Minha gentileza pertubadora fez com que eu entrasse no inferno. Fui eu mesmo que decidi me apartar da vida e enclausurar-me no além, no reino das sombras e da morte. De certa maneira invoquei e desejei essa solidão. Essas frases possuem seu prestígio, infundem mesmo um certo toque filosófico, meio Eurídice. Em geral o destino dessa personagem depende de sua contrafeição: Orfeu. No meu caso não. Apenas me apego à mãe das Musas. A memória, ao me proteger do esquecimento e do nada, torna-se minha guardiã, minha doce cidadela onde repousar os medos. Em particular aquele que traz uma certa satisfação, ficando, ainda por um tempo, suspenso em nossas retinas.
Não que eu seja um tipo insensível ao amor, minha encantadora leitora, mas sinto um certo rebuliço histérico na busca desenfreada, seja do que for. À primeira vista, isso pode parecer radical, mas como se sabe, o nosso tempo está envolvido pela qualidade de vida. É o jargão do momento. Felicidade, satisfação própria, culto da juventude, velhice sadia, alimentação saudável, nada de drogas, de qualquer tipo que seja, enfim, estamos submetidos ao mais variado cardápio de normas idiotas metendo o bedelho em nossas vidas. Nosso bom baiano, na qualidade de residente, contibuinte e eleitor da inigualável cidade do Rio de Janeiro, como ele nos diz, sente na pele o que é ser coroa municipal, acrescento, me lembrando de Chico, federal.
Bem, voltemos ao caso da morte dupla. Meu canto, embora parecido com o de Orfeu, ao tanger acordes tristonhos e banhar as faces divinas de lágrimas, não busca absolutamente nada. Não há uma Dulcinéia, ou Eurídice, ou Beatriz. Decidamente não há um objetivo claro, um ponto de vista ou algo que o valha. De certa maneira levo vantagem, já que não ter impossibilita a perda e olhar para trás é mais que natural. Já disse que a memória é minha guardiã, portanto, vivo virando os olhos. A miragem de Eurídice não se impõe e posso continuar indo por aí, cantando a tristeza inútil de um ambiente devastado.
Ouço o rufar constante de um tímpano a dizer: Lasciate ogne speranza, voi ch´intrate. Badalos seculares de uma ladainha antiga e viciada. O parafuso dá muitas voltas. Nem sei ao menos como fui parar em Dante. Caminhos sinuosos de uma mente vadia, vazia de cartesianismo. Com efeito, os manuais de redação não servem para minha louca peregrinação em torno do nada. Faço tudo ao contrário e tenho plena convicção que serei reprovado em qualquer concurso. A receita de bolo fala em simplicidade e naturalidade. Eu crio densas névoas e estou escrevendo, não falando. Prefira frases curtas e em ordem direta, reza a cartilha da norma culta. Mas eu continuo me atrapalhando com a pontuação. Escreva parágrafos com tópico frasal e desenvolvimento, mais um axioma da bela escrita. Prefiro a frase inicial áspera, cortante e nada de atraente. Afinal, não sou jornalista.
Arre! Estou farto da medíocridade. As pílulas do êxito, da felicidade imemorial estão à venda nas melhores lojas do ramo, diria um reclame publicitário de antanho. E nem é mais preciso um Adrian Leverkühn. O diabo veste Dior em belas luzes coloridas hipnotizando a patuléia.
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