segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A Dama do sabonete

Ela colecionava sabonetes de motel. De certo apenas a reunião. Sua origem, ou mesmo motivação, é incerta, se perde nos meandros delicados da cabeça dela. Quando deu por si já estava com centenas de sabonetes cuidadosamente guardados em uma antiga cristaleira, nessa altura acho que podemos chamar de saboneira. Ela não tinha a menor lembrança de nenhuma de suas companhias nas idas furtivas ao templo do amor consumista. Só a lembrança nítida de que para cada sabonete havia um correspondente masculino, nunca havia ido com a mesma pessoas duas vezes. Sempre uma única e rápida vez.

O sexo era apenas pretexto para ampliar sua fauna perfumada. De vários tamanhos, feitios e cheiros os sabonetes ocupavam longamente o pensamento da moça, cumpre esclarecer que tinha lá seus quase trinta anos. Alguns traziam motivos eróticos, outros eram feitos de frutas e até mesmo sabonete comprado no supermercado, tipo lux, tinha seu espaço. Acabaram se tornando um adereço cênico importantíssimo no palco de nossa personagem. Não passava por sua cabeça, em momento algum, a quantidade de parceiros sexuais que teve ao longo dessa travessia. Isso era de somenos importância. Só o ato fático – não confunda a obra do mestre Picasso, minha única leitora da mente poluida – de uma formiguinha abastecendo a dispensa de seus desejos mais íntimos, desconhecidos desse pobre narrador.

Alguém há de pensar que se trata de mera monomania. Tola suposição. Havia algo além de um simples acúmulo. Seus gestos suaves, como já insinuei, denunciavam um traço infantil, não infantilóide, bastante presente na mulher. As escapulidas freqüentes eram minuciosamente planejadas. Desde a escolha do motel, era exigente, o local de se pegar o taxi, só ia de taxi, se recusava terminantemente a entrar no carro de seus parceiros, a roupa a ser usada, o perfume, enfim, tudo era cuidadosamente colocado em cena. Alíás, minto, menos os eleitos. Estes não tinham a mínima importância, eram apenas figurantes em sua cuidadosa direção e a eles era destinado apenas o desprezo.

Em se tratando de uma bela mulher, não lhe era difícil o jogo da sedução. Pelo contrário, notava como mexia com a libido dos machos. A dama do sabonete não pegava lotação, passeava despreocupadamente por um shopping qualquer em busca de sua alegoria. O mercado dos desejos se diversificou, se globalizou e agora a figura suja de um motorista não cabe nos fetiches da classe média. O que não me causa espanto, pois acho que há na postura dela uma espécie de fixação olfativa. Talvez seja uma ânsia mórbida de limpeza, como aquelas velhas donas de casa passando eternamente o dedo sob a superfície de um móvel se certificando que não há pó. Ou até mesmo o velho hábito cristão da purificação, da santificação da alma através de uma vida limpa, reta, honesta e nos conformes. Ou outra explicação qualquer que minha única leitora queira.

Outros hão de supor se tratar de uma nifomaníaca. Análise totalmente destituida de vigor. Durante o ato sexual ficava alhures, maquinando mentalmente a relíquia de cheiros escondida no banheiro. Não sentia absolutamente nada, não divisava nem quem estava com ela. Chego mesmo a pensar que seu alheamento era tão grande que o mundo pairava suspenso, uma imagem difusa parando o tempo. Nem mesmo os homens mais brutos foram capazes de retirá-la de seu cosmo fantasioso. O que se esconderia nessas bolas de cera? Lamentavelmente perguntas sem respostas.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Excomungado

Minha única leitora já deve ter percebido que não sou muito dado às coisas cristãs. Não considero a confissão – aliás, não gosto nem um pouco da literatura confessional – um grande sacramento diante do qual eu necessite prosternar-me. A imortalidade da alma não faz parte de meus anseios, o amor que age em mim é contemplativo, tem necessidade de realização imediata e, finalmente, a sensualidade em mim beira o frenesi. Por tudo isso, minha caríssima, é que não me considero a pessoa mais adequada para emitir juízos sobre o cristianismo.

Antevendo um sorriso de condescendência em seus lábios, apresso-me a confessar que sinto um desprezo indizível na promessa do futuro. Esse é o país do futuro, já dizia um velho reclame de tempos funestos. Não justifico minha conduta, mas publicamente admito ser o palhaço de uma comédia indigna. Oferecendo o derradeiro ato da representação as imagens revelam velhas frases, gestos gastos, inflexões inexpressivas e, sobretudo, a vetusta hipocrisia. O coração atormentado e invejoso se envergonha de sua cólera, se esconde de sua mentira e busca, incessantemente, uma verdade para si. A mentira, para esses seres, é incompatível com o respeito de si e dos outros.

Eu não passo de uma farsa. Escuto minha própria mentira ao ponto de não saber mais se sonho uma realidade ou se a realidade é um sonho, se sou uma personagem ou se, malgrado minhas pilhérias patéticas, sou apenas absurdo. A comédia humana se desenrola, ou melhor, se arrasta em um único texto oscilando entre a busca de plus de noblesse que de sincérité ou o contrário, mais sinceridade que nobreza. Acho que já disse isso em crônica anterior. Na verdade, vivo a mesma repetição do mesmo discurso.

Bem sei que as pessoas da sociedade, sensíveis, virtuosas, com domínio de si mesmo, humildes e de almas luminosas, torcerção o nariz para essa narrativa vulgar. A simples polidez seria suficiente para que a antipatia suscitada por esse textículo fosse soterrada. Vã suposição. Como já disse, o que você tem diante de si é um palhaço representando inconscientemente uma comédia indigna. Sabe a senhora, santíssima leitora, como me apresento dinte do trono? Pelado com a mão no bolso.

É nesses momentos que vejo como minhas zombarias não funcionam. Sobrevivo pelo fato de ainda existir uma leitora delicada que vai até o fim, curiosa com fatos banais e não com grandes acontecimentos históricos. Vês, como sou tolo? Pois bem, eu, eu não sei ainda e não posso compreender, mas não passo de um amador em busca de anedotas, recortador de jornais e escrivão de fatos alheios. Nada disso importa. Se escrevo, não vejo. Se vejo, não escrevo. Desculpe-me, atrapalhei-me, mas a senhora compreende... vejo pelos seus olhos que a senhora compreendeu... porque nutro um nobre sentimento para quem suporta essa fala extravagante e você é a única.

PS: o poupadordeporra ficará ausente por três dias. Coisa irrelevante, já que meu objetivo de uma crônica diária foi para o espaço há muito e minha única leitora não irá se desesperar por coisa de tão pouca monta. É só, fui.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Menestrel dos mares – finalização.

Não sei ao certo onde larguei minha única leitora. Pois sim, acabei descobrindo, por acaso, que tenho uma única leitora. Retomemos o prumo. Ao nos reencontrarmos pressenti, como disse anteriormente, a influência extraordinária daquele grupo em mim. Era a promessa da liberdade perfeita, aquela consigo mesmo, como ressaltado por nosso contumaz jogador moscovita. Renata era a personificação do sonho de meu coração. Esguia, com penetrantes olhos perscrutadores, mirava a morada por cima das picuinhas humanas. Talhada em contornos suaves, ostentava um sorriso inquiridor, não desprovido de astúcia, nos lábios carnudos emoldurados por um rosto de notável beleza e candura.

Meu entendimento com ela foi rápido e intenso. Ficamos por alí, no largo do Campo Grande. Praça testemunhando brincadeiras do tipo se fosse o que seria e tantas outras. Varamos a noite conversando, brincando, falando de sonhos, de descobertas, rindo, enfim, estava mais feliz que pinto no lixo. Ao romper a barra do dia havia algo de anjo exterminador no ar. Ninguém tomava uma atitude e tudo estava envolto na indecisão até que o Paulo lembrou que a casa de Itaparica estava vazia.

Só queria pegar meu violão, lá na Ribeira, próximo à Igreja do Bonfim e em frente ao quartel, onde estávamos hospedado na casa de uma tia do Lago. Perfeito, pois tanto a Marina, não é mera coincidência, e o Paulo precisavam passar em casa e ambos moravam na cidade baixa. Marina porque estava em dias de revolução vermelha e o Paulo para pegar as chaves. Tudo resolvido rapidamente e tocamos para a ilha. Era um dia magnífico, quente e claro, de meados de janeiro. A casa dos Pais do Paulo ficava ao lado da entrada de um resort qualquer. É, eles já estavam por lá.

A casa era pequena e simpática. Havia uma profusão de flores. Mãos boas, como se diz, deviam cuidar delas. Havia canteiros ao redor da casa de madeira, um rés-do-chão convidativo e acolhedor. Nos colocamos, comemos, tomamos banho e fomos para a praia, lá para os lados de mar grande. Dia perfeito. De noite veio o melhor. Resolvemos fazer uma fogueira na praia. Tava eu lá tocando uma das suites para alaúde do Bach, quando me chega um nativo com um violão na mão. Sentou quieto, sem falar nada, só ouvindo. Quando terminei ele falou:

    - Música bonita, nunca ouvi. Não é brasileira, é?

    - Não, é de um alemão.

Renata chegou-se a mim e pediu para eu tocar Tereza da praia, que ela cantou divinamente. O nativo tentou me acompanhar, mas não deu conta da harmonia.

    - Essa é brasileira. – Eu disse.

    -É, percebi. Posso tocar algo?

E desfilou uma série de cirandas que me deixaram aparvalhado. Após a terceira ciranda eu já havia sacado os caminhos harmônicos e rítmicos, que não eram tão complicados. Passei a tocar com ele. Foi quando ele, após mais uma bela ciranda, me mostrou o requebrado da moreninha do pompom grená. Dessa vez não fiquei aparvalhado, fiquei passado. O menestrel dos mares surgiu em cena. Quis ouvir mais e fui gentil e largamente presenteado com várias canções do vate baiano. Minha imensa curiosidade tratou de memorizar tudo, menos as letras, para não perder a tradição.

No dia seguinte à noite, partimos rumo ao nosso cerrado. Depois disso começei a ouvir o mar de maneira diferente. Ao nos despedirmos toquei Marina para a dona do nome, É doce morrer no mar para o restante do grupo e para Renata toquei uma ciranda que fiz de atrevido. Nunca mais nos vimos e, tenho certeza, nunca nos esquecemos.

domingo, 17 de agosto de 2008

Menestrel dos mares

Assim que terminei de postar a crônica de ontem, sábado, tive a notícia da morte de Dorival Caymmi. Não estava a fim de parar as impressoras virtuais e deixei para hoje falar do menestrel dos mares. O cancioneiro brasileiro está de luto e perde um de seus maiores símbolos, a fala doce do mar emudeceu. Naquele balanço, naquele vai e vem hiptnotizador, se revelava a harmonia tirada do mangue, dos baixios exalando vida. Embora Salvador não seja Recife, acho que a imagem cabe.

Falar desse soteropolitano sem imaginar uma puxada de rede, um coqueiro gigante dançando com o vento, uma lambida sensual da onda na areia é o mesmo que ter diante de si o horizonte, na perspectiva insinuada em crônica anterior. Os tambores da Bahia atacam um rito nobre, altivo. Dão notícias do espírito que vai, anunciam Iemanjá trazendo seu filho dileto, o velador de velejadores. É preciso que se convoque a negra e suas ervas, pois o poeta vai tomar uma buginginha em outros terreiros. O toque da devoção abre a festa, as danças tomam conta e o que importa é ver os afoxés nos dias de vadiação, no tempo de se brincar com os orixás, já diria nosso trovador sem tirar os olhos das moças de saia.

Lembro nitidamente a primeira vez que fui à Salvador. Tinha dezoito anos e descobri um mundo encantado. Me deparei com fatos mágicos, lindos para meus olhos adolescentes e que acabaram se tornando simbólicos em mim. Como naquele dia em que conhecemos, eu e o Lago, já falei dele aqui, quatro lindas morenas e dois caras sensacionais, infelizmente não lembro os nomes. Talvez seja melhor assim, conserva o ar misterioso. Mas para facilitar a vida de meu único leitor darei nomes fictícios.

Estávamos duro e matando tatu a unha. Nossa única possibilidade de renda era meus livrinhos, o primeiro. O jeito fui ir à luta e tentar vender o dito, de mão em mão, como era costume por essa época. Já falei antes de como meus linvrinhos salvaram situações de extrema penúria pecuniária. Pois essa foi uma delas. Havia um show, também não lembro de quem, tudo envolto em névoas que apenas insinuam, no Teatro Castro Alves. Não havia lugar melhor para iniciar a árdua tarefa de angariar algum. Graças aos deuses os livrinhos estavam saindo, a fila imensa facilitava o trabaho, e o bolsinho mal amado enchendo. Foi quando me deparei com o grupo que teria enorme influência em minha vida.

Fiquei apaixonada de cara pela Renata. Na adolescência a gente se apaixona com uma facilidade incrível, tudo é motivo para se embevecer. Linda em sua atitude de entrega, em seu sorriso largo, amplo como o horizonte do cerrado. Suas coxas torneadas pelas mãos de um artifície eram um convite ao prazer mais desmedido. Cheguei com aquela conversinha mole de vendedor, prontamente desarmada pela Renata. O que só fez aumentar meu desejo. Eles só tinham dinheiro para o show. Dei um exemplar para cada um. Esquecemos de vender livros e ficamos conversando com eles até a hora de entrarem. Não sei ao certo até hoje a razão pela qual não entrei com eles. Acho que a pataca falou mais alto, a maré não estava pra peixe.

Fiquei perdido, marinheiro sem bússola numa noite mais negra que tiziu. Achei que tinha perdido ela pra sempre. A solução foi voltar a vender os livrinhos. Vendemos bem e solucionamos nossa miséria material. Cedeu lugar para uma outra: a angústia do sentimento de perda. Não esqueci o grupo, principalmente Renata. Encheu o saco ficar de conversinha e já tinhamos grana suficiente para voltamos para casa. Chega, aos trabalhos. Sentamos em um bar situado na lateral do teatro e tomamos algumas, fizemos amizade com umas pessoas e fomos embora.

Para felicidade geral do meu ser, ao passarmos em frente do teatro encontramos o grupo saindo do show. Uma felicidade invadiu minha alma embriagada e o mundo girou. Mas essa fica para amanhã, pois essa crônica vai ficar grande os prêambulos são fundamentais para explicar o fascínio que senti ao conhecer a música do menestrel dos mares.

sábado, 16 de agosto de 2008

Sábado

Sábado é um dia único, singular. Trata-se de um dia onde as promessas semanais se revelam, se mostram límpidas diante de nossa mais terna intenção. É um dia em que as pessoas se tornam excessivas. Ou tristes, ou alegres. Ele se sentiu triste. Como fazia todo sábado, saiu cedo para dar sua volta habitual na cidade. Olhou tudo. Os carros, as moças, escutou vozes, viu brigas, carinhos, um mendigo escovando os dentes, enfim, a pulsação humana entrou em suas retinas e tímpanos.

Não sei ao certo como o processo se desencadeou. Foi de inopino, ligeiro como um tigre de veludo. Tudo feito conforme o hábito longamente cultivado, nada fora do lugar. Um caminho sabido e palmilhado de cor. Apenas o inusitado e esse foi fundamental. É como aquela velha estória da frase despreocupada que traz em si a sinopse do destino. Nesse sábado algo o pertubou. Saíra, como de costume, elaborando toda trajetória do dia, percusso esse já sabido desde as calendas gregas. Primeiro o passeio, depois o banho, a cerveja solitária, o sono e a noite... A dolorosa roda quase imóvel do tempo.

O planejamento da manhã foi feito sem sobressaltos e tudo parecia caminhar para mais um dia como os demais. Após o banho, inexplicavelmente não fez a barba. Estava se sentindo descompensado e com uma tristeza diferente, mais branda que o de costume. Não bastasse não ter feito a barba, ainda colocou uma bermuda. A correnteza se precipitava. Atos improvisados dando o tom da cena. O palco, sob uma mórbida aparência de limpeza, se postava vazio diante de seus olhos. Nada mais inútil que um tablado e uma platéia sem representação.

Finalmente saiu. Ao colocar os pés nas ruas sentiu um arrepio atrás do pescoço ao mesmo tempo em que avistou um cachorro fuçando uma lata de lixo. Instintivamente levou a mão ao pescoço enquanto observava o cão com tenacidade. Assoviou chamando o vira-latas que não lhe deu a mínima. Inútil dissimular a tristeza que invade o silêncio da resposta. Não há explicação para a dor que veio e ficou, como relíquia preciosa de escavações profundas. Caminhou lentamente até o bar, onde se sentou na mesa de costume.

Parecia retomar em suas mãos o destino. Ao menos a mesa era a de sempre. A cerveja gelada desceu quadrada, fel amargando a alma. Notou o cão deitado na porta do bar. "Eu até poderia ficar com esse cãozinho. Mas como? Fico o dia todo fora, como vou cuidar dele? Não, essa é uma idéia estúpida. Tadinho, todo sarnento. Seria bom ter um animal para me fazer companhia. A casa é minha, moro sozinho, o quintal é grande e ele teria bastante espaço. Acho que vou ficar com ele". Decidiu resolutamente.

Pagou a cerveja e foi embora. Ao passar pelo ser canino assoviou e desta vez foi atendindo. Foram os dois em perfeita sintonia, naquele íntimo entendimento prescindindo de palavras. Cada qual ao seu modo rompeu com um passado próximo, um momento de fissura brusca, sem negociações, sem diálogos, sem apropriações, sem representações. A digna e repentina consciência da vida lhe restituiu um vigor perdido há tempo. "Decididamente não irei apodrecer em gestos repetidos, em atos sem ações, na exasperante reiteração do mesmo".

Sábado é realmente um dia único, de resoluções enfáticas e redentoras. O diabo é que se você sobreviver ao final de semana, tem sempre a ressaca de quinta grandeza na segunda. Um brinde e até lá.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ecos de Ernest

O estampido veio de longe, quase inaudível. Assustados, olhamos uns para os outros em uma muda pergunta destinada a cair no vazio. Já sabedores da resposta negativa não havia necessidade de questionamentos. A noite enluarada chovia lágrimas crepitantes sobre a fogueira, distante da barraca em cerca de vinte metros, uma distância razoável e segura. Já estava na hora do jantar, e todos se encontravam sentados na beira da fogueira assando umas batatas e lambendo a última beiça do dia quando o rugido nos pegou. Em princípio atinamos apenas para o trovejar de arma de fogo, não percebemos os símbolos por trás daqueles rugidos e único tiro.

Automáticamente peguei minha espingarda e meu facão. Apetrechado me senti mais seguro e assentei pensamento: não há o que temer, o tiro foi longe, lá pras bandas da chapada, perto do rio, talvez na margem. Deve de ser caçador de onça... isso é uma corja nojenta. Mata os bichos pra fazer dinheiro e olha que já não tem mais onça. Meu avô saberia muito bem o que fazer com eles. O pior é que os vagabundos só caçam com no mínimo dois, covardes acima de tudo. Não tem peito de encarar a bicha e fica se escorando em seus comparsas. De qualquer maneira é melhor dar uma bordejada por aí para ver se consigo vislumbar o acontecido.

Fui pertubado em minhas idéias pelo Bira. Sujeito alto, magro, com muitas espinhas na face brancavermelhada parecia uma espiga de milho garunchada pela praga polaca.

- Desarmar acampamento?

- Tá maluco? Hora dessa? Vamos ficar aqui quietos, só assuntando. – falei.

- E o barco? – perguntou o Tuchê.

- Uai, o barco fica onde tá. Só vamos deixar ele pronto pra partir e vamos rezar para que não seja preciso, pois não sei se vocês se lembram, mas a porra do Bira não trouxe o farol – Falou o Minerim.

- E por quê você acha que vai ser preciso? – perguntou o Meleca, já demonstrando um certo pavor.

Procurei acalmar os ânimos, que já roçavam uma fronteira perigosa, aquela onde não há um pingo sequer de discernimento da realidade ao redor. Mantive a calma e chamei o Francês; cearense com a cabeça mais chata que tábua de passar roupa, o cabra conhecia um pouco das manhas do cerrado, além de ser um excelente perdigueiro; para dar uma olhada em volta do acampamento. Peguei minha lanterna e fomos vagarosamente, perscrutando cada palmo de chão, cada galho quebrado, coisa que o Francês fazia muito bem como já disse, até que demos de cara, cerca de uma légua, com um jirau cheio de peles. Eu tinha razão. Os filhos de uma égua estão por aí.

Chamei o Francês e dei a idéia de pregar um susto nesses vagabundos. Bem que esses fios de uma rapariga merecem uma lição. Primeiro escondemos todas as peles. Depois faríamos com eles o que eles fizeram com os animais, ou seja, iríamos caçá-los. Só não vamos estourar suas cabeças de animais. Mesmo porque suas cabeças não valem a pena como troféu e eu não sou caçador. Partimos. A noite nos era favorável, pois não foi no tição das estrelas sem lua que aprendi os segredos do cerrado? Com essa lua era moleza. Ouvimos rugidos de onça, vindos de algum lugar à margem do rio. Mais uma vez eu acertara. Era um ruído agudo, rasgado, ao fim do qual vinha algo parecido com vozes – os caras são amadores – aparentemente próximas. Atrás de mim, com olhos de águia e faro de cão, o Francês percebia o medo contido nos rugidos.

- Soa como um lamento – observou o Francês, erguendo os olhos da touceira que havia acabado de examinar. – Ouça como ela está acuada. Estará mesmo tão perto?

- Está a pouco mais de quinhentos metros, rio acima, na margem esquerda.

- Vamos avistá-los?

- Tudo indica que sim

- Então vamos logo que estou doido pra dar uma peia nesses cabras e a bichinha já tá bem estressada. Te falei que eu acho que é fêmea?

- Por quê?

- Sei lá, o rugido parece voz de mulher.

Foi mais fácil que pensei. Antes de mais nada achamos e afugentamos a onça para longe dos pistoleiros. Depois foi mais fácil ainda achar os caras. Como eu disse antes, eram amadores, deixavam marcas por todos lados e não tinham a mínima noção de retaguarda. Executamos nosso plano. Tomando cuidado em escolher cobras sem veneno, pegamos algumas, meu passatempo predilento em acampamentos, e colocamos, depois de um vacilo deles, o que seria inevitável, uma em cada mochila, quatro ao todo e fomos embora sem saber o resultado. Mas creio que tenham saido correndo feito malucos cerrado afora.

Só voltamos ao acampamento com o sol raiando. Nem percebemos que andamos a noite inteira. Assim que chegamos todos queriam saber o acontecido.

- Nada, só barulho atoa. – falou o Francês.

Nada me foi perguntado e eu nada disse.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Garnizé

De vez em quando eu ia em um butiquim lá no Guará. Não costumava ir muito. O Guará é longe e a volta sempre foi complicada, mas sempre que aparecia por lá era muito bem recebido pelos da casa. Já não vou mais, pois a lei seca do Lula, grande ironia, logo aquele pé-inchado, já não me permite vôos longos. O estabelecimento é simpático e é um autêntico pé sujo familiar. Um desses butecos largados ao léu com uma certa sobriedade, uma elegância discreta se manifestando nas mesas e cadeiras surradas, o que pode parecer esquisito em se tratando de um bar, ainda por cima velho e decadente. Não é de todo absurdo atribuir a esse ar vestuto e parado, meu fascínio pelo local. Ali parecia que o tempo tinha sido capturado pela memória desse estranho grupo.

O bar tinha uns lances engraçados e curiosos. Mudava de dono constantemente, nunca deixou de ser bar, a mesma aparência, reformas só as essenciais, como a troca de uma caixa do vaso, por exemplo. Uma clientela fiel e praticamente única, composta de um grupo de amigos "idosos"e, para muito além de qualquer coisa imaginável, uma soberba prosa jogada fora e sem testemunhas. Eventualmente eu me sentia meio estrangeiro, já que eu era intruso em uma terra na qual eu não merecia pisar. Até que um deles comprou o bar e entregou chave pra todo mundo. Foi uma espécie de colegiado administrativo encerrando a eterna brincadeira de anel. Afinal, quem sustentava o bar era o grupo. O diabo é que todos eles saiam bonitos, chamando jesus de Genésio e urubu de meu louro, do que se aproveitavam distribuidores desonestos. Quebraram, evidentemente. Prontamente convocaram alguém apto para reerguer e gerir a sede.

Contemos então, pois. Era habitué um tal Garnizé. Nunca soube ao certo a razão do apelido, mas supunha ser devido aos tufos ralos ainda existentes em sua testa. Assim, meio galo de campina. Garnizé, um senhor de quase oitenta anos, ou mais, nessa idade já não se divisa nitidamente os marcos do tempo. Cumpre dizer, antes que eu esqueça, que o caçulinha do grupo tinha lá seus setenta e poucos anos. Voltemos ao Garni. Carioca, como boa parte da diretoria, se vangloriava de ter perambulado pelo Rio nos tempos de ouro.

    - Madame Satã? Aí cumpadi, era chegadaço, de lei. Aí, uma ocasião eu salvei o camarada da maior roubada. Malandro tava a fim da abotoar o cara e eu dei o plá. Aí, o texto que eu mandei deixou o malandro sambando na parada. Conheci essa rapaziada toda, tudo gente fina. Foi lá na gafiera do Elite Club que conheci o Geraldo Pereira. Dizem por aí que o Geraldo morreu nas mãos da Madame. Pura lorota, madame satã era uma moça, delicadíssima, incapaz de matar uma barata. Aí, foi no dia 8 de maio que o cara empacotou, o ano não lembro, acho que foi 55. Já o Wilson, conheci no Café Nice, ali na avenida Rio Branco. Vendi muita música dele, ele me pagava um por fora. A gente fazia ponto na praça Tiradentes. Muito diferente dos bacanas da Confeitaria Colombo. A gente era de uma dureza de dá dó. Esse papo aí de que ele e Noel eram inimigos não tem nada a ver. Aí, te conto meu camarada, só porque você é meu chegado. Tudo culpa de mulher. Tinha uma moreninha que o Noel tava de olho e o Wilson traçou sem dó nem piedade. É malandro, rapadura é doce mas não é mole não. Aí os malandros se estranharam, só isso. O resto é conversa de intelectual.

Se ele realmente conheceu todo esse pessoal não confirmo nem desminto. As datas, os acontecimentos, os mitos, as versões, enfim, havia em seu discurso uma boa dose de precisão histórica convivendo lado a lado com mitos cristalizados no imaginário social. Na última vez em que apareci soube que nosso querido personagem havia se esvanecido no ar. Bateu asas feito passarinho novo, meio desajeitado com a novidade, mas com a força inicial da vida.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Efemérides

Meu único leitor, traga vinho tinto do melhor, acenda os fogos, convoque os palhaços, atores e dançarinas, distribua fartamente o absinto e música, muita música. Monte-se o espetáculo das efemérides. Taí, achei a palavra exata: efemérides. Eis que estamos um mês no ar, pelejando, escrevendo e peidando. Vou pedir aos deuses a promulgação de feriado intergaláctico, suspendam todas as atividades da eternidade para tecermos louvores ao dia. Trinta dias maculando o papel branco com mal-traçadas linhas, quatro semanas ardilosas, incompreensíveis a mim mesmo. Tempo onde, muitas vezes, ou melhor, na maior parte das vezes, estabeleci uma conversa da mão com o pênis, sêmem jogado na lata de lixo da história.

– O Parágrafo anterior sou estranho. Sêmem? Porra, qual é meu camarada? É porra mesmo. Deixe de viadagem e siga o caminho do blog. Em verdade vos digo, caro irmão e único leitor, na hora de pouparporra o cara, digo, o narrador, gastou. Sabe aquele ditozinho: perdeu uma grande oportunidade de ficar calado? Pois é, eis o caso. Sem se falar na conversa da mão com o pênis. É punheta meu camarada. E pênis é pica. Acho que esse cara não entendeu o espírito do blog. Qual sua opinião meu leitor exclusivo ? –

Nada mal para um escriba pouco criativo, sem domínio da tinta e pouco dado ao cartesianismo. Não nos queixemos, meu único leitor, ainda há vida após o chocolate. Apesar da imagem imprópria, comparo este blog com uma gravura difusa, dissipada pelo tempo, como se fosse um objeto colocado no canto de um quarto em penumbras onde mal se divisa traços e linhas.

Lembro quando decidi fazer esse diário de crônicas. Aconteceu em