segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Balada de Baco

Suavemente a vista se acostumou com a escuridão do dia já claro. Pequenas gotas de luz penetram o quarto escuro sendo divisado ao poucos. Não gosto de levantar de supetão. Preciso ir me acostumando com o despertar. Um adágio preludiando o vivace que se anuncia. Assim se inicia o longo e penoso devir. Não que seja um fardo, uma coroa de espinho, mas hoje especialmente sinto que a jornada será longa. Também, depois da noitada de ontem. Onde já se viu. Em minha idade sair embevecido atrás de uma ninfetinha.
A cabeça lateja e ela ali ao meu lado. Olho seu rosto e penso ter valido a pena. É uma gracinha. O frescor da idade em corpo perfeito. É... o dia será duro, mas a noite me deu forças para o embate. A lamentar somente a cabeça pesada e enevoada por largas doses insistindo em seus efeitos. A menina era profissional etílica e foi duro dar conta do recado. Minha sorte é que longos anos de treinamento não me deixaram fazer feio. Antigamente a teria chamado de amadora. Mas, hoje? Não passo de um coroa decadente no ofício da birita. Dioniso velho pensando ainda em chefiar as fêmeas. A loucura dionisíaca não impõe moderação.
Mesmo na arte da camarística, digamos assim, se me falta vigor, sobra malandragem. Sem atinar que desatino, faço da flauta meu duo, apenas para servir Baco e sua folia, só para declarar, assim como Orfeu, à cítara, que escuto árvores com música. Não sendo eu filho de Semele e Zeus, nada sei de terras Lídias ou Frígias. Tão somente a tentativa de girar a linguagem. Bem sei que canhestra, longe de ser um ginasta. E ela dorme como uma ninfa. E o medo de que me roube a razão é imenso.
É a loucura rondando o coração. “Viver o belo, fazer brilhar, sem mácula, noite e dia”. Eis aí o Touro mostrando sua máscara, seu escárnio. Eis aí a bruma dos significantes dedilhando uma harpa desafinada. Assim permanecemos: sem saber o que é ser sábio, um império regido pelo imprevisto. Eis aí a linguagem. E ela é bela e dorme. É! Realmente valeu a balada de ontem.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Rabiscos Podres

Um sentimento estranho, incompreensível para mim mesmo, se apodera de meu amplo deserto. Com um aspecto sombrio e abandonado à própria sorte aduba minha amarga solidão, povoa de sons ásperos meu tumulto silencioso. Um violino desafinado sola sua pena cinzenta, seu teclado obscuro e sua tela pouco simpática aos desígnios de uma escrita com abundância de pormenores. Meticulosamente anotado, o textículo engendra problemas complexos. Só mesmo a mesa de um bar, onde resolvemos uma chusma de problemas, para enriquecer o discurso, tornar a fala fluída, florir o riso. Mas aqui não é o bar do pingüim e traço um compasso composto, torto como a quimera do poeta mineiro.

Longe, na lonjura inalcançável, bordo um desenho distinto, feito de traços toscos e tinta negra. Na penúria do isolamento componho um grito mudo, uma paixão violenta e mais uma ratazana é parida. O pútrido aroma de miasmas embala a seresta, acalanta o amor feito com restos de fezes. Note bem, meu desocupado leitor, a dificuldade para se achar um sinônimo para a palavra que norteia essa narrativa. E qual seria o rumo senão esse? Apenas roçar a roça, capinar o mato e plantar a semente da loucura. Semear a estranheza de um sentimento esquisito, eis ao que se propõem esses rabiscos podres.

Vamos finalizar logo esse textículo, pois não me sinto no direito de lhe impingir tantos destinos. Posto isto, lamentando ter despendido seu tempo e os seus recursos intelectuais em questões menores, elaboro mentalmente um projeto de final, que, mais uma vez, se mostra de forma pouco nítida, com nenhuma precisão e uma lógica de alienado. Assim, portanto, penso comigo mesmo, dou as questões por encerradas.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Labirinto do Tempo

Antigamente, já faz tempo, em minha adolescência distante, perdida para sempre, eu gostava de contar fanfarronadas com afetação e presunção. Hoje, já passado da meia idade, sem que nenhuma expressão assome em meu rosto, o ardor e o dom da eloqüência não passam de reflexo de uma índole sisuda e é mero retrato de um caráter frio e circunspecto. Parece até que neste corpo não existe alma nenhuma, ou, se existe, está fora do lugar, envolta em uma casca tão grossa, como a do pequizeiro, e o que quer que se mova em seu interior jamais produzirá qualquer comoção na superfície.

Desde sempre, ao menos o que diz a memória, em sua imperfeição de diamante puro, me vejo contador de lorotas e potocas quase sempre adornadas pela pedanteria dissimulada. Antes, na nascente da infância, com todas caretas possíveis de um bebê, sem a conspurcação das lembranças, o riso e o choro eram a imagem do silêncio e fotografia fiel de uma natureza quente e leviana.

Agora, é com indiferença que verto copiosas lágrimas sem saber mesmo das furtivas. Meus olhos gélidos não acham graça em nada, não se divertem mais com as curvas da imaginação e, sobretudo, meus lábios cerrados guardam um silêncio pouco curioso. Até receio por mim e confesso que a travessia é muito difícil. Muito mais fácil é pintar grossas camadas dispersas, colocar na tela a confusa combinação de formas, volumes e cores. Rabiscar então... o êxtase da preguiça. Ou não somos, de certo modo, todos macunaimas?

Não vou mais ocupar o tempo precioso de minha belíssima e única leitora. Escute minha boa amiga, esse textículo cínico e debochado, não é mais que mais um exemplo de um tipo de literatura onde a falta de criatividade se expõe em seu mais alto grau de inconsistência. Bem sabes que se me dou ao trabalho de escrevinhar essas mal traçadas linhas, é no único intuito de oferecer ao planeta minha mediocridade, que de tão grande, se perdeu no labirinto do tempo.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Vampira do ABC

Aproveitando O gancho do meu amigo careca, me vejo quase que na obrigação de falar na vampira de vermelho do ABC. O rabo da moça detonou uma histeria coletiva. A hipocrisia humana desconhece limites e esse episódio não passa de mais um retoque cruel na falsa moralidade cristã. O mesmo punheteiro consumidor de revistas, revista não, coisa muito antiquada, sítios de putaria é o mesmo que chamou a personagem em questão de piranha. A mesma menina de família, invejosa das formas voluptuosas da vampira, que a xingou, vai chupar o caralho do namorada enquanto ele pensa na rabuda de vermelho.

E o vestido nem era tão curto assim. Um tubinho propício a devaneios inconfessáveis e maravilhosos. Aliás, até me lembrou um catecismo do Carlos Zéfiro. Alcides Caminha é um dos maiores intelectuais dessa terra de Pindorama. Foi o primeiro a dizer em alto e bom som: a mulher não só goza como gosta, e muito. Por falar nisso, nunca vi expressões tão fora de propósito como as famosas vou comer, já comi, nunca comi uma bucetinha tão gostosa e por aí vai. Afinal, quem engole quem? Parto do princípio que comer implica em engolir. Diante disso é indubitável que são as mulheres as comedoras. Ou não somos literalmente deglutidos por uma caverna que Platão jamais ousou pensou haver tantas coisas entre o céu e a terra, ou melhror, entre a entrada e a saída.

Tá legal que a dita é a maior Raimunda, feia de cara boa de bunda. Mas daí a suscitar tamanho ódio. Se as universidades, as faculdades, os colégios de ensino médio fossem expulsar as ninfetinhas desfilando seus corpos esculturais em apertados vestidinhos, creio que teríamos uma academia feita apenas para os "machos". Seria preciso também censurar a globo, o sbt, a record, a playboy, a sexy, colocar cadeado em oitenta por cento das páginas dessa rede virtual e, sobretudo, apaziguar as mãos de adolescente ávidos por sexo.

Não me estendo mais, pois a página vai chegando ao final e é firme propósito do poupadordeporra, como ele me disse, manter o padrão de uma lauda para esses textículos. Sendo assim, rogo encarecidamente aos deuses que coloquem luz na cabeça desses obtusos senhores e senhoras da decência.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Pateta

Acho que estou ficando velho. Vezes me pego naquela saudade do antanho, tão grande aos meus olhos infantis e tão pequena à minha vista míope. Fico pensando se não estou no time dos nostálgicos, daqueles que sonham com o passado de forma obsessiva. As retinas fixaram o tênis conga, cujo chulé era terrível, a vila sésamo, o sítio do pica-pau, o Emerson Fittipaldi, os noventa milhões em ação, que no meu modo de entender estavam mais parados que criadouro de mosquito da dengue. A memória viu o surgimento da televisão que precisava esquentar para "pegar", a consciência aflorou ao ver carros queimando de rodas para o ar, ao mirar fardas iradas perseguindo moscas indóceis e, finalmente, tomou juízo de sua careca, já no final da adolescência.

Não estou dizendo que estou saudoso... Brasília era uma fazenda sem porteira, sem arames e se respirava o ar pesado das casernas. Ficaram gravados para sempre o descampado destes horizontes, a largura das pistas, os belíssimos crepúsculos, a enorme melancolia das paisagens, como diria certo poeta recifense a propósito de Belo Horizonte. Sexta-feira era dia de vasculhar a cidade, sair por aí procurando festas pelas quadras. Mais tarde fui saber que era dia de fechar a Rua do Beirute. A truculência mais uma vez invadia a avenida e saia distribuindo saraivadas a esmo.

Sair atrás de uma festinha era o máximo. Nessa época não tinha interfone, muito menos vigias e as portarias viviam abertas. Era só ver umas luzes diferentes que já subíamos.

- Olha, é no quarto andar, na entrada do meio. Dizia um.

- Que nada! É na segunda portaria. Olha só as luzes, naturalmente estão na sala e, portanto, é a segunda entrada.

Lá íamos, sem nos importar em sermos mal recebidos, coisa que raramente acontecia. Foi em uma dessas festinhas de pré-adolescente que conheci aquela que eu poderia chamar de primeira namorada. Não obstante eu já ser meio escolado na putaria. Minha prima cuidou disso. Com dez anos já tinha o cabresto estourado. As punhetinhas que a safada me fazia eram indescritíveis. Acho que hoje ela seria processada por pedofilia. Ela nem sabe o bem que me fez. O pepino entortou desde cedo e é um de meus grandes companheiros até hoje. Graças ao chegado consegui mulheres que não me dariam a mínima em função de minha beleza. Cumpre dizer que sempre fui mais feio que mudança de pobre, mesmo no auge da adolescência.

Magro, tipo tuberculoso, careca, olhos embaçados, barriga sempre proeminente, mas senhor de um grande e robusto companheiro. Ágil nas curvas, pouco desgaste durante a viagem, profundo conhecedor dos caminhos e com certo ar abobalhado. Acho que isso inspirava confiança. Sabe como é... os patetas sempre são ignorados fora de sua função.

Isso ficou grande demais, melhor dar por terminada. Assim mesmo, repentinamente, contra todas regras da boa escrita. Fui.

domingo, 8 de novembro de 2009

O Convidado

Expor a fratura que dilacera meu ser? Jamais! Contar lorotas sérias? Talvez! Ocupar a mente em assuntos desinteressantes? Sempre! Os leitores do poupador hão de convir que a tarefa é ingrata. É como subir trinta andares de escada. Sempre chegaremos esbaforidos, doloridos e arrasados. Mas a gente tenta e lamenta o intuito não alcançado: o trigésimo andar. Apenas o cansaço por testemunha. Já o disse e repito: minha vida é destituída de qualquer curiosidade. Nada além do banal, do banalíssimo. Não tenho filhos nem amigos, moro só e meu cotidiano se repete como a pedra de Sísifo. Não há uma só novidade que possa ser dita.

Acordo todos os dias às cinco da manhã. Primeiro bato um papo cabeça com o celite boca larga, tomo um copo de água e os comprimidos impostos pela idade, molho as plantas, faço um café, fumo um cigarro e vou tomar banho. Higiene feita coloco a roupa surrada, fumo outro cigarro e vou para o ponto de ônibus. São sempre as mesmas pessoas, há quase trinta anos. Nunca falei com nenhuma delas. Aliás, minto. Uma única vez troquei sussurros com uma moça, até bonitinha. Note que são todos meus vizinhos, com a rotatividade que é inerente ao caso, todos me conheciam e eu conhecia todos. Éramos completos estranhos.

Chegando ao Plano, ia direto para minha sala. Sempre era o primeiro. A repartição só enchia por volta de nove horas. O momento de que eu mais gostava: a solidão do horizonte se enchendo de luz. De minha sala eu podia avistar o lago e isso me bastava. Uma vez quiseram me transferir para o subsolo. Não aceitei. Procurei o sindicato e não mexeram comigo. Ameacei processo por desvio de função, abri mão de cargo comissionado, mas nem isso me tiraram. Afinal eu era um dos poucos para exercer a função. Os outros estavam em cargos melhores e viriam para esse ministério sem força, mero bibelô, pingüim de geladeira, como os políticos diziam.

Sempre almoço só e não gosto que sentem em minha mesa, por isso procuro uma atrás da pilastra. Ninguém gosta de sentar lá, então fica sendo minha. A tarde é mais movimentada e a parte que menos me agrada. Todos os dias, mesmo que não haja quórum, vou ao congresso para encontrar chefes de gabinete, ou até mesmo o deputado ou senador, conforme for o caso. Simpatizei-me com um paraibano. Sujeito engraçado, contador de causos. Nunca soube seu nome, apenas que era paraibano, de Catulé do Rocha. Aliás, a Paraíba só tem cidade com nome engraçado. É Catolé do Rocha, Remígio, Bananeiras, Boqueirão dos Dantas, Lagoa Tapada e por aí vai.

Não vou mais torrar a paciência dos leitores, se é que eles existem, mas o poupador, de quem partiu o convite para esses rabiscos, me garantiu que são em número de milhares. Fico até envergonhado. Imagina... milhares de pessoas lendo o que eu escrevi.

sábado, 7 de novembro de 2009

Indulgência Pós Moderna

A memória é um enigma e possui significados estranhos. Vários escritores fazem da infância sua fonte. Desnecessário dizer que primordial. Ao contrário do que sugere o senso comum, a primeira idade não é feita só de paraísos, de coisas a serem feitas, mas há o lado obscuro, negro de um desconhecido nem sempre simpático. A sensação de volumes imensos te oprimindo, a leve percepção dos passarinhos e o corcunda da esquina te espreitando, todos estão presentes no alvorecer do ser.

Eu particularmente sou um desmemoriado. Tudo se confunde em borrões não definidos, como se fosse um míope sem óculos. Até o que aconteceu ontem me é estranho. Não fixo absolutamente nada. Vivo o dia como se fosse um rio a me levar, sempre na espreita de mais uma cachoeira. Acho até estranho que os escribas tenham retido em suas mentes todas as impressões de coisas que aconteceram há tempos. Cada cena carrega uma série de odores, sensações táteis, visões, imprevistos, sutilezas que só uma memória prodigiosa poderia se lembrar. Por isso fico com o essencial, aquilo que não desgrudou mais de minha existência. Como, por exemplo, o hábito de estar sempre só.

Bem sei que sou benevolente, diria até indulgente com minha amnésia absoluta. Seria um completo fracasso como memorialista, até porque a digitação sai solta, sem revisão e sem pretensão. Ou como diria certo bruxo carioca: vão aqui reunidas narrativas escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor.

Dessa maneira, bem ao sabor do tempo perdido, rasgo a lembrança e me lanço na aventura do desconhecido. Embarco em uma nau onde a surpresa é a onda, nada de panorâmicas em um passado que não há mais, a não ser na memória imprecisa e cabotina de um narrador qualquer. Tenho por mim a efemeridade como tal, ou não sou um sujeito do pós moderno? Praticamente nasci com o dito, sendo ele um pouquinho mais velho que eu.

Sendo assim, coloco ponto final em mais um textículo tosco, mal ajambrado e que certamente não irá agradar ao meu cioso leitor e minha adorável leitora.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Maratona Etílica I

Às três da madrugada, depois de longo périplo pelas quebradas dos botecos, deitei-me. Durante o dia estive na catrevagem, dando início a maratona etílica. Meu horário sempre foi o de um profissional cioso de seus afazeres. Os ponteiros não mostravam mais que nove horas e um quarto da manhã. Lá estava eu bravamente postado no balcão, já que os companheiros de jornada tardavam, conversando com o Afrosinésio, dono do estabelecimento.

- Afro, anda logo com essa porra aí que já estou com síndrome de abstinência. Ó pá cá, ó. Tudo tremendo.

Convém deixar claro logo de cara que o capiau era mais negro que asa de tiziu e ostentava um corpanzil nada desprezível. Um verdadeiro armário de seis portas.

- Calma rapá! E afro é a puta que te pariu. Afrosinésio pra cabra safado como tu.

- Porra, já vi que brochou. A patroa não compareceu, né meu camarada?

- Lasquera, hora dessa da manhã e já agüentando manguaça.

- Que isso Afro, cê sabe que você é meu e boi não lambe.

- Mudando de pau pra cacete. Ontem teve a maior zica aqui no buteco. Neguinho tá a fim de pegar o professor.

- Professor de merda nenhuma! O cara é uma anta e já tá mais que na hora de correr com ele daqui. Até jogo lenha na fogueira se preciso for.

- Dessa vez o cara provocou o ceará e o bicho ficou danado. Jurou ele. Rapá, o cara é bruto que só a porra. Se eu fosse o professor caçava beco ligero.

- Afro deixa essa porra pra lá que isso não me diz respeito e me diz se aquela gata lembra? A de quinta-feira. Ela deu os ares daquela bunda maravilhosa por aqui de novo? Cê viu só? A puta me deu o maior mole, me agarrou, me beijou, pegou na minha pica e na hora do vamo vê deu na carreira. Porra fiquei puto. Nem o telefone quis me dar. De pau na mão, na maior covardia e sem telefone. Não me deu nada. Mas ela volta, eu sei.

- É, essa foi foda. A moçada já tava sacaneando, rolou até uma aposta se era pra viagem ou se ia comer aqui.

- Bem que eu tentei, mas ela não quis. Argumentei que a mesinha era ideal. Escondida, ninguém ia ver. E eu sabendo que todo mundo já tava de olho. Queria mesmo é ter dado um espetáculo pra esses punheteiros desses seus clientes.

- Meus clientes e seus amigos.

Nisso chegou o primeiro representante da trupe e nos sentamos. Mas isso já é outra estória.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Olhos de Lince

Morreu depois de cem anos um autor que foi fundamental em minha visão de mundo. Minha Vó quase alcançou seu feito, mas assim como você, me deixou lembranças e palavras doces. Foi-se o corpo Lévi-Strauss. Difícil defini-lo. Antropólogo? Filosofo? O que seria o esmiuçador da cultura humana? Algo indefinível como uma canção reverberando no ar. Não quero lembrar do acadêmico, recordo apenas do homem sensível aos outros, ao diferente humano. Compreensão é uma coisa que está faltando ao ser pós moderno. Nesse tempo difuso o próprio umbigo passou a ser referência de tudo. Também pudera. Com tantos compromissos já nos esquecemos dos familiares, dos amigos. O que dirá do desconhecido que passa por mim olhando o chão, como se eu fosse um alienígena e o pior é que nada fazemos para destinar um pouquinho só de atenção a quem quer que seja.

Não enxergar meu vizinho se tornou a própria visão. Eis que sua grande lição perde força no torvelinho de tempos imprecisos, indefinível em seu aspecto torpe, vil, não no sentido da impossibilidade de se estabelecer parâmetros para coisas tão vastas como é sua obra. Não tenho a intenção de tecer loas ao cosmopolita que foi você. Bélgica, França, São Paulo, Goiás são paisagens insuficientes diante do vasto mundo, como dizia certo poeta mineiro. Um século! Simbologia simpática das ironias históricas. Tanto ao seu gosto se crava um símbolo em sua vida. Afinal, trata-se de uma existência longa, de olhos que presenciaram mudanças substanciais, de tantas e tantas mudanças.

Sendo assim, vamos dando por terminada essas exéquias simplórias, sem o talento verdejante de sua escrita. Meus olhos míopes jamais seriam os de um lince e sou um péssimo jogador de xadrez. Minhas primeiras jogadas, da mesma maneira que as últimas são pobres de raciocínio e toscas em sua estrutura.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Pinho Emudecido

Vivi sozinho os meus últimos dias. Não me lembro de quando nasci e não tenho a mínima idéia – com acento – de quando morri. Apenas lampejos brilhando no horizonte, eis aí minha memória, que de tão curta não passa de uma paca. Até acreditei em um sonho, daqueles bonitos e, mesmo que digam o contrário, coloridos. O último lamento do guerreiro é cantiga de aboio, cantilena da saudade, modinha serelepe no lombo dos olhos. O resto é silêncio. Viver o crepúsculo de uma existência nada mais é que sonhar acordado. Divisando perfeitamente os contornos da noite se ganha o horizonte, se navega na crista da lonjura e, sem remorsos, aderna lentamente para o poente.
Vivi sozinho os meus último dias. Não me recordo da semente e tampouco diviso a podridão. Apenas restos de memória carcomida pelo vírus da discórdia. Eis aí minha louca cabeça, que de tão louca não passa de uma touca. Até pensei em ser feliz, bem do tipo receita feita para muitos e, mesmo que digam o contrário, saborosa. A derradeira lágrima do covarde é seca como o cerrado, casca grossa da vileza, galhos retorcidos no lombo dos olhos. O resto é ruído. Morrer a alvorada de uma inexistência nada mais é que dormir de olhos abertos. Confundindo até a mais clara manhã se perde o horizonte, se afunda no poço sombrio do presente e, cheio de vergonha, levanta rapidamente para a nascente.
Meu epílogo foi banal, como simplórios são todos os finais. Como reminiscência apenas o sorriso maroto de um desconhecido. Vestido de verde se destacava dos demais. Nunca pensei que meu velório fosse dar tantos ilustres desconhecidos. Só os amigos, para ser mais exato três, não foram ao rito macabro. Eles sabiam que eu não queria nada daquilo. Isso foi coisa da minha ex-mulher. Até na morte ela me aporrinhou. Será que finalmente terei sossego. Duvido. A diaba tem pacto com o tinhoso e é bem capar dela me encontrar no purgatório. Aí faço como a piada: nem vem que não tem. Nossa promessa foi até que morte os separe. Portanto, estamos devidamente separados. Faça de conta que sou um estranho. Aliás, o que não seria novidade alguma.
Vezes me pego perguntando como alguém pode viver com outro e não ter sequer a noção de quem seja seu parceiro. Toleimas teimosas de um tonto. Agora sim. A névoa se dissipa e vejo claramente o dia em que meu pinho emudeceu. Era uma bela tarde de maio, no tempo em que o conluio do céu com as cores se revela. Ela estava linda em seu vestido de alça. Parecia uma deusa grega, uma dessas imagens diáfanas, etéreas e destinadas ao mais puro prazer. A primeira vez que entrou em casa matou com um simples olhar todas minhas plantas. Infeliz o cego que não crê em seu próprio olhar. Foi nesse dia. Até as cordas do violão arrebentaram. Foi o início do fim. E é só, fui. Fim!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Fábula Amoral

Aproveitando o gancho da crônica anterior, mudei a foto em homenagem à derradeira florada do ano. Que, aliás, foi pródiga e exuberante. Tendo deixado o arraial pintado de amarelo, rosa, branco, roxo e azul. Um oásis se abriu na seca do cerrado, como costume anual. É na estiagem que floresce a vida. Na pele terra-casca calcinada pelo sol o cerrado transborda cores.
Depois de tudo isso só me resta uma explicação; eu, o narrador; afinal terminei a última crônica dizendo desconhecer a cidade e seus arrabaldes. Além disso, inicio essa com um textículo soando como loa à natureza ressequida de seu solo. Meu par de leitores certamente já não se incomoda mais com essa lenga lenga e ignora solenemente tais incongruências. Diante disso me furto a explicação, já que tenho apenas os citados leitores. Pensando melhor, cabe sim uma palavrinha. Vai que aparece um outro tresloucado para ler esses arrazoados. Reiteradas vezes foi dito aqui nesse espaço cibernético que a confusão habitual é uma tensão sem resolução, ou seja, uma cadência extendida de dominante reinando soberana nessas narrativas. Seja o poupador, o autor, o narrador, o dono da senha, os convidados, enfim, seja quem for a digitar, sempre estará presente a confusão. Vários exemplos estão disponíveis para o leitor arguto e cioso da ciência da escrita confirmar a veracidade do que digo.
Um emaranhado de sandices prolifera rumorejando sua empáfia literária. Eis ao que se resume esse monte de rabiscos. Como até já notado pelo próprio autor. Creio ser ele o sujeito mais capacitado para esclarecer os pobres mortais que, tal qual a mim, arriscam um salto no escuro.
Não querendo mais tomar o tempo precioso de meus dois únicos leitores, dou por finada mais essa fábula sem moral.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Os Segredos da Cidade

Ele conhecia todos os esconderijos da cidade e voltava a eles como a um bar no qual se tem a certeza de encontrar os amigos de sempre. Antes de qualquer coisa, não se pense que o cara era um andarilho qualquer. Devido ao seu hábito de atravessar a cidade, todos os lugares secretos, em seus vazios misteriosos, da província lhe eram familiares. Tudo começava com o desfalecimento da tarde. Ao sair para a rua no início da noite, surgiam diante de seus olhos esquinas inexistentes e pontos luminosos pareciam fixar a cidade em uma grande tela.
A cidade parecia sitiada, se entregando docilmente já nos primeiros focos dirigidos à ela. Quiosques, postes, quadras, blocos se cristalizavam tais como as nuvens. Figuras que nunca se repetiam em seus lúgubres passeios noturnos. O interessante, o que me chamava a atenção era justamente sua negação do dia. Como é do conhecimento de meu par de leitores, a luminosidade é uma das grandezas dessa povoação. Todos se admiram da grande angular clara do horizonte azul. É quase unânime a sensação causada pelo horizonte aberto, límpido e imponente do cerrado.
Parafraseando certo pensador alemão da Escola de Frankfurt eu diria que é preciso aprender novamente a andar sobre o espesso vazio dessas quadras. E ele parecia estar tentando com denodo e afinco. No pouco que pude testemunhar, tive a impressão de que sua tarefa única nessa terra era essa: testemunhar o alvorecer de uma cidade. O que me causava certo mal estar.
Contudo, nenhuma cidade pode revelar por completo sua singularidade. O tempo ainda há de deixar sua marca, assim como fez com Nápoles, com Praga, com Ouro Preto e tantas e tantas outras.
Eu, por meu lado, sempre tive a sensação do estranhamento, de ser estrangeiro nessa urbe pouco conhecida.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Solo de Violoncelo

Depois de longo e tenebroso inverno, voltei. Fiquei até tentado a seguir os ditames da canção do “rei” e dizer que aqui é meu lugar. Coisa que não condiz com a realidade.

Na verdade, não sendo mais que uma miragem, só existo na mente corroída pelo álcool desse que se diz narrador. Existir na ficção de um outro fantasma demonstra apenas o desatino de se ter um pretenso lugar. Seria o mesmo que tecer um longo labirinto onde a saída seria mera ilusão.

Voltar de onde nunca se saiu. Eis o paradoxo supremo de uma falácia.

Sendo assim, só provoco a ausência, faço do trato um prato feito de trapo e desfio a ladainha das carpideiras. Lágrimas envolvendo a chuva, desfilando a falta, o que não há. Noto nesta retomada a parca criatividade, a coisa destituída de si, do outro, de mim. Olhares lançados ao acaso não resolvem a pouca idéia – com acento – do textículo.

Causar o abandono não é casual. É a confissão da inaptidão, da fúria inoperante de um artífice. Portanto, nada mais lógico que a narrativa saia, assim, meio chinfrim. Penso que juntamente com a falta de idéia, veio a mão fora de forma, sem a afinação perfeita para o solo de um violoncelo.

Mas o fato é que voltei. Com a mesma opacidade de sempre, a mesma tela descolorida, não pelo tempo, mas em função de uma mediocridade intensa, uma total carência de talento.

Insisto, persisto e crio mais uma inutilidade supostamente vestida de sentido. Poderia até dizer do malandro que conheci no final de semana. De sua lábia de um falso carioca. Pernambucano da gema dava aula de carioquês. O filho morou um ano no Rio e por isso ele fala meio acariocado. Disse-me o atoleimado.

Não o faço em respeito ao filho. Fica esse textículo mal ajambrado, sem costura nem alinhavo. Apenas a coluna torta do cerrado em dias de festa.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Baga Bandeirosa

Não gostaria de ser o último a sair e ter que apagar a luz. Final de festa sempre me pareceu um ritual macabro, como os da família Manson. Toda vez que via um mundo de copos pela metade, cinzeiros cheios, marcas de pés pela parede recém pintada, restos de comida jogados no chão, corpos esparramados pela cozinha, pelos quartos, tudo isso me causava repulsa. Pior era saber que eu estava ali para presenciar a cena. Assistir de camarote seres amarrotados na névoa da loucura, eis o princípio básico de um Dioniso sem música.

O mesmo asco me assalta ao perceber que onde quer que eu vá me deparo com música. Umberto Eco escreveu recentemente, acho que em julho, no New York Times, um artigo interessante sobre essa questão. Assunto que me persegue já um bom tempo. A onipresença da música me oprime. É o cúmulo do absurdo a imposição de qualquer tipo de som que seja, sob qualquer forma que se apresente. O horror dos horrores é a new age de consultórios e afins, seguidos de bem pertinho por Fur Elise em serviços de atendimento ao consumidor. Mesmo considerando meus interesses regendo o parto da composição, operando o drama de nossa existência, não vejo como desvencilhar-me das senoides. O ser humano nunca escutou tanto e nunca foi tão surdo. Eis o axioma sonoro de um tempo solitário, perdido nas ondas do silêncio.

A linguagem das musas, coisa mais careta, não merece mais consideração que um adereço cênico. Um simples bibelô ornando os afazeres, pano de fundo de ações cotidianas, de gestos repetidos à exaustão. Sendo assim, mesmo não querendo, da mesma maneira que Umberto Eco, me rendo às palavras pejorativas de Kant: "As outras manifestações artística provocam impressões duradouras, a música apenas deixa impressões passageiras".

Na verdade é toco de cigarro, a baga bandeirosa, o suspiro de uma geração esquecida, quem disse isso mesmo? Teria sido Fitzgerald? Que sei eu de literatura... Bem que gostaria, mas os compromissos me chamam, clamam por minha presença preguiçosa. Sendo assim, digo adeus, aceno para os que ficam, faço sinais para os que partem.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Um Ano

Eu, o dono da senha, me vejo na obrigação de tecer algumas linhas aqui nesse espaço. Fez um ano, em julho, que a página digital do poupadordeporra navega nas ondas cibernéticas. Mais de cem crônicas foram postadas, meia dúzia de leitores perdeu seu tempo com as bobagens aqui publicadas, e o mundo permaneceu exatamente onde sempre esteve. O que só comprova a inutilidade de escritos mal alinhavados. Não sei o que pensa o poupador, ou mesmo o autor, ou o editor, ou até o narrador. Eu, de minha parte, garanto que apenas empresto a chave de abertura, ou seja, a palavrinha mágica que abre essa porra.

Inclusive foi uma amiga desocupada; sim, pois para ficar lendo essas garatujas é preciso que seja um vagau de marca maior; que me alertou para a efeméride. Em princípio ironizei e disse que isso não merecia um peido. No entanto, pensando melhor, achei que deveria eu mesmo redigir algo comentando o feito, já que nunca passo aqui para ler ou escrever algo. Apenas abro o caminho, assim como Exu. E encarei a escrita como um ebó em minha homenagem. Não é fato que sou cúmplice desse monte de asneiras? Diante disso, caros leitores do poupador, confesso que os redatores dessa porra nada me devem, não só na orientação das idéias, mas em relação ao estilo, e não explico por que e de que maneira.

Há algumas explicações para esse vaivém de idéias e de impressões. Mas há uma que é talvez a única real. Simplesmente não passo de um blind drunk. Ou como diríamos em terras tupiniquins: um bêbado. Esclareço: sou um melancólico. Segundo minha irmã, herdei essa disposição de nosso pai, já que nossa mãe era vivaz e alegre. A tristeza, em verdade, é minha única herança e dela faço meu porto seguro. A pinga é apenas um complemento avivando minhas dores e desassossegos, uma fonte perene de agitações e de misérias. Assim se passou um ano. O poupador começou a pensar o espaço como um ato de dedicação, o narrador sempre pronto para quando vier a inspiração, o escriba não precisa de animações, basta-lhe o talento que acha ter, o editor não está nem aí para nada e naturalmente seu projeto é financeiro e, finalmente, o narrador não passa de um pateta. Mas, como disse, sou conivente com esse arrazoado e não tenho muita noção dessas coisas. É só.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Silente Sussurro.

Era tarde. Adolfo não se deu conta de seu devaneio e muito menos da falta de Pulquéria. Andou por mais de duas horas em torno de seu umbigo e não notou a despedida de sua velha. Ela carecia de descanso. Tinha subido fazia mais de meia hora e cuidou imediatamente de cerrar os olhos e dormir. Lembrava-se vagamente que na hora tentou levantar os olhos em sinal de despedida, mas não teve forças para o conseguir. Quando entrei na sala, não moveu um milímetro sequer de qualquer de seus membros, não esboçou nenhuma reação, embora eu soubesse muito bem que Adolfo havia me visto, ou melhor, tinha tido a sensação de minha presença. A visão que se abria diante de mim era cerimoniosa e com uma cortesia silenciosa. Tudo o mais estava calado. O antigo relógio de parede, a vitrola talhada em mogno maciço, o canário belga, nem mesmo o córrego no fundo da casa rumorejava. Silente sussurro.

