segunda-feira, 17 de maio de 2010

Tamanduá

Eu voltava para casa, anos atrás, através dos amplos espaços das quadras. Era bem no meio da seca. O capim esturricado e o ipê florido se moviam com estudada lentidão. Nessa época do ano há um colorido todo especial se misturando com a poeira e a fumaça das queimadas. O amarelo felpudo, tal como uma abertura de cena, descortinava um azul intenso ao sol. Observar o entardecer róseo azulado nos meses de maio e junho, era perceber a fauna invadindo o tempo suspenso no horizonte do cerrado. As árvores, em contraste, têm a copa ressequida, folhas duras, o tronco vigorosamente rugoso e cascudo. Contudo, se retorciam como bailarinas flutuando no horizonte da savana tupiniquim. Ontem, hoje de novo, amanhã outra vez, na verdade todos os dias não passam de prelúdio para ver o brilho metálico da lua refletida no lago. Longe, sempre lá, na lonjura.

O caminho para casa me obrigava a passar em um grande campo, mais de quatro quadras, ainda sem blocos e com a vegetação nativa intacta. Eu caminhava ao léu, pelo caminho poeirento. A terra virgem era vasta; de ambos os lados e na frente, planalto ermo, via-se toda sorte de vida, ainda imaculada. O dia estava muito claro, de modo que em todo arrabalde se vislumbrava perfeitamente todo ritmo do final de tarde. Na minha frente, à direita, via-se um filhote de tamanduá-mirim. Chegando mais perto, pude ver uma carcaça, cópia perfeita da cria cuja dança tresloucada denunciava o parentesco maternal.

O cadáver do animal estava com um profundo corte em sua cabeça afilada. Uma das patas fora cortada, e o resto de um formigueiro aparecia como lápide de um macabro ritual. A criatura assassinada revelou-me um estado de ânimo causado pelo cansaço. E essa fadiga devia-se ao fato de que, tendo estado na véspera em Itiquira, e passeando então nas trilhas, adornadas por uma infinidade de animais, por entre as milhares de árvores, encontrara mais de um tamanduá, que, na sua luta diária, despertara em mim uma curiosidade incomum.

- Il y a quelqu'un – disse eu, gritando no deserto.

Quando, nesse dia, voltei para casa e me deitei em minha cama macia e larga, da qual me orgulhava, e me cobri com a coberta, levei muito tempo para conciliar o sono. Lembrava ora a expressão assustada do filhote, ora os restos da mãe. Não me vinha à mente a idéia, com acento, de que a morte de animais era o preço cobrado pela cidade que nascia. Eu estava em casa.