notícia veiculada pela imprensa local, me lembrei de um episódio ocorrido comigo. Durante algum tempo morei no Edifício Jardim Tropical, em Brasília. Em minhas intermináveis mudanças por essas terras de Pindorama manhosa e cheia de mazelas, essa estadia na 516 sul me rendeu momentos insólitos. E é um deles que pretendo relatar nesse textículo mal alinhavado. Tinha como vizinhos um casal que ao transar provocava verdadeiro terremoto na vizinhança. Os caras gritavam, urravam, xingavam em altos brados. Isso chegou aos ouvidos da Delegacia de Costumes e Diversões Públicas, mas não deu em nada, pois a síndica ficou só e os gritos e "barulhos constrangedores", como dizia a mandatária daquela pequena cena urbana, continuaram não sei por quanto tempo, já que eu mudei logo após o caso que vou contar.

Para mim o único inconveniente do casal era quando eu estava a perigo, se é que minha delicada e pudica leitora me entende. Quando o ruidoso amor começava, já estava pronto para iniciar mais uma covardia. Perdi a conta das vezes em que eu não poupavaporra nenhuma e no embalo da "perturbação da tranqüilidade" descascava mais uma banana em homenagem ao casal voraz. Cumpre esclarecer que, digamos assim, a atividade sexual dos dois era de maratonista. Mas vamos ao que interessa.

De certa feita arrumei uma namoradinha e não sei por que cargas d'água a levei para minha casa. Acho que eu estava meio enamorado. Estávamos lá no maior bem bom quando os maratonistas dos prazeres carnais começaram seu treinamento. A moça, Alcibilina, quando escutou os primeiros ruídos arregalou os olhos e foi na mesma balada. Iniciou uma gemedeira como se estivesse conversando com a colega ao lado. A vizinha aumentou os impulsos guturais e Alcibilina atrás. Até que minha companheira se levantou e disse de maneira peremptória.

- Vamos lá chamar eles.

- O quê? É mesmo? – Disse eu com uma incredulidade causando espanto e fazendo aflorar um sorriso cínico nos lábios. Jamais poderia imaginar que aquela patricinha estava tomando uma atitude que pensei várias vezes em tomar: propor um ménage. Agora iria virar swing. Legal, vamos ver no que vai dar, pensei cá com meus botões.

- Nada! Deixe de caretice e vamos entrar na festinha. Que por sinal parece estar muita animada.

Dizendo isso, sem ao menos colocar uma roupa, foi bater na porta dos vizinhos. Mas isso já é outra estória. Fui!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Memórias Rotas

Durante muitos anos ele ficou sem abrir os álbuns de fotografia. Eram velhos papéis de um tempo distante. O instante onipresente em sua memória anciã e que lhe foi roubado em míseras horas. Nunca deixou de lamentar sua precipitação e agora ia folheando devagar inúmeros retratos de uma era que já era. Mesmo hoje, ao rever imagens antigas, percebeu que ainda persistia a sensação de que deixou escapar entre os dedos todas as alegrias de outrora. Por isso relutou tanto em limpar a poeira que cobria a capa dos arquivos, mesmo que inconscientemente. Tantas pessoas, longos sonhos, recordações dolorosas e tudo isso se resumia ao simples ato de dar mais uma volta no parafuso, revelando segredos inconfessáveis.

Quando se viu em uma foto não deixou de notar um sorriso com certo ar de escárnio e triunfo. O interessante é que ele quase nunca aparecia nas fotos, já que invariavelmente era o bardo das retinas fatigadas, como ele costumava dizer, citando alguém. Outra foto o fez navegar largamente naquela região onde tudo se dissolve. Aquele reino cujo tempo fica suspenso em lembranças insondáveis. E desse retrato nada sei. De certo, só a mágoa correndo o olhar e a memória.

Vários já tinham ido para outras plagas, esferas já próximas dele. Não quero parecer que me ocupo de coisas miúdas, rasteiras, mas é preciso deixar claro que seu perambular visual era a fonte de uma água salobra, chafariz de memórias rotas, como o vinco de seu rosto. Ouso até supor que ele se confundiu com uma personagem de sua novela nunca terminada, Iniciada em sua adolescência jamais foi terminada. Sempre o argumento infeliz da incapacidade para tal. Infelizmente para meu único leitor só eu e poucos amigos tivemos acesso aos originais. Era um belo início de novela. E Luiza, sua personagem, constantemente ocupou suas preocupações.

Fiquemos por aqui, já que o espaço vai se acabando e o poupador, esse imenso preguiçoso, assim como de outra feita, alertou-me para não ultrapassar uma página. Até nisso o cara é murrinha. Deixe estar! Eu volto. Fui.