quinta-feira, 18 de junho de 2009

Inícios

Quantas vezes, sonhando acordado, não estive com o pensamento longe de mim. Felizmente para minha reputação de racionalista, uma imensa cortina de exotismo também me revestia e possibilitava que a altura de minhas muralhas jamais fosse escalada. Sendo assim minha soberba continuava inatingível, profundezas marítimas de uma personagem grave, de uma sisudez contida. Talvez fosse um início para esse escriba.

Era uma dessas pessoas que, a despeito de uma carreira brilhante, possuía uma vasta e ampla cultura, não servindo absolutamente nada para o exercício de seu ofício, mas era o fio condutor de sua conversa leve e repleta de sabedoria. Mais letrado que muitos ditos escritores – eu não sabia naquela época de sua reputação como literato – possuía o encanto da "ignorância" infantil. Poderia ser outro começo para certo francês.

A cidadezinha de Santa Lagoa Tapada de Nossa Senhora é um desses brincos que se escondem no interior e pode ser considerada uma das mais bonitas da região. Suas casas coloridas perfilavam ao longo da larga rua central emoldurada ao fundo por uma igreja branca com duas torres pontiagudas em suas laterais. O riacho Sombrinha Boa correndo atrás e ao largo dava ao lugarejo o toque final do bucolismo. Seria princípio diverso para um grenobliano.

A Catrevagem era um bar na quadra de nossa cidade. Era lá que nos encontrávamos todo final de tarde para jogar uma conversa fora em doses generosas, salpicadas de bolinhos, pastéis e toda sorte de quitutes feitos pelo proprietário. Era praticamente nossa segunda casa, para uns e outros a única. Cada canto, cada coisa, cada copo nos era bastante familiar e tínhamos um enorme prazer em estar ali. Salustiano, um cearense com pouco mais que trinta anos, era o dono. Talvez uma solução inicial para meu conterrâneo.

Os inícios são muitos e o fim pouco.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Mala Enganado

O cabra entrou ressabiado, como quem não confia nos próprios passos. Sujeito baixinho; pouco mais de um metro e cincoenta, magro, sombrancelhas arqueadas e um par de olhos abertos e esbugalhados; era um vaporzinho de bagulho em uma boca de pouco movimento. Estava muito mais para papagaio de pirata do que malandro. Mas se achava o tal. Pensava que fazia e acontecia. O escrivão, do alto de sua arrogância subalterna, aquela do tipo subserviente aos maiores e sonhando em ser o maioral, interpelou o camarada:

- O indíviduo tá querendo o quê?

- Bem doutor, é que... sabe, fico meio sem jeito, aqui nesse lugar...

- Desembucha ou desembesta, não fica de lorota não.

- Sabe doutor, é que fui enrrolado por uns malas aí e tô a fim da caveira deles.

- Você quer fazer uma queixa? É isso?

- Isso Doutor, uma queixa.

- Entra, vai falar com o Doutor.

Sem resmungar o Mané entrou na sala. Mas, o delega, que andava bronqueado com a mixaria que ganhava, não estava a fim de suportar malandro chorando pitanga.

- Qual é a parada?

Acanhado, o mala tremeu nas bases e ficou mais parado que poste. Não se mexeu, não pronunciou uma palavra, abaixou a cabeça e tentou sair. Não pôde. Todo ruim dentro da roupa, o delegado vociferou:

- Que que há, pilantra? Perdeu a língua? Tá pensando que isso aqui é hotel? Que tu quer?

Tudo aquilo enjoou o loque. Malandro manso e tinhoso como era, percebeu que tinha entrado na maior roubada. O jeito foi contar o caso.

-Bem doutor, tava eu lá na maior batalha, sabe como é, os bacuri prá criar, mulher pra sustentar, a gente se vira nos trinta, faz o que pode e o que não pode pra se ajeitar nas quebradas do mundaréu. Como ia dizendo pra vossa merítissima, tava na maior ralação, ganhando o leite da molecada e uns pilantras me deram a maior volta.

- Porra, diz logo o que aconteceu, não enrola.

- Como eu tava dizendo, uns otários me engrupiram. Compraram e não pagaram.

- E o que eles compraram?

- Maconha.

A resposta foi um tremendo esculacho:

- Vai prá puta que o pariu, seu desgraçado. Tou dormindo e tu vem aqui pra isso? Agora tu vai ver. É cana, vagau. Se tu se coçar, ta fudido.

E, xingando, o delegado se afastou e foi tomar as providências para enjaular o otário.

O escrivão, rindo da cara de surpresa do papagaio, até achou graça e deu a letra:

- Trouxa tem que comer capim pela raiz.

E assim mais um foi ver o sol nascer quadrado.