quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Espólio

Eu, embora afetado por um ar de superioridade, sou um bom sujeito. Não dissimulo meus sentimentos e não me escondo na facilidade da hipocrisia. Não carrego culpas intransponíveis, apenas os dissabores diários de uma existência fadada a conviver. Solidão não é minha praia. Invertendo o dito comum, eu diria que é melhor estar mal acompanhado que só. Cabeça vazia é a morada do tinhoso. Só ocupando-a é que não dou trela para a tentação. E nada melhor que a confusão das ruas para distraí-la. Acredito, mais uma vez o senso comum orientando minha bússola, em minha generosidade ao perceber como as crianças gostam de mim. Não lembro de uma sequer que não tenha vindo em meu colo e aberto aquele sorriso que só um bebê pode ter.

Conheço sobretudo meus limites. Sei a medida exata do momento de se deter o tempo, as ações e a palavra. Essa última é cruel, pois engendra monstros terríveis. Jamais ultrapassei a fronteira além da qual a vivacidade se torna intolerável. No entanto, desde priscas eras, estou sempre pronto para travessuras, quando se me apresenta uma oportunidade de bancar o malicioso, ou mesmo chamar atenção, não a perco. Cheio de amor-próprio, sempre soube ganhar a confiança de meus pares, mesmo que para isso eu tenha me valido de subterfúgios ingênuos.

Para muitos, sobretudo para as várias namoradas que tive, acho até que perdi muitas delas em função desse meu proceder, não passo de um insensível, frio como os rios do cerrado. Pode parecer contraditório eu não gostar de efusões, já que afirmei lá em cima não disfarçar minha emoção. Mas o fato é que elas me aborrecem e quanto mais me exigem demonstrações eloqüentes de carinho, mais me furto à elas. Não que fosse uma atitude deliberada, provinha antes de meu caráter que de meu desejo. Eles se enganam; eu sempre os amei, somente não gosto de expansões exageradas. Sempre me pareceram teatrais demais.

Contudo, um acontecimento inesperado fez com que eu mudasse completamente. De folgazão, apreciador de uma chalaça, tornei-me mais silencioso, pensativo e até um pouco taciturno. Minhas paixões, que nunca foram arrebatadoras, se tornaram excessivamente reclusas e operou-se um milagre: minhas travessuras desapareceram e surgiu um ser cruel, monstro cometendo diariamente as mesmas vilanias calorosamente abandonadas em promessas anteriores.

Absurdamente tornei-me presa do negado. Enveredei em um caminho onde eu era vítima fácil da puerilidade arrebatadora das paixões. Diante de mim desenrolava lentamente a película de minha servidão e nem percebi. Eu, que tinha aos meus pés a devoção servil dos amantes ternos, aqueles aos quais eu respondia aos seus gestos de ternura com frieza, noto que desenvolvo não sei que sensibilidade, sentimentalidade juvenil me arrastando implacavelmente rumo ao abismo.

Mas sou altivo e me corrijo a tempo. Não me submeto, bato-me orgulhosamente e não deixarei que minha alma sensível seja arrastada por essa ironia melévola. Não permitirei que semelhante palhaçada seja trágica. Para que o senhor veja de relance minha natureza é preciso que a mire como se fosse uma representação teatral, um número representando o fundo até onde os sentimentos podem descer.

Nenhum comentário: