terça-feira, 25 de setembro de 2012

Silêncio, espera.

O Sr. Escobar exprimia em seu rosto grande preocupação, ao examinar, com firmeza e cautela, o rosto daquela criatura estranha que sorria convulsivamente. Um pobre rapaz, que estava ao lado da besta, contemplava a cena com ar abobalhado e um olhar vítreo, que não revelava nada além da inexpressividade. Todos os olhos dirigiram-se intensamente para o esparramo com um indescritível cheiro de mofo e miséria. Um policial parado junto a uma porta da comercial contempla o sucesso do cenário, e pensa: "Ora, o que essa multidão pensa ser um teatro, não passa de velhas patuscadas. Na verdade, a gente devia se envergonhar. Nunca nada é original... direi isso mais tarde, que nada é original. Isso soa bem".

Nisso a criatura estranha e o jovem abobalhado se arrumam, e uma tempestade de vaias varre a comercial. E o espetáculo chega ao fim. Às dez e meia começou, acabou às onze. A rua está vazia, nos arredores ninguém mais dá notícia do acontecido e longe, perto da padaria, há dois senhores cantarolando uma Rapsódia. E o senhor Escobar estremeceu, virou-se para o outro lado. Olhando todos aqueles rostos encantadores e acalorados, pareceu que o espreitavam. Ficou com um desejo de ir embora, de procurar em outro lugar quietude e solidão. Sim, partiria dali, sem uma palavra. Mas o pensamento faz um volteio e sobe a escada da especulação e pensa: "Claro, é preciso explorar todas as maneiras para provocar o público. É sempre delicioso contemplar um cenário inaudito. Que criatividade, que humor".

Naturalmente não fora embora. Ficara sentado em um café que havia em frente, curvado para diante, mãos entre os joelhos, cabeça inclinada. Ele fitou as pessoas com lentidão excessiva e atormentado, com intervalos dolorosamente longos entre uma piscada e outra. Depois, silêncio, espera.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Bisbilhotice

Vezes me pego bisbilhotando pessoas. E é sempre dentro de um bar que minha curiosidade dá o ar de sua graça, mesmo porque raramente estou acompanhado, o que me propicia devaneios profundos. Não raro, me surpreendo analisando os destinatários de meus olhares cobiçosos, criando cenários para pessoas nunca vistas, forjando psicologias baratas de seres na lonjura do horizonte. Naturalmente tudo segue o roteiro de minha tosca imaginação.

Por exemplo: o casal de adolescente escondidinho lá no fundo mais escuro. É lógico que nunca transaram entre eles. Estão se pegando vorazmente, como se estivessem no quarto, sentido toda ausência, sem se darem conta que havia gente ao redor. Pense comigo minha única leitora, soube por fonte confiável que o exemplar masculino não me lê mais. Ficou chateado com certo comentário a propósito da barbárie humana. Mas voltemos ao casal. Em minha alucinação vejo a moça com receio, se escondendo em público para dar um amasso legal. Assim não corre o risco da tentação de primeiro encontro, afinal ela tinha um nome a zerar. Sim, minha impudica leitora, é zerar e não zelar.

Sozinhos, longe da vista da multidão e dentro do turbilhão, podem dar vazão ao instinto animalesco em toda sua plenitude. Já o rapaz, alheio ao burburinho, está com o testosterona em ebulição, prestes a entrar em erupção nada lhe diz respeito, só pensa naquilo. Martírio dos martírios. Ao chegar em casa, desde priscas eras, o resultado é sempre o mesmo: a covardia se instaura em uma peleja de cinco contra um. Isso é o que eu chamo de gastodeporra. Tô fora! Como minha adorável leitora é sabedora. Eu poupoporra.

Neste mesmo palco, outro casal, já entrado em anos, representa a mesma cena e colore a atmosfera com outras tintas. Ciosos do já feito estudam cada gesto, cada olhar. Nada é rápido. Todo movimento é precedido por uma valsa lenta. Apenas a celeridade da idade emoldurando o retrato antigo, revelando uma imagem que já se escondeu lá no fundo mais escuro. A prata ampliando a fotografia serena, o afago sem afã, a delicada troca de olhares e, acima de tudo, a mansa navegação do veleiro, me deram a convicção, se isso é possível, de que eles tomam café da manhã juntos há bastante tempo. Especulo se tem netos. Acho que sim. Havia em seus rostos aquele aspecto de bonomia que só os avós têm.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Que Santo Expedito nos Ajude

A capital começava seu dia – e que dia – em silêncio. Um silêncio que não era aquele de quando os lobos vagavam como senhores dessa terra, mas de outras épocas. Uma mudez de funerária. Silêncio de agora onde os lobos saqueiam muito mais que nossa grana, rapinam muito mais que nossa roça. Roubam-nos a vergonha, nossa própria capacidade de existir. Não os animais, mas a matilha encastelada em modernos santuários louvando, como que ouvindo a Elegia de Massenet, um butim bem repartido, uma partilha que não envergonhe a aristocracia contemporânea, afinal é lídima herdeira de tempos medievais, e até mesmo cantando uma virtuosa Ária ao vacilão. Caninos sedentos rasgando a turba.

São melodias de pausa que quando ecoadas pelas quadras, não atraem um ser, não chamam a atenção de nenhum pássaro e nem ao menos temos um carro passando. Não havia uma janela aberta sequer, e – o que era mais raro ainda – as janelas permaneciam com as cortinas cerradas. Uma total ausência de sons anunciava um acontecimento de extrema gravidade. Talvez a máscara desbotasse, a mordaça cairia e – não sem polêmica – teríamos uma nova ordem. Tais eram as opiniões dos formadores da mesma. Nunca, sem dúvida, a cidade havia amanhecido daquela maneira. Um silêncio ensurdecedor. Mas os esculpidores de presunções se equivocaram redondamente. Nada saia do lugar. Apenas a sensação de uma eterna imobilidade. Esperando o que não virá, vigiando as fronteiras que os tártaros jamais transporão.

Tal era o semblante da urbe moderna: traços vincados por um tempo insistindo em vigorar, não obstante toda possibilidade de passagem. Anjo Exterminador pairando acima de qualquer atitude. A beatitude da inércia permanece tecendo hábitos antigos, velhas idéias – com acento cem por cento – em velhos papéis, imagem de outrora roubando a cena e mofo perfumando platéia – também atéia em relação ao novo acordo ortográfico.

Meu único leitor deve estar pensando que ensandeci. Não está de todo errado. Só que ainda resta uma réstia – mesmo que rala – de vontade. Uma pequena chama flutuando perdida na escuridão. Se a vi? Não faça pergunta difícil! Deixe estar que um dia há de mudar. Será? Que Santo Expedito nos ajude.