Duas semanas antes eles fizeram uma viagem para ver o único filho. Só depois de ter feito alguns quilômetros é que se lembrou de que não via o filho fazia mais de dez anos. "Quando foi mesmo a última vez? Acho que no enterro de Belarmino". Não se deu ao trabalho de perguntar para Pulquéria quando foi que viram Adamastor pela última vez. Nos últimos tempos andava mais calado que de costume. No dia seguinte, já rompendo a manhã, se achavam na cidadezinha que o filho resolvera morar. "Como pode? Parar num fim de mundo desses. Se ao menos houvesse perspectiva para ele crescer. Mas não, veio matar seu talento nessa pocilga infecta". A briga dos dois foi por causa dessa escolha. O filho pródigo resolvera casar e largar tudo, mudar de vida radicalmente. Abandonou uma promissora carreira para ir se enfiar no interior mais escondido.

Não que o desagradasse, mas ele já era um velho quando se mudou. Adamastor não. Era garoto, tinha o mundo pela frente. "O senhor também mora no fim do mundo". Foi o que ele disse. Agora, prestes a rever o filho, a frase badalava feito sino anunciando missa. Três horas depois, já quando o sol dissipara a neblina encobrindo o vale, estavam diante da fazenda, tendo visto os belos morros no final do vale e as esplêndidas plantações da fazenda do já agora coroa Adamastor. No fim de um quarto de hora estavam em frente à porta da sede. Pulquéria, coisas de mãe, não escondendo a ansiedade, adentrou a casa feito um furacão. Mas algo estacava Adolfo. Não demorou muito assomou à porta a figura de um homem robusto, com olhar austero e fixo, envolvendo a mente de um velho vendo diante de si a frutificação de seu trabalho. Morrer sem deixar de ver o filho era o sombrio receio que o assaltava.

Nota do poupador: continua.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Crítico Predileto.

Não me peçam minúcias nem preliminares sobre o assunto. A escrita desdenha o texto fino e o acabado das personagens; contento-me com quatro linhas tortas, mas representativas. Minha imaginação é preguiçosa e logo encontra dificuldades na primeira palavra, por isso não me aventuro em ficções. Não venho a esse espaço por motivos de amores ou por razões confessionais, mas para ver se alguém, um parente ou um amigo, ou um pedreiro, possa ter a mesma reação que o escriba. Não eu, já que não existo subsistindo. Já o disse diversas vezes: a personagem, o narrador, o escriba, o poupadordeporra, o autor, o dono da senha, nenhum deles sequer roça em mim. Tudo não passa de ficção barata com ares de profundidade. A pretensa densidade de algumas crônicas é fruto de uma árvore torta, cascas grosas, folhas duras e calcinadas pelo sol. É mero espelho onde os vários escritores, que por aqui passam, desfilam suas frustrações. A leveza, por vezes tentadas, é de chumbo. E, finalmente, a pretensão é marca registrada.

Não posso me furtar a esses comentários diante da tentativa tola de um tal Libório. De maneira pouco sutil, tenta nos envolver em um mistério totalmente destituído de interesse. Sim, a minha primeira impressão foi de asco; íamos ter uma narrativa longa e falaciosa. Depois, lembrei-me de famoso conto de certo literato estadunidense, e achei estranho o desenvolvimento do tema. Enfim, como é que ele, que tanto a queria, embora como um vulcão prestes a explodir, ia separar-se dela repentinamente, para reviver um passado banal? Não que a vida de casado fosse original.

Após alguns minutos de silêncio, sincero, meio calculado, retomo a narrativa para persuadi-lo da minha crença de que deve ser posto ponto final nessa história do Libório. Digo-lhe que é melhor não dar curso ao barco desgovernado. Uso palavras rígidas, às vezes enfáticas. Noto que o par de leitores que acompanha essas sandices do poupador, ou do Libório, ou missivas malucas, traz nos olhos certo constrangimento. Bem sei que meus comentários são uma espécie de sopa fria em sua ânsia de algo bem escrito. Creio, ainda, que essa última frase é motivo suficiente para que eu termine essas considerações. Eu cá fico com meus remorsos e saudades.

Abraços, e não me leve a mal.

Seu crítico predileto.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Libório II

Graciosamente o dono do espaço cedeu-me mais algumas linhas para eu contar minha derrocada. Sem querer ser cabotino, já o sendo, me vejo na obrigação de falar um pouco sobre essa pessoa chamada Libório. Embora eu já tenha adiantado alguma coisa, não falei do essencial. Cresci entre mulheres. Tias e primas me rodeavam. Apenas meu irmão como companheiro. Daí que passei a compreender, embora sem o apreender, cada mínimo gesto das fêmeas, cada olhar furtivo, cada desejo escondido em cada suspiro enfastiado.

Isso me valeu muito em minhas caças. Sim! Era assim que me sentia ao abater mais um belo exemplar feminino, um verdadeiro Hemingway. Eu, Libório, era, de fato, um galã muito feliz. Possuía cabedal de longa monta e dele fazia uso indiscriminado em minhas mentiras elegantes. Bem sei de como eu era querido pelas moças, que tão bem eu sabia cativar. Agia sempre em um plano medíocre, de vaidade e pura ternura por tudo quanto se relacionasse ao sexo oposto. Ternura esta na mesma medida de meu desprezo, pois tudo que amo me é desprezível.

Quando a vi, no mezanino da rodoviária, como narrei na primeira na primeira vez, senti bem que minha vida sofreria um destes danos que nada pode reparar. O fato é que me casei com a moça e me desfiz em mesuras no único intuito de esconder o que ia em meu íntimo. Meu grande e único erro. Durante todo tempo de nossa união, presumi estar a salvo do cântico da rodô. Ela não me fazia perguntas nem remexia em meu passado e, nos três anos que ficamos juntos, nunca a vi olhar para ninguém. Uma vez, cheia de rodeios, mencionou de passagem um de nossos inúmeros e inúteis convidados, já que os festejos eram a tônica, a sub dominante e a dominante de nossa cadência plagal.

Era setembro, quase um ano atrás. A seca estava braba, uma época dura para mim, mesmo tendo passado praticamente toda minha vida no cerrado; era o começo do fim, de certa maneira. Não foi nada fácil para mim, confesso. Mas o canto da sereia tomou conta do meu espírito e retornei ao mezanino. Mas isso, caso haja outra oportunidade, fica para depois.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Missiva Alheia

Anda carcomendo meus miolos, mais uma vez, a preocupação banal acerca da escritura domada, sob seu jugo, fazendo tudo que você deseja, como se faz com um cavalo xucro. Segue até uma epígrafe de um poeta empolado que não gosto e não lembro o nome. Na última crônica percebi querer domar o indomável. Diante disso, não me atemorizei, e de lança em punho segue mais uma tentativa, sempre canhestra, como já anotado em crônica anterior. Dessa vez, trata-se de uma adolescente do século passado apaixonada.

Tão somente só

No dorso do tempo.


 

Corcel indômito

Fugindo das amarras.

T... março de 19...

Oi amorzinho!

Ô barbadinho, a saudade já ta sufocando, já não estou achando graça. Sinto ver as flores secando dentro dos meus livros; sinto ver seu retrato na cabeceira; não posso tocá-lo, nem senti-lo; é papel. E a camisa sem corpo, lembra-me a todo momento que falta uma grande coisa dentro de mim, que só vou encontrar quando o navio dos meus olhos se aportarem nos seus. Você tão longe e eu aqui escutando músicas que gostaria que ouvisse, pois sei que iria gostar. (Paulinho Nogueira só no violão). Queria dividir com você este momento musical, sentados no chão em volta de minha velha vitrola. Aí eu ficaria vendo você de olhos fechados ouvindo a música, te daria um montão de beijinhos ou quem sabe um só, lento, leve e silencioso como um despertar...

Quem sabe até as rosas dos livros renascessem com nosso amor, se abrissem lentamente como a música que ouço agora e enfeitassem nosso canto, como meu jardim, e do restinho de céu que posso ver de minha janela, a estrelinha camaleão se acomodando mudaria de cor várias vezes deixando nosso beijo azul, amarelo, branco... Estou me perdendo aos poucos com a sua lembrança, acho que ouvi você falar meu nome, acho que te beijei mesmo sem você estar aqui, meus lábios ficaram molhados... Sinto meus dedos percorrendo seu rosto, vindos da testa e se perdendo em sua barba. Acho que te vi, acho que vi um gatinho, que você até me olhou; senti isto, sorri. Acho que você deitou comigo sem saber, acho que te amo.

Como faz falta este coraçãozinho que eu roubei, que lindo, meu amor é potente e acertou o alvo que eu quis acertar, laçou seu coração bem como eu quero... Que bom! Eu amo esse presente, esse agora, este fevereiro-março-abril. Nasci porque esqueci da angústia e do medo que me manteve escondida da vida, do amor. Estou apaixonada pela lua, por uma estrela, pelos rios e "pedras", cachoeiras e "barracas". Estou apaixonada pelas flores, pela poesia e pelo violão. Estou apaixonada por você, por mim, por nós...

Continua na outra página.

Não deixe de ler.

Agora 1 minuto p/ os comerciais.

Beba sempre um SORRISO!

E assim foi a tentativa de uma missiva. Ainda me parece que não fui talhado para a escrita.

Esclarecimentos finais: eu, o poupadordeporra, não tenho nada a ver com o textículo acima. O cara pediu para eu publicar... publiquei! Fazer o quê? Digo também que isso aí me parece coisa de boiola, e mais não digo.
É só, fui.


 

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Libório

Meu nome é Libório, sou proprietário de uma grande distribuidora e podia me dar ao luxo de ficar o dia inteiro na rodoviária do plano piloto. Tratava-se de um de meus velhos hábitos, quando não tinha o que fazer em casa nem no escritório, passava as horas admirando as mocinhas em seus trejeitos sensuais. Procurava abordar as mais humildes e bobinhas, pois elas estavam mais propensas a aceitarem meus galanteios. Há uns cinco anos atrás, no mezanino, entre as escadas rolantes, tive uma visão inesquecível, tal era a beleza da fêmea. Oh! As suas belas madeixas fizeram com que eu parasse para recuperar o fôlego! Era um regalo poder ver todos os olhos voltando-se para aquele belo exemplar da espécie feminina. Parecia uma odalisca devassa.

Passei a cercar a caça. Observei detalhadamente seus gestos, olhares e o que fazia. Após ter tomado todos os apontamentos necessários, não titubeei e me aproximei com uma conversa fiada de dar vergonha no conquistador mais vulgar. Como eu havia visto minha deusa comprar passes para a Ceilândia não tive dúvidas em perguntar onde se comprava passes para a cidade. No que fui pronta e graciosamente atendido. Para não perder o fio da meada lancei mais uma pergunta sobre o endereço para o qual eu estava indo. Desnecessário dizer que sou profundo conhecedor do Distrito Federal, não só de Ceilândia. As cidades satélites me eram bastante familiar.

Não foi difícil iniciar uma conversa. Faz-se necessário dizer que o destino me foi favorável, já que o endereço que eu assuntei era próximo de sua casa, o que me facilitou e muito a vida. Fomos deliciosamente sentados juntos. Não perdi tempo e me fiz solícito, educado, engraçado, atencioso, enfim, um perfeito cavalheiro. Quando descemos a convidei para um lanche. Mais uma vez o destino veio me felicitar. Havia próximo um lugarzinho na medida para deixar a ninfeta deslumbrada. Aconchegante e bem simples, como seu belo sorriso sempre com um ar matinal. Eu sabia que ela ia gostar, e muito. Provavelmente nunca tinha ido lá, embora o conhecesse, pois os preços eram proibitivos, não obstante o aspecto simplório do lugar. A comida era de excelente qualidade e eu sabia disso. "Muito bacana do plano baixa aqui pra rangar. Alguns até com seguranças". Falou-me ao ver aonde iríamos.

Foi o início de minha queda, mas isso fica para depois. O espaço narrativo que me foi concedido ficou pequeno. Quem sabe o poupadordeporra não deixe eu terminar amanhã, ou mesmo depois.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Epístola aos Evangélicos

A escrita nos reserva segredos insondáveis, meu par de leitores. Digo isso ao sentar e perceber que não tenho assunto e que irei acabar gerando espontaneamente o que se segue. Essa frase é confusa, mas, como já dito várias vezes, não estou aqui para emendas e correções. A água nascente do pensamento segue seu curso. Não faço aqui análises que não estou talhado para tal. Antes, porém, é necessária uma palavrinha de esclarecimento. No momento em que digito esse textículo, em que faço essas reflexões, uma ponta de dúvida assalta meu pensamento. Seria mesmo possível dominar o texto de tal forma que ele reflita exatamente o desejado? Diante disso insisto na circunstância pouco caprichosa do teclado e o que sair saiu.

Como último comentário, pois não quero fatigá-los com narração minuciosa, digo apenas se tratar de uma tentativa que procura ser o mais fiel possível, sem trocadilhos, ao discurso de um pastor evangélico, vazio ou não, como já dito, não me compete. Boa leitura e que os céus me protejam da ira dos deuses.

"Senhor eu oro para que os trezentos guerreiros tragam a adoração. Meu Deus, hoje o lugar é agora e você tem uma saída, Deus tem um milagre para mim. Derramarei de meu espírito as tolas aparências para acolher sua benção, para receber sua nova unção. A minha vitória é grandiosa, pois glorifico seu nome. Minha glória é uma mensagem abençoada espalhando suas palavras. Meu ardor por ti ouve tua sabedoria. Senhor tem pessoa que só cuida da roupa terrena. Essa pessoa não sabe que estamos diante de ti todo sempre e sua mensagem cuida da roupa espiritual. Bendito seja os servos que estão diante de ti todo tempo. Senhor coloca na minha boca a palavra certa, o instrumento que me permita estar diante de ti e produzir coisas boas. Bendito são os servos de Deus que bebem de sua sabedoria, pois sua palavra é poderosa. E é em nome desse poder que invoco o nome de Jesus para ordenar que o mal, tanto faz se com ele ou u, saia, que o capeta e a macumba saiam e não voltem mais".

O que me causa espanto não é tanto o texto, mas o ator. Quem já teve o privilégio de presenciar o espetáculo sabe do que falo. E mais não digo, pois já se alonga minha demência.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Os Excluídos.

Ontem de manhã, caminhando pela quadra, como de costume, vi uma cena tão interessante como absurda, que determinei logo seria o começo dessa crônica. Agora, porém, no momento em que digito, receio que minha linda leitora e meu cioso leitor não terão a mesma sensibilidade que eu para um episódio que pode parecer vulgar, e talvez indigesto. Releve a falta de sensatez meu par de leitores; graças aos deuses os gostos não são iguais.

Entre o bloco C e o bloco D estavam um ser e sua família acordando. O lugar não era próprio para o remanso de uma estirpe, e o frio estava de cortar a alma, donde concluí que eram excluídos. Dedução mais besta, ainda mais usando uma palavrinha tão na moda. Instante depois vi o patriarca, assim me pareceu, levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos lhe furavam a pele, os olhos mortiços vagavam sem rumo e de quando em quando miravam o horizonte, destituídos de qualquer perspectiva e sem a mínima noção do que fazer. O infeliz estava mais perdido que cego em tiroteio e diante de si uma fogueira improvisada dava seus últimos suspiros. Em frente ao animal, logo lembrei o famoso poema de um pernambucano, havia uma lata, deduzi conter restos de comida, e um galão com cinco, talvez quatro, litros de água.

O que me pareceu, é que o homem fazia exame de consciência. O que ia em sua cabeça não me foi permitido saber, nem ao menos supor, já que essa escritura está tão dedutiva. De certo apenas o relento como companheiro. Teria vindo da Bahia? Seria mais um agricultor expulso de sua terra pela miséria? Democracia, comunismo, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta seus interesses, como diria certo bruxo carioca. Percebo, pelas últimas publicações, certo viés social em meus textículos. Coisa que nunca foi minha preocupação e achava até enjoado, pensava ser assunto para jornalistas e sociólogos, não de escritores, como se fosse possível dissociar uma coisa da outra e como se eu fosse digno de ser chamado de escritor.

Não fiquei para ver o desenrolar, e fui andando, não menos tranqüilo – com trema – que triste. Aborrecido pelo espetáculo inicial do dia, não podia furtar-me de remoer o lauto café.

No outro dia, ansioso como um adolescente, passando pelo mesmo local, não vi mais os excluídos. Pesaroso, verguei-me ao meu egoísmo.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Textículo Canhestro.

Mal convalescia o espírito público do abalo que lhe causou a notícia do afastamento do diretor-geral do Senado, surgiram os casos do atual presidente da Instituição; casos tristes, para ser educado, por qualquer lado que abordemos, e sobre o qual a última palavra deveria ser dada pela opinião pública. Mas estamos no Brasil e somos impingidos por declarações as mais estapafúrdias possíveis. A última pérola do Lácio nos diz que é normal sair indicando parentes e namorados de semelhantes, nos fala que é prática corriqueira desde a colônia. Aliás, para refrescar a memória, o primeiro Governador Geral foi indicado. Portanto, nada mais natural que colocar nos quadros o cunhado da prima da amiga do genro de minha concunhada, que, aliás, não é parente.

A concupiscência nacional desconhece limites e diuturnamente amealha o butim em nossos suores. Bem sei se tratar de tema requentado, como eles gostam de proferir, de razões estruturais, como os revolucionários do boteco da catrevagem enunciam, de uma antiga herança cultural, como nos asseguram os sociólogos, da pasmaceira da população, como é garantido pelos que se julgam fora da tribo de que fazem parte. Enfim, há algo de podre no reino de Pindorama e não é de hoje. As razões? As desconheço. Como praticamente tudo ao meu redor.

Que pouco se cultue a honestidade nesta terra é o que muita gente afirma, há longos anos; é o que acaba de pronunciar um de nossos digníssimos representantes. Veja, deliciosa leitora, não que eu tenha algo contra fulano ou beltrano, é meu costume, quando não tenho assunto, coisa corriqueira, ir por esse mundo das letras, se assim se pode chamar esse textículo, tecendo as coisas mais absurdas. Como você já percebeu inúmeras vezes. Naturalmente a vista cansa, a mão se aborrece e a mente vaga errante. Dessa maneira, termino mais uma tentativa canhestra de escrita.

domingo, 19 de julho de 2009

Supremo e Sublime Deleite.

Morar sozinho tem inúmeras vantagens. Tem lá seus percalços também, mas fiquemos com os benefícios. Dentre jogar cueca na sala, deixar esparramado o jornal, mijar fora do vaso, deixar a toalha na cama e tantas outras, não há uma sequer que se compare ao prazer de devorar uma melancia da maneira que lhe convier. E a minha é do centro, a parte mais docinha, para fora.

Nunca consegui entender a mania das mulheres em quererem que tiremos uma fatia, uma mísera pontinha do meio. Acho até que é um traço típico da personalidade feminina. Em minha convivência com elas estabeleci um método infalível. Tiro metade para mim e engulo ao meu modo. Esclareço, ainda, que não há remédio melhor para uma ressaca que uma suculenta melancia sendo comida de dentro para fora. Imagina só: você numa puta ressaca deliciando-se com uma baita de uma polpa vermelha e sua mulher te aporrinhando:

- Porra poupador, vê se tira uma fatia para você. Será que você não pensa que outros querem a parte mais doce? Vai deixar só o toco próximo da casca?

Até tiro o jornal da sala, mas deixar o remédio de um moribundo para satisfazer o andamento perfeito do convívio? Jamais! Declaro-me guerreiro de um direito divino: consumir o essencial da erva trepadeira. Se for sem caroço então... Supremo e sublime deleite.

Aparentemente é um assunto fora de propósito, mas se meu dedicado leitor observar com acuidade; é melhor não dirigir-me à minha leitora, pois creio que esse textículo não esteja ao seu gosto; verás que o tema é do mais profundo interesse. Veja bem você: a metafísica que há em se comer melancia é a mesma dos chocolates, desculpe-me Campos, mas lembrei-me da tabacaria. Foi bom, porque assim não perdemos a visão de nosso oposto. O que é curioso é que nós, os descasados, estejamos ocupado, eu em falar de melancia, você em ler sobre. Acho que ainda não disse que meu único leitor é mais um ex nas estatísticas. Acho que o melhor é acabar e te dizer adeus. Adeus, caro leitor; se aqui vieres uma dia, pode ser que não ache o texto tão limpo, mas o coração é.

sábado, 18 de julho de 2009

A Verdade

"A verdade é uma fêmea que só é bela quando nova"

(M. Gorki)

Lembro-me de haver dito, um dia, que a verdade era uma criança rejeitada. Naturalmente a epígrafe foi o mote para que eu, em minha santa inocência, me imaginasse um filósofo de alta monta com uma paráfrase tão sem vergonha. A citação em questão está no livro sobre os Artamonov, lido em minha adolescência, sendo retomado agora e que foi um dos últimos do escritor. Aliás, estou só relendo. Nos dois últimos anos não tenho feito outra coisa. É bem verdade que sempre deixo um espaço para alguma novidade. Mas vamos ao que importa, ou seja, nada.

O final dos anos setenta foi penoso para minha ânsia de liberdade. As patrulhas davam o ar de sua graça truculenta. Tanto de um lado como do outro. As de esquerdas tinham em Gorki um de seus interlocutores, embora eles nunca tivessem entendido o russo barbudo e seu grito de indignação e protesto. Por contraponto execravam Borges, Nelson e outros. Os de direita vociferavam seu discurso em longas viagens de pau de arara. E eu, que não tinha nada com isso, ia lendo Gorki, Babel, Nelson, Borges e tudo que caia em minha mão, sem olhar a origem ideológica.

Isso me valeu o olhar torto da esquerda empedernida e a bisbilhotagem dos serviços repressivos. Desnecessário dizer que fiquei mal com todos, não obstante minha militância pueril contra a dita dura. Arrumei brigas homéricas por defender o fascista Ezra Pound, tive dissabores terríveis por colocar Albert Camus no panteão dos grandes escritores, fui violentamente vilipendiado por confessar meu prazer em ler Martin Heidegger. Não! Era imperativo ler o realismo socialista. Só? Nunca! Desde sempre soube me posicionar segundo meu espírito.

A verdade é que uma fêmea é infinitamente mais bela ao nos mostrar a verdade de nossa ignorância. E isso... só o tempo.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Epílogo

Tudo aconteceu de inopino. A discussão colocou fim a um casamento com mais de trinta anos, quase quarenta. Foi o que ele pensou ao perceber um raio de luz penetrando pela única fresta que havia por um dos lados da cortina. Então lembrou subitamente do motivo da discussão. Com um queixume admitiu, sincero consigo mesmo, como era de seu feitio, seu pecado. Sou culpado, mereço ser castigado e nada pode redimir meu delito, disse balbuciando e lembrando imediatamente do romance russo. O que o aborrecia, assim como Stiva, não era o fato da traição, mas a maneira como se comportou diante do filho, nesse sentido bastante diferente da personagem.

L. era o caçula de oito filhos, todos vivos – os tempos são outros meu caro Príncipe Stiepan, e, da mesma forma que Dária, sua mulher já não ostentava beleza e desejos. Enquanto ele, graças aos avanços da medicina, estava feito galo garnizé – e L. era o único que estava por perto. A raspa do tacho ainda se movia sob as asas da mãe e se encontrava presente. Sem dar a mínima atenção para o pré adolescente, desafiou impropérios impensáveis em uma situação normal. Ainda ressoava em sua cabeça a imagem dos olhos do garoto, ao testemunhar aquela que seria a única briga do casal, em um misto de cólera, horror e desalento.

Esta atitude embaraçosa foi o suficiente para que seus passos resolutos buscassem a porta. A esposa calou-se, não porque nada tivesse que fazer, mas apenas por não querer desvendar seus pensamentos mais secretos, nem mesmo ao filho. O tempo pareceu suspenso e uma densa névoa de desconfiança pairava no ar. Subitamente a empregada despertou os dois com o anuncio da chegada de visitas.

Agora naquele quarto de hotel se via sem chão, rodopiando a esmo por pensamentos desconexos e sem sentidos, com uma clara sensação de derrota se perdia nos meandros de histórias antigas como a do nascimento de M., a primogênita. Não haveria volta, ele sabia e não faria nada para mudar os rumos dos acontecimentos. Um ciclo se fechou e o desconhecido se apresentava diante de seus olhos cheios de lágrimas.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

A Igrejinha e o Galeno

Mesmo com atraso vou meter o bedelho na conversa. Um painel, ou dois, como queiram, embora eu acredite que o nó da questão esteja mesmo no painel da santa, divide o mundo religioso e plástico, sem ironia. Rolou na imprensa uma grande controvérsia causada pelos painéis do Galeno, as mais recentes criações do pintor, que tem admiradores e detratores, na Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, em um debate sobre religiosidade e morfologia que sua obra jamais suscitou. Cumpre esclarecer duas coisas: passei grande parte de minha vida naquelas adjacências e conheci o pintor por volta de 1979, tendo nos tornado amigos, distantes, mas amigos. Morando na 108 sul, estudando na Escola Classe da mesma quadra e na Escola Parque da 308, é natural que minha infância tenha tido o cheiro das velas queimando as asas das pombas. Depois de surrupiadas as bandeiras de Volpi, agora o obscurantismo quer dar um tiro final em pipas, carretéis e que tais.

Segundo a associação das senhoras, não tão velhas, o pundonor religioso não admite brincadeiras. Coisa que não vejo absolutamente. A liga dos bons costumes não dá trégua. Meu parco conhecimento de história talvez não me dê o direito de afirmar que a igreja cristã foi íntima das artes. Não por acaso temos um enorme acervo graças ao trabalho dessa instituição. Não obstante o domínio de almas e corpos. Toda nefasta e hipócrita manipulação das escrituras caminhou ao lado de uma arte refinada, sacramentada pelos desígnios dos clérigos. Será que podemos prescindir do afresco monumental de Michelangelo na Capela Sistina? O que não dizer especialmente da criação de adão? Onde um homem maduro aparece nu? Os tempos eram outros... Ou poderíamos dizer que seria a própria personificação da luxúria e viadagem reinante?

O pintor nacional Francisco Galeno deixa crescer seu sentimento lúdico e com um azul profundo, meio céu de Brasília, sacia a sede das paredes e não altera seu antigo e peculiar traço. Não lhe assenta a santa? Deve essa assumir forma diversa da escolhida pelo artista plástico? Em face destas indagações, eu, com minha santa fé atéia – com acento – aceno com um adeus para esse textículo tão mal ajambrado. Contudo, mais uma palavrinha se faz necessária. Foi atrás do chapéu de freira que conheci os primeiros encantos das moças e desculpe-me, minha ciosa leitora e meu dedicado leitor, o tom confessional.


 

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Poeira no Planalto.

Quase sempre eu sumia no cerrado, o que deixava minha mãe em polvorosa. Era uma Brasília poeirenta, solitária, carregando em seu dorso as árvores tortas de cascas grossas e folhas duras, desconhecida e que, à luz de sol, se estendia diante de meus olhos atônitos. Morávamos na cento e oito sul, cujos blocos já estavam prontos. Fosse por falta de opção, fosse por causa da inexistência de mercados, aqueles passeios terminavam sendo uma farta feira, melhor que a única mercearia de um japonês em um raio de quilômetros. Pequis, cagaita, gueiroba, ou guariroba, como queiram, araticum, buriti, cajuzinho faziam parte do farnel. Além das retinas repletas de tatus, tamanduás, lobos, maritacas e uma vez, até vi um gato do mato bastante grande, achei que era uma jaguatirica.

Àquela hora o sol estava em todo seu esplendor e eu já não divisava com clareza os blocos se erguendo na quadra vizinha. E é desde essa época meu encanto com a luz dessa cidade. Não tinha, e não tem nada a ver com nada, a não ser comigo mesmo. Atraía-me, doía-me e deixava-me pensativo. Ainda hoje isso me acontece, a despeito de minhas sinusite e fotofobia. Se a Ville Lumiére é a cidade dos livros, a Capital da Esperança é a da arquitetura. Não há nenhum monumento nesta cidade que não seja uma obra de arte. Esta urbe se inscreveu tão indelevelmente na arquitetura porque nela mesma há um espírito de argamassa. Não teria ela, a maneira de deuses benevolentes, forjado os motivos de sua edificação, de longa data, desde o Império, como uma paciente artífice do tempo?

Hoje a jovem senhora, não obstante seu ar gracioso, já não ostenta o garbo de antigamente. Das veredas sobraram a confusão e o desatino. De uma fazenda sem cercas passou a síntese das mazelas. Verdadeiras aves de rapina promovem diuturnamente uma carnificina nas entranhas da cidade e não há nada que sacie sua sede. E, sem querer, levamos uma fama que não nos diz respeito.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Lume da Manhã

Acordou noite alta, e, no primeiro momento, experimentou aquela terrível desorientação que o escuro provoca nos sentidos. Seria incapaz de definir qualquer coisa que fosse do quarto, as dimensões, o abajur lilás, o quadro, única sobra dos tempos idos, de E. R. L. Ela sempre se deitava tarde, pois herdara os hábitos notívagos de seu pai e com esse repentino despertar não dormiu nada, o que contribuiu ainda mais para seu aspecto sonambúlico. Pensava estar na fazenda, com as enormes chaves penduradas no pescoço e com afazeres ditados pela mãe.

Era no fim do verão, e ela recebera uma carta de seu pai dizendo-lhe que voltasse. Estava no quarto, não o da herdade, o mesmo que a avó Zefa usara antigamente e era, como os da fazenda, disposto ao longo da varanda, ornamentado apenas pela paisagem marítima de um porto pequeno. Além disso, uma estampa de certa virgem pendia sobre uma das cabeceiras. Encarava os espaços vazios como algo muito mais que saudades, davam-lhe a impressão de que alguma coisa acabou, e que ela era a única culpada pelo fim.

Vivia cercada de presságios, desejos e de tédio. Na verdade, ela, desde o início, dava continuidade em sua longa peregrinação ruma a uma densidade de idéias – com acento –, em uma obscuridade de pensamento que lhe esvaía os sentidos, que a deixava lúcida só para a insistente canção penosa do coração. Acabrunhava-se. Tentava encarar aquilo como um passatempo. Mas, aos poucos, começou a achar apenas fastidioso o fato de ter relações, para ela as relações entre criaturas era uma soma onde não havia fantasias. Ela pouco sabia do homem, de sua sedução quase cândida, de seus encantos fúteis, de sua petulância graciosa, de sua curiosidade desvairada, de sua circunscrição em determinada época, dos prazeres femininos, da euforia tirânica que exercem as mulheres sobre os homens apaixonados, dos trinados sutis dos amorosos. Enfim, sua aguçada capacidade selvagem de defesa, de astúcia, lhe conferia um ar sibilino.

Eis nossa personagem. Agora, na casa da cidade, apenas ela velava. As velas ardiam para o silêncio e a solidão, e suas chamas azuis estendiam-se nas profundezas de seus olhos. Assim decorreu o resto de noite, as velas reduziram-se, lambendo os estertores da língua de fogo e o lume da manhã abrindo o pano para mais um espetáculo.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Inícios

Quantas vezes, sonhando acordado, não estive com o pensamento longe de mim. Felizmente para minha reputação de racionalista, uma imensa cortina de exotismo também me revestia e possibilitava que a altura de minhas muralhas jamais fosse escalada. Sendo assim minha soberba continuava inatingível, profundezas marítimas de uma personagem grave, de uma sisudez contida. Talvez fosse um início para esse escriba.

Era uma dessas pessoas que, a despeito de uma carreira brilhante, possuía uma vasta e ampla cultura, não servindo absolutamente nada para o exercício de seu ofício, mas era o fio condutor de sua conversa leve e repleta de sabedoria. Mais letrado que muitos ditos escritores – eu não sabia naquela época de sua reputação como literato – possuía o encanto da "ignorância" infantil. Poderia ser outro começo para certo francês.

A cidadezinha de Santa Lagoa Tapada de Nossa Senhora é um desses brincos que se escondem no interior e pode ser considerada uma das mais bonitas da região. Suas casas coloridas perfilavam ao longo da larga rua central emoldurada ao fundo por uma igreja branca com duas torres pontiagudas em suas laterais. O riacho Sombrinha Boa correndo atrás e ao largo dava ao lugarejo o toque final do bucolismo. Seria princípio diverso para um grenobliano.

A Catrevagem era um bar na quadra de nossa cidade. Era lá que nos encontrávamos todo final de tarde para jogar uma conversa fora em doses generosas, salpicadas de bolinhos, pastéis e toda sorte de quitutes feitos pelo proprietário. Era praticamente nossa segunda casa, para uns e outros a única. Cada canto, cada coisa, cada copo nos era bastante familiar e tínhamos um enorme prazer em estar ali. Salustiano, um cearense com pouco mais que trinta anos, era o dono. Talvez uma solução inicial para meu conterrâneo.

Os inícios são muitos e o fim pouco.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Mala Enganado

O cabra entrou ressabiado, como quem não confia nos próprios passos. Sujeito baixinho; pouco mais de um metro e cincoenta, magro, sombrancelhas arqueadas e um par de olhos abertos e esbugalhados; era um vaporzinho de bagulho em uma boca de pouco movimento. Estava muito mais para papagaio de pirata do que malandro. Mas se achava o tal. Pensava que fazia e acontecia. O escrivão, do alto de sua arrogância subalterna, aquela do tipo subserviente aos maiores e sonhando em ser o maioral, interpelou o camarada:

- O indíviduo tá querendo o quê?

- Bem doutor, é que... sabe, fico meio sem jeito, aqui nesse lugar...

- Desembucha ou desembesta, não fica de lorota não.

- Sabe doutor, é que fui enrrolado por uns malas aí e tô a fim da caveira deles.

- Você quer fazer uma queixa? É isso?

- Isso Doutor, uma queixa.

- Entra, vai falar com o Doutor.

Sem resmungar o Mané entrou na sala. Mas, o delega, que andava bronqueado com a mixaria que ganhava, não estava a fim de suportar malandro chorando pitanga.

- Qual é a parada?

Acanhado, o mala tremeu nas bases e ficou mais parado que poste. Não se mexeu, não pronunciou uma palavra, abaixou a cabeça e tentou sair. Não pôde. Todo ruim dentro da roupa, o delegado vociferou:

- Que que há, pilantra? Perdeu a língua? Tá pensando que isso aqui é hotel? Que tu quer?

Tudo aquilo enjoou o loque. Malandro manso e tinhoso como era, percebeu que tinha entrado na maior roubada. O jeito foi contar o caso.

-Bem doutor, tava eu lá na maior batalha, sabe como é, os bacuri prá criar, mulher pra sustentar, a gente se vira nos trinta, faz o que pode e o que não pode pra se ajeitar nas quebradas do mundaréu. Como ia dizendo pra vossa merítissima, tava na maior ralação, ganhando o leite da molecada e uns pilantras me deram a maior volta.

- Porra, diz logo o que aconteceu, não enrola.

- Como eu tava dizendo, uns otários me engrupiram. Compraram e não pagaram.

- E o que eles compraram?

- Maconha.

A resposta foi um tremendo esculacho:

- Vai prá puta que o pariu, seu desgraçado. Tou dormindo e tu vem aqui pra isso? Agora tu vai ver. É cana, vagau. Se tu se coçar, ta fudido.

E, xingando, o delegado se afastou e foi tomar as providências para enjaular o otário.

O escrivão, rindo da cara de surpresa do papagaio, até achou graça e deu a letra:

- Trouxa tem que comer capim pela raiz.

E assim mais um foi ver o sol nascer quadrado.

domingo, 31 de maio de 2009

O Cortejo

Tiziu estava bastante indócil. Uma inquietação pela casa, um vaivém sem fim. Entrava e saia da sala, farejava em volta da mesa, deitava para logo em seguida levantar e sair. "Cachorro, por exemplo, vê o que gente não vê, ouve o que gente não ouve". Essa frase do conto "Na Estrada do Amanhece" de meu quase vizinho Corumbaense, me veio imediatamente à lembrança. Bela cidade com um rio lindo e perigoso, bem próxima daqui, a sede do poder. Em José J. Veiga há uma escolha por personagens infantis, ou melhor, aquela passagem da infância para a adolescência onde o imaginário mágico vai cedendo o palco para uma representação banal da realidade. O momento em que nossas fantasias vão sendo trocadas por sisudos trajes de uma ópera vazia, esmaecendo toda vivacidade do sonho.

Voltemos ao nosso caso. Cansado de andar de um lado para outro, de entrar e sair da sala, Tiziu, em sua negritude angustiada, deitou-se embaixo da mesa e ficou olhando fixamente o quarto. Assim como no conto, não pude de deixar de notar como os animais pressentem a morte, adivinham quando ela está chegando, se aproximando inapelavelmente. Coisa que nossa pretensa racionalidade não descortina. Mesmo as pessoas predispostas ao vaticinio, não chegam perto. Os místicos chamariam a isso de predestinação ou premonição, os materialistas diriam intuição, percepção analógica, eu diria... que sei eu?

Minha deliciosa leitora poderá defender-se e dizer que os homens também adivinham a chegada da dama solerte. Um amigo nosso em comum, o poupadordeporra, já contou aqui sobre o pião da fazenda de seu avó que pressentiu a morte. Não creio que a senhora se lembre. Mas o fato é que quando se sente o hálito frio na nuca, imagenzinha mais gasta meus deus, as pessoas se amedrontam ou tentam ajeitar seu passado desarticulacado.

Tiziu mais uma vez se levantou e saiu. Dessa vez tomou rumo determinado na direção do pé de jatóbá onde costumava ficar com seu dono, ao final da tarde, folgando idéia – com acento – na lonjura do horizonte. De lá não saiu mais e não viu o cortejo saindo.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Raparigas de Vigário

Tendo tido conhecimento das calúnias e das injúrias que seriam assacadas pelo Belarmino contra a nobre e valorosa esquadra tricolor, Amadeu mandou empastelar aquele folhetim marrom de merda. O Godofredo, delegado da localidade, logo que soube dos acontecimentos, foi meter a colher no angu de caroço – sem hífem. Na confa que se formou na sossegada Aperibé, o que é um pleonasmo, pois o nome já diz tudo, os motes principais do momento eram o jogo do time local com o rubro negro da cidade vizinha, se não me engano São Fidélis, e o atentado ao jornal. O vilarejo com pouco mais de nove mil habitantes no noroeste fluminense, estava eufórico com a subida do time local para a segunda divisão do estadual e andava acompanhando com fúria e denodo todos assuntos relacionados ao esporte bretão. E foi para o sobrinho do Belarmino que sobrou.

Godofredo, torcedor fanático da urubuzada, assim como Belarmino, tinha lá suas simpatias com o adversário, afinal as cores eram as mesmas. Era, por assim dizer, filhote do time da capital e além de tudo são nossos vizinhos, costumava dizer. Coisa inadmissível para os nativos e sua rixa com os habitantes dos arredores. Onde já se viu, a autoridade policial maior puxar sardinha para o inimigo? De certa maneira a cidade se viu ao lado do Amadeu e legitimou o empastelamento. Cioso de sua missão de homem da lei, o comissário, mais sério que porca mijando, mandou averiguar os fatos e cocluiu que o sobrinho foi o mandante. Basta cumprir a lei dos homens, porque a liberdade de expressão é parte do estado de direito em que vivemos, disse o representante dos preceitos legais. Foi então preso o sobrinho.

O que chamou minha atenção não foi tanto a escaramuça em si, mas a notícia involuntária da cornucópia. Um dos chifrudos, o Belarmino, já sabia de sua sina. E o mais curioso era que a galha lhe caia bem. Verdade que ninguém precisaria de um exercício profundo de observação para notar o cervo sendo cevado. Já o outro guampudo, o Godofredo, fazia o tipo último a saber. Todo mundo sabia que o sobrinho andava fazendo visitas naquelas duas casas. Na noite do ocorrido a cidade estava apreensiva, já que os rios Pomba e Paraíba do Sul estavam indóceis e cheios. Ningém reparou na ausência do sobrinhos e de duas personagens das mais influentes. Estavam mais escondidos que rapariga de vigário. Mas isto fica para depois.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Corrida de Rua

Eu e meu amigo careca resolvemos participar de uma corrida de rua, meio por pilhéria e meio por sarcasmo um com o outro, coisas naturais desde o início de nossa longa amizade. Do alto de nossos bem vividos quarenta e cinco anos, já tomando a curva do Cabo das Tormentas, estabelecemos um rigoroso cronograma de treinamento. Cada vez que eu entrava na academia tinha calafrios. O ambiente parecia com uma daquelas câmaras de tortura da Idade Média. Um por um os aparelhos me fitavam ameaçadores, rosnando sua sede de sangue. Por eternos quatro meses me submeti a sessões diárias de duplo sacrifício. Explico: a música, do tipo bate estaca, ecoando naquele salão reveberador era a cereja no bolo do suplício.

Eis que finalmente chega o grande dia. Um belo e claro dia de seca no cerrado, mas isso fora previsto em nosso planejamento minucioso. O careca está ao meu lado e ao nosso redor um punhado de gente animada. Notei a barriga saliente de meu camarada e pensei: bem, do careca eu ganho... mais mole que mastigar água. No primeiro quilômetro estavámos juntos. Não resisti e soltei uma piadinha, o que me consumiu energias vitais. "Ei Careca, com quantos quilos se afunda uma canoa?" Com isso o danado abriu dois corpos na minha frente. Meus brios se estremeceram e saí em polvorosa atrás daquela barriga insolente. Não poderia perder, seria humilhação demais. Depois de um esforço supreno, consegui chegar junto e não resisti novamente. "Careca, você acha que o desprovimento de pelos capilares melhora seu rendimento?" Mais uma vez ele se distanciou, dessa vez abrindo grande vantagem.

Nisso alguém me jogou um copo com água. Simbologia de minha ruína? Desejei a presença do cara que parou o Vanderlei Cordeiro por perto, assim ele poderia ser minha desculpa perfeita. As vistas escureceram e vi perfeitamente o retrato de minha capitulação. Decidamente nasci para jogar no máximo uma dama, talvez bocha. Não! A bola é muito pesada. Fiquemos com o halterocopismo, nesse sou imbatível. Assim termina minha única e última aventura no reino dos esportes. Hoje, depois de dobrado o cabo das tormentas e já chegando ao porto, no destino final da travessia, apenas contemplo as estripulias dos meninos de minha quadra.

sábado, 16 de maio de 2009

Bruxos Sanguinários

Eu estava muito cansado, recostei em uma árvore e não vi mais nada. Como última lembrança apenas as luzes amarelas do sol surgindo por cima dos morros. Sinal de que o dia estava chegando. Depois disso o escuro. Quando abri os olhos estranhei a imensidão do quarto simples em que me encontrava. O teto se colocava diante de meus olhos com todo esplendor de construção antiga. As longas vigas de andiroba, pintadas pela pátina do tempo, sustentavam uma daquelas casas de fazenda, sem forro e com os longos braços da estrutura se estendendo do centro para os lados. Logo senti um cheiro de café como há muito não via. Lembrei de minha mãe. Pela manhã, na fazenda, o cheiro exalava do bule e tomava conta de toda casa. Sem muita demora um alarido de gente começava a fervilhar no espaço. Era como se o aroma negro despertasse toda uma alegria adormecida, funcionando como um despertador pelas narinas. Éramos oito. Uma escadinha uniforme e exata distribuida em quatro meninos e quatro meninas. Como não pode deixar de ser, em uma família mineira como a nossa, havia também os agregados: meu tio paterno Claudionor, meu primo Adamastor, filho de meu tio, minha vó materna Adalgisa, o mala do meu cunhado e finalmente, porém não menos importante e imprescindível, a gostosa de minha prima, fonte de minhas primeiras sedes.

É preciso dizer que ao longo dos anos, como soube depois, a morada estranha foi tomando fermento para acomodar os novos moradores. Era, como já disse lá no início, uma vivenda imensa. Não sei qual foi a razão, mas me senti como se estivesse em minha infância. Tudo ali me lembrava a Cajuzinho Azedo. Desde as primeiras até as últimas, as impressões me levavam em um devaneio pelo tempo, um caminhar sem rumo em direção ao distante passado e cada vez mais longe do horizonte. Acho que já falei aqui nesse espaço sobre a indimensionável lonjura do horizonte. Deixemos de filosofice barata e tratemos de dar a pincelada final em relato tão absurdo. O fato é que o primogênito da simpática família achou-me desfalecido na estrada e trouxe-me para os cuidados de sua mãe. O médico mais próximo estava cerca de quinhentos quilometros e a faz tudo da região era exatamente D. Maria. Com muitas ervas a anciã retirou-me, palavras dela, dos braços do tinhoso. Fui uma luta danada. O sem nome não largava de jeito nenhum. Segundo ela meu olhar era frio que nem brasa adormecida. Sinal de que já houve vida nesse coração.

Devo admitir que a velha me atingiu a alma. Em um segundo toda minha vida se revelou dinte de minhas retinas atônitas. Finalmente me dei conta da mentira que forjei em torno de mim. Caiu a ficha e tomei consciência de minha palidez moral. Ao me enveredar na trama da cidade, soltei a rédea do alazão bravo nas mãos de bruxos sanguinários.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

A Hiena

É um verdadeiro prazer, minha querida leitora, dedicar a você um textículo cujo assunto, mais uma vez, desconheço e cujos detalhes fogem aos meus olhos. Não se trata aqui, como já observado várias vezes, de examinar o fundo da temática, o que envolveria doutrinas nas quais não navego. Notemos apenas que sua sensível antena capta tudo que me escapa. E, ao perceber o que você realizou por força de sua vontade e como mudou a sua vida pelos poderes da imaginação e da análise, sinto-me menor, menos pronto a qualificar de escrita o que se segue. Bem sei de sua constante preocupação com os fenômenos artísticos aliada as inquietações metafísicas dos grandes romancistas. Para meus parcos leitores, essa coexistência, da observação e da fantasia, não aparece em meus rabiscos e é, precisamente, um dos segredos de minha medíocridade.

Há pessoas, boas e pacientes como você, que passam pela vida com um pensamento doce no coração e a suave serenidade de um sorriso terno nos lábios. Há outras, como eu, sempre alertas para a ironia, que fazem do escárnio a grandeza de suas cenas. A senhora já deve ter notado as desilusões e os dissabores marcando as rugas reflexivas de minha empáfia literátia. Acredito, por outro lado, que tenhas percebido, ao contrário da Clarice Lispector, que estas narrativas não passam de uma gralha crocitando. Antes de ir adiante lancemos o olhar um pouco mais adiante. É possível que minha meticulosa leitora goste de encontrar aqui, antecipadamente, uma espécie de opressão mascarando a delicada aurora, velando o estado fragilizado do autor.

Na verdade, minha extraordinária graça, as luzes sombrias da desgraça colorem meu rosto lívido e minha doce resignação não passa de uma câmara mortuária revelando a miséria suprema. É uma espécie de sinistro pressentimento, uma indefinível e confusa visão do futuro. Como uma hiena diante da carniça me debruço em um sentimento difuso, me contorço e experimento uma derrota íntima, daquelas profundas, essas profundezas com que os grandes pintores colocam em relevo a alma do objeto, ou pessoa, ou paisagem pintada. Como sempre é preciso aplicar as leis da arte narrativa, com essa última assertiva, cuja despropósito é óbvio nessa narrativa, termina aqui esse textículo.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Bobagens sobre nada…

Gostaria de escrever algo sobre o nada. Desejo muito estar em mim, mas não existo. Não sou de verdade, sou uma personagem projetada, uma mera ilusão. Um dia pensei em ser feliz. Tola ilusão, doce parcimônia de um espírito louco. Um dia, não faz muito, sonhei em ser alegre, tudo, mais uma vez, não obstanbte minha amargura, se tornou mera ilusão. Meu cioso leitor há de desculpar os devaneios dessa mente corroída pelo álcool, pela miséria humana asssolando meu peito, vá lá, eu sei, é vulgar, tenho plena consciência de meu prosaismo, diria até pernoticismo.

Assim como você, minha sensual leitora; aliás me vejo obrigado a reparar que de todas as pessoas que vêm aqui, a senhora é de quem gosto mais, não que seja lá um elogio, porque não vem tanta gente assim; não tenho em mim a pretensão de ser, apenas estou, meio deslocado, sem jeito, mas estou. As míseras estirpes do acaso e da aflição, eis aí minha condição. Não ter nascido, não ser, seria melhor ainda. Contudo, estou aí, vagando a esmo pelo mundo, copo na mão e cada vez mais parecido com meu pai. Então sobrevivo a mais um dia de perdas. As recentes, com feridas carcomendo a alma, exalam um cheiro pútrido, proveniente de pus infeccionada, revelam descaminhos antigos, agora ressuscitados pela esperança frenética da ventura. Um dia imaginei a satisfação como uma bela moça de olhos brilhantes, cuja sede de liberdade lhe fosse bastante cara.

Confesso que minha mente é errante e não emprego nenhum engenho na imposição de uma disciplina. Recuos, manobras, mesmo as mais simples, são desconhecidas de meu ritmo intelectual. A sensatez, o discernimento são coisas com as quais não me ocupo. Não vejo interesse algum na prudência. Ademais, não serei eu a cortar o elo da cadeia que prende o senso comum. Estou velho, cansado e acabado; sou tão interessante como o jornal da semana passada. Recordo-me do dia em que conheci a beleza e a injuriei, como diria certo herdeiro da ancestralidade de bardos gauleses. Foi um dia singular, uma sucessão de estranhos pressentimentos mostrando o fim. Trajetória já revelada de minha infâmia. Os caminhos sinuosos do destino já traçados na dura retina. Eu sempre soube que havia coisas erradas comigo.

Para não me alongar agradeço a presença de meus dois leitores. Foi muito gentil terem vindo hoje – perdendo um tempo precioso com textículo tão mal alinhavado, tão longe de suas ocupações, e eu sou apenas um menino maluquinho, ainda. Sim, só me ocupo com bobagens.


 


 


 

quinta-feira, 19 de março de 2009

Textículo Insolente

Quando publiquei os primeiros textículos nesse espaço virtual, meu cioso leitor e minha sensual leitora acharam simplesmente detestável. Constatou-se ligações literárias indignas com Machado de Assis, Jean Paul Sartre, Xavier de Maistre, Dyonélio Machado e tantos outros. Sua escrita não tinha leveza nem colorido, afirmaram. A estrutura, quando havia, era pobre e mal ajustada. A temática era rebuscada, anacrônica e de um filosofismo duvidoso. Em resumo: acharam execrável. Seguiram-se críticas durante o trajeto. Foi salientado o absurdo, o vago, o emprego indiscriminado do diálogo direto, o sentimentalismo, muito a propósito, diga-se de passagem, em narrativas como essas, pretensamente eruditas, a especulação revela tão somente um narrador ignorante. Concordo em tudo.

Como se sabe, a ostentação de palavras soberbas não passa de um textículo insolente. Eu, o editor, faço como Pilatos e não me envolvo em tais questões. Deixo a contenda para os sábios mais sagazes da cultura, do saber, da filosofia, enfim, os geradores de dúvidas. Já o disse anteriormente: assisto impassível a invenção da incredulidade. Se não me falha a memória, em sua última crônica o poupadordeporra, ao fim de um incrível esforço criativo, especulou sobre o real, dando, inclusive, como título uma citação de Goya. De seus propósitos insensatos restou apenas a impressão de que o narrador está cansado de si próprio.

Sucedeu, porém, que li, em uma das melhores publicações do mundo cibernético, uma crônica em tudo semelhante à do poupadordeporra. Meu primeiro impulso foi vociferar contra crime tão hediondo e denunciar ao mundo o plágio. Forçoso reconhecer, porém, que a máxima publicitária vigora e nada se cria, tudo se copia. Creio que as questões fundamentais da natureza humana já foram formuladas e não passamos de meros papagaios repetindo o velho bordão. Suponho que o que move essa maquinaria, tanto a do narrador como a do autor, é um destino tenebroso, cruel onde a ânsia funesta não é mais que uma frívola esperança. Acredito que ambos ficariam felizes se pudessem riscar da memória tudo que leram, viram ou ouviram, ou seja, o branco total.

Devo reconhecer, nesse ocaso, o louvabilíssimo empenho dos escribas em amortecerem a vaidade da escrita, quiça para nossa própria satisfação. Como último comentário, acrescento minhas desculpas por ser, digamos, um parvo nesses assuntos. Contudo, sem me promover, naturalmente já puxando sardinha para meu lado, assumo meus suspiros desprezíveis, confesso que meu olhos se enchem de prantos ao perceber minhas dores expostas, reconheço que me consumo em um mal que desconheço: o textículo insolente.

quarta-feira, 18 de março de 2009

“O Sonho da Razão Produz Monstros”



Está decidido, minha boa leitora, parto. Abandono a desolação das ruínas, deixo esse claustro sombrio e tomo o destino dos mortos. Rio Aqueronte será minha fonte, meu mergulho em terras mais felizes. Antes de ir adiante, talvez seja melhor, antecipadamente, inventariar, embora eu não seja propriamente um materialista pragmático, a razão pela qual insisto em tecer as insígnias de minha pobreza. Minha alma apodreceu sob a ação da realidade. Miseravelmente corro para uma perda inevitável, arrasto-me disfarçando o horror de olhar para mim mesmo. É meu desejo partir, o barco está pronto e o rio é sem terceira margem. Esse princípio de melancolia ousa revelar abertamente meus ardores insensatos, escancara os anos que fizeram vergar as tristezas de todos nós.

Eu, de bom grado, mudaria o curso das coisas, se estivesse em mim essa possibilidade. Modificaria meu caminhar lento, afastaria a tristeza, cuja causa reside na própria vida, e, decidamente, removeria esse ar diabólico de meus olhos. Contudo, meu estado aflito, acabrunhado não tem história, não conhece os limites da verdade e me é impossível alterar qualquer acontecimento que seja. Mas há de se reparar bem nessa coisa interessante, minha doce leitora: a razão é um embuste.

Goya, conforme minha leitora pode comprovar lá no início, vai nos dizer que o sonho da razão produz monstros. Já a idéia platônica nos diz que ela é inerente ao ser humano e ela só pode existir em contraposição ao mundo de nossas emoções, aos sentimentos, às paixões, que são cegas, caóticas e desordenadas. Você, minha linda leitora, como pessoa bem informada, eu diria uma intelectual, há de convir comigo que isso é aborrecido e não carece de maiores abordagens, já que a literatura especializada é farta e eu não passo de um especulador barato, um ignaro com rompantes de "sábio". Argumento com o qual concordo em número, grau e gênero. Portanto, deixemos de filosofices e vamos dar cabo nesse textículo. Eu, como um sensitivo, não faço questão de idéias.

É certo que meus vizinhos não viram – não poderiam ver, ninguém seria capaz de ver – a comoção tomando conta de mim. O fato é que ninguém nunca mais me viu. Nunca mais! Parti rumo à torrente e assim me foi destinado.

Acontece muitas vezes que um trecho mal escrito, mas digitado por mãos sob a influência de um sentimento profundo, com demonstrações de suplício e prazer, cause uma impressão maior que os grandes romances, aqueles urdidos por artíficies junto aos quais jamais chegarei.