sexta-feira, 24 de julho de 2009

Os Excluídos.

Ontem de manhã, caminhando pela quadra, como de costume, vi uma cena tão interessante como absurda, que determinei logo seria o começo dessa crônica. Agora, porém, no momento em que digito, receio que minha linda leitora e meu cioso leitor não terão a mesma sensibilidade que eu para um episódio que pode parecer vulgar, e talvez indigesto. Releve a falta de sensatez meu par de leitores; graças aos deuses os gostos não são iguais.

Entre o bloco C e o bloco D estavam um ser e sua família acordando. O lugar não era próprio para o remanso de uma estirpe, e o frio estava de cortar a alma, donde concluí que eram excluídos. Dedução mais besta, ainda mais usando uma palavrinha tão na moda. Instante depois vi o patriarca, assim me pareceu, levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos lhe furavam a pele, os olhos mortiços vagavam sem rumo e de quando em quando miravam o horizonte, destituídos de qualquer perspectiva e sem a mínima noção do que fazer. O infeliz estava mais perdido que cego em tiroteio e diante de si uma fogueira improvisada dava seus últimos suspiros. Em frente ao animal, logo lembrei o famoso poema de um pernambucano, havia uma lata, deduzi conter restos de comida, e um galão com cinco, talvez quatro, litros de água.

O que me pareceu, é que o homem fazia exame de consciência. O que ia em sua cabeça não me foi permitido saber, nem ao menos supor, já que essa escritura está tão dedutiva. De certo apenas o relento como companheiro. Teria vindo da Bahia? Seria mais um agricultor expulso de sua terra pela miséria? Democracia, comunismo, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta seus interesses, como diria certo bruxo carioca. Percebo, pelas últimas publicações, certo viés social em meus textículos. Coisa que nunca foi minha preocupação e achava até enjoado, pensava ser assunto para jornalistas e sociólogos, não de escritores, como se fosse possível dissociar uma coisa da outra e como se eu fosse digno de ser chamado de escritor.

Não fiquei para ver o desenrolar, e fui andando, não menos tranqüilo – com trema – que triste. Aborrecido pelo espetáculo inicial do dia, não podia furtar-me de remoer o lauto café.

No outro dia, ansioso como um adolescente, passando pelo mesmo local, não vi mais os excluídos. Pesaroso, verguei-me ao meu egoísmo.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Textículo Canhestro.

Mal convalescia o espírito público do abalo que lhe causou a notícia do afastamento do diretor-geral do Senado, surgiram os casos do atual presidente da Instituição; casos tristes, para ser educado, por qualquer lado que abordemos, e sobre o qual a última palavra deveria ser dada pela opinião pública. Mas estamos no Brasil e somos impingidos por declarações as mais estapafúrdias possíveis. A última pérola do Lácio nos diz que é normal sair indicando parentes e namorados de semelhantes, nos fala que é prática corriqueira desde a colônia. Aliás, para refrescar a memória, o primeiro Governador Geral foi indicado. Portanto, nada mais natural que colocar nos quadros o cunhado da prima da amiga do genro de minha concunhada, que, aliás, não é parente.

A concupiscência nacional desconhece limites e diuturnamente amealha o butim em nossos suores. Bem sei se tratar de tema requentado, como eles gostam de proferir, de razões estruturais, como os revolucionários do boteco da catrevagem enunciam, de uma antiga herança cultural, como nos asseguram os sociólogos, da pasmaceira da população, como é garantido pelos que se julgam fora da tribo de que fazem parte. Enfim, há algo de podre no reino de Pindorama e não é de hoje. As razões? As desconheço. Como praticamente tudo ao meu redor.

Que pouco se cultue a honestidade nesta terra é o que muita gente afirma, há longos anos; é o que acaba de pronunciar um de nossos digníssimos representantes. Veja, deliciosa leitora, não que eu tenha algo contra fulano ou beltrano, é meu costume, quando não tenho assunto, coisa corriqueira, ir por esse mundo das letras, se assim se pode chamar esse textículo, tecendo as coisas mais absurdas. Como você já percebeu inúmeras vezes. Naturalmente a vista cansa, a mão se aborrece e a mente vaga errante. Dessa maneira, termino mais uma tentativa canhestra de escrita.

domingo, 19 de julho de 2009

Supremo e Sublime Deleite.

Morar sozinho tem inúmeras vantagens. Tem lá seus percalços também, mas fiquemos com os benefícios. Dentre jogar cueca na sala, deixar esparramado o jornal, mijar fora do vaso, deixar a toalha na cama e tantas outras, não há uma sequer que se compare ao prazer de devorar uma melancia da maneira que lhe convier. E a minha é do centro, a parte mais docinha, para fora.

Nunca consegui entender a mania das mulheres em quererem que tiremos uma fatia, uma mísera pontinha do meio. Acho até que é um traço típico da personalidade feminina. Em minha convivência com elas estabeleci um método infalível. Tiro metade para mim e engulo ao meu modo. Esclareço, ainda, que não há remédio melhor para uma ressaca que uma suculenta melancia sendo comida de dentro para fora. Imagina só: você numa puta ressaca deliciando-se com uma baita de uma polpa vermelha e sua mulher te aporrinhando:

- Porra poupador, vê se tira uma fatia para você. Será que você não pensa que outros querem a parte mais doce? Vai deixar só o toco próximo da casca?

Até tiro o jornal da sala, mas deixar o remédio de um moribundo para satisfazer o andamento perfeito do convívio? Jamais! Declaro-me guerreiro de um direito divino: consumir o essencial da erva trepadeira. Se for sem caroço então... Supremo e sublime deleite.

Aparentemente é um assunto fora de propósito, mas se meu dedicado leitor observar com acuidade; é melhor não dirigir-me à minha leitora, pois creio que esse textículo não esteja ao seu gosto; verás que o tema é do mais profundo interesse. Veja bem você: a metafísica que há em se comer melancia é a mesma dos chocolates, desculpe-me Campos, mas lembrei-me da tabacaria. Foi bom, porque assim não perdemos a visão de nosso oposto. O que é curioso é que nós, os descasados, estejamos ocupado, eu em falar de melancia, você em ler sobre. Acho que ainda não disse que meu único leitor é mais um ex nas estatísticas. Acho que o melhor é acabar e te dizer adeus. Adeus, caro leitor; se aqui vieres uma dia, pode ser que não ache o texto tão limpo, mas o coração é.

sábado, 18 de julho de 2009

A Verdade

"A verdade é uma fêmea que só é bela quando nova"

(M. Gorki)

Lembro-me de haver dito, um dia, que a verdade era uma criança rejeitada. Naturalmente a epígrafe foi o mote para que eu, em minha santa inocência, me imaginasse um filósofo de alta monta com uma paráfrase tão sem vergonha. A citação em questão está no livro sobre os Artamonov, lido em minha adolescência, sendo retomado agora e que foi um dos últimos do escritor. Aliás, estou só relendo. Nos dois últimos anos não tenho feito outra coisa. É bem verdade que sempre deixo um espaço para alguma novidade. Mas vamos ao que importa, ou seja, nada.

O final dos anos setenta foi penoso para minha ânsia de liberdade. As patrulhas davam o ar de sua graça truculenta. Tanto de um lado como do outro. As de esquerdas tinham em Gorki um de seus interlocutores, embora eles nunca tivessem entendido o russo barbudo e seu grito de indignação e protesto. Por contraponto execravam Borges, Nelson e outros. Os de direita vociferavam seu discurso em longas viagens de pau de arara. E eu, que não tinha nada com isso, ia lendo Gorki, Babel, Nelson, Borges e tudo que caia em minha mão, sem olhar a origem ideológica.

Isso me valeu o olhar torto da esquerda empedernida e a bisbilhotagem dos serviços repressivos. Desnecessário dizer que fiquei mal com todos, não obstante minha militância pueril contra a dita dura. Arrumei brigas homéricas por defender o fascista Ezra Pound, tive dissabores terríveis por colocar Albert Camus no panteão dos grandes escritores, fui violentamente vilipendiado por confessar meu prazer em ler Martin Heidegger. Não! Era imperativo ler o realismo socialista. Só? Nunca! Desde sempre soube me posicionar segundo meu espírito.

A verdade é que uma fêmea é infinitamente mais bela ao nos mostrar a verdade de nossa ignorância. E isso... só o tempo.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Epílogo

Tudo aconteceu de inopino. A discussão colocou fim a um casamento com mais de trinta anos, quase quarenta. Foi o que ele pensou ao perceber um raio de luz penetrando pela única fresta que havia por um dos lados da cortina. Então lembrou subitamente do motivo da discussão. Com um queixume admitiu, sincero consigo mesmo, como era de seu feitio, seu pecado. Sou culpado, mereço ser castigado e nada pode redimir meu delito, disse balbuciando e lembrando imediatamente do romance russo. O que o aborrecia, assim como Stiva, não era o fato da traição, mas a maneira como se comportou diante do filho, nesse sentido bastante diferente da personagem.

L. era o caçula de oito filhos, todos vivos – os tempos são outros meu caro Príncipe Stiepan, e, da mesma forma que Dária, sua mulher já não ostentava beleza e desejos. Enquanto ele, graças aos avanços da medicina, estava feito galo garnizé – e L. era o único que estava por perto. A raspa do tacho ainda se movia sob as asas da mãe e se encontrava presente. Sem dar a mínima atenção para o pré adolescente, desafiou impropérios impensáveis em uma situação normal. Ainda ressoava em sua cabeça a imagem dos olhos do garoto, ao testemunhar aquela que seria a única briga do casal, em um misto de cólera, horror e desalento.

Esta atitude embaraçosa foi o suficiente para que seus passos resolutos buscassem a porta. A esposa calou-se, não porque nada tivesse que fazer, mas apenas por não querer desvendar seus pensamentos mais secretos, nem mesmo ao filho. O tempo pareceu suspenso e uma densa névoa de desconfiança pairava no ar. Subitamente a empregada despertou os dois com o anuncio da chegada de visitas.

Agora naquele quarto de hotel se via sem chão, rodopiando a esmo por pensamentos desconexos e sem sentidos, com uma clara sensação de derrota se perdia nos meandros de histórias antigas como a do nascimento de M., a primogênita. Não haveria volta, ele sabia e não faria nada para mudar os rumos dos acontecimentos. Um ciclo se fechou e o desconhecido se apresentava diante de seus olhos cheios de lágrimas.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A Igrejinha e o Galeno

Mesmo com atraso vou meter o bedelho na conversa. Um painel, ou dois, como queiram, embora eu acredite que o nó da questão esteja mesmo no painel da santa, divide o mundo religioso e plástico, sem ironia. Rolou na imprensa uma grande controvérsia causada pelos painéis do Galeno, as mais recentes criações do pintor, que tem admiradores e detratores, na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em um debate sobre religiosidade e morfologia que sua obra jamais suscitou. Cumpre esclarecer duas coisas: passei grande parte de minha vida naquelas adjacências e conheci o pintor por volta de 1979, tendo nos tornado amigos, distantes, mas amigos. Morando na 108 sul, estudando na Escola Classe da mesma quadra e na Escola Parque da 308, é natural que minha infância tenha tido o cheiro das velas queimando as asas das pombas. Depois de surrupiadas as bandeiras de Volpi, agora o obscurantismo quer dar um tiro final em pipas, carretéis e que tais.

Segundo a associação das senhoras, não tão velhas, o pundonor religioso não admite brincadeiras. Coisa que não vejo absolutamente. A liga dos bons costumes não dá trégua. Meu parco conhecimento de história talvez não me dê o direito de afirmar que a igreja cristã foi íntima das artes. Não por acaso temos um enorme acervo graças ao trabalho dessa instituição. Não obstante o domínio de almas e corpos. Toda nefasta e hipócrita manipulação das escrituras caminhou ao lado de uma arte refinada, sacramentada pelos desígnios dos clérigos. Será que podemos prescindir do afresco monumental de Michelangelo na Capela Sistina? O que não dizer especialmente da criação de adão? Onde um homem maduro aparece nu? Os tempos eram outros... Ou poderíamos dizer que seria a própria personificação da luxúria e viadagem reinante?

O pintor nacional Francisco Galeno deixa crescer seu sentimento lúdico e com um azul profundo, meio céu de Brasília, sacia a sede das paredes e não altera seu antigo e peculiar traço. Não lhe assenta a santa? Deve essa assumir forma diversa da escolhida pelo artista plástico? Em face destas indagações, eu, com minha santa fé atéia – com acento – aceno com um adeus para esse textículo tão mal ajambrado. Contudo, mais uma palavrinha se faz necessária. Foi atrás do chapéu de freira que conheci os primeiros encantos das moças e desculpe-me, minha ciosa leitora e meu dedicado leitor, o tom confessional.


 

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Poeira no Planalto.

Quase sempre eu sumia no cerrado, o que deixava minha mãe em polvorosa. Era uma Brasília poeirenta, solitária, carregando em seu dorso as árvores tortas de cascas grossas e folhas duras, desconhecida e que, à luz de sol, se estendia diante de meus olhos atônitos. Morávamos na cento e oito sul, cujos blocos já estavam prontos. Fosse por falta de opção, fosse por causa da inexistência de mercados, aqueles passeios terminavam sendo uma farta feira, melhor que a única mercearia de um japonês em um raio de quilômetros. Pequis, cagaita, gueiroba, ou guariroba, como queiram, araticum, buriti, cajuzinho faziam parte do farnel. Além das retinas repletas de tatus, tamanduás, lobos, maritacas e uma vez, até vi um gato do mato bastante grande, achei que era uma jaguatirica.

Àquela hora o sol estava em todo seu esplendor e eu já não divisava com clareza os blocos se erguendo na quadra vizinha. E é desde essa época meu encanto com a luz dessa cidade. Não tinha, e não tem nada a ver com nada, a não ser comigo mesmo. Atraía-me, doía-me e deixava-me pensativo. Ainda hoje isso me acontece, a despeito de minhas sinusite e fotofobia. Se a Ville Lumiére é a cidade dos livros, a Capital da Esperança é a da arquitetura. Não há nenhum monumento nesta cidade que não seja uma obra de arte. Esta urbe se inscreveu tão indelevelmente na arquitetura porque nela mesma há um espírito de argamassa. Não teria ela, a maneira de deuses benevolentes, forjado os motivos de sua edificação, de longa data, desde o Império, como uma paciente artífice do tempo?

Hoje a jovem senhora, não obstante seu ar gracioso, já não ostenta o garbo de antigamente. Das veredas sobraram a confusão e o desatino. De uma fazenda sem cercas passou a síntese das mazelas. Verdadeiras aves de rapina promovem diuturnamente uma carnificina nas entranhas da cidade e não há nada que sacie sua sede. E, sem querer, levamos uma fama que não nos diz respeito.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Lume da Manhã

Acordou noite alta, e, no primeiro momento, experimentou aquela terrível desorientação que o escuro provoca nos sentidos. Seria incapaz de definir qualquer coisa que fosse do quarto, as dimensões, o abajur lilás, o quadro, única sobra dos tempos idos, de E. R. L. Ela sempre se deitava tarde, pois herdara os hábitos notívagos de seu pai e com esse repentino despertar não dormiu nada, o que contribuiu ainda mais para seu aspecto sonambúlico. Pensava estar na fazenda, com as enormes chaves penduradas no pescoço e com afazeres ditados pela mãe.

Era no fim do verão, e ela recebera uma carta de seu pai dizendo-lhe que voltasse. Estava no quarto, não o da herdade, o mesmo que a avó Zefa usara antigamente e era, como os da fazenda, disposto ao longo da varanda, ornamentado apenas pela paisagem marítima de um porto pequeno. Além disso, uma estampa de certa virgem pendia sobre uma das cabeceiras. Encarava os espaços vazios como algo muito mais que saudades, davam-lhe a impressão de que alguma coisa acabou, e que ela era a única culpada pelo fim.

Vivia cercada de presságios, desejos e de tédio. Na verdade, ela, desde o início, dava continuidade em sua longa peregrinação ruma a uma densidade de idéias – com acento –, em uma obscuridade de pensamento que lhe esvaía os sentidos, que a deixava lúcida só para a insistente canção penosa do coração. Acabrunhava-se. Tentava encarar aquilo como um passatempo. Mas, aos poucos, começou a achar apenas fastidioso o fato de ter relações, para ela as relações entre criaturas era uma soma onde não havia fantasias. Ela pouco sabia do homem, de sua sedução quase cândida, de seus encantos fúteis, de sua petulância graciosa, de sua curiosidade desvairada, de sua circunscrição em determinada época, dos prazeres femininos, da euforia tirânica que exercem as mulheres sobre os homens apaixonados, dos trinados sutis dos amorosos. Enfim, sua aguçada capacidade selvagem de defesa, de astúcia, lhe conferia um ar sibilino.

Eis nossa personagem. Agora, na casa da cidade, apenas ela velava. As velas ardiam para o silêncio e a solidão, e suas chamas azuis estendiam-se nas profundezas de seus olhos. Assim decorreu o resto de noite, as velas reduziram-se, lambendo os estertores da língua de fogo e o lume da manhã abrindo o pano para mais um espetáculo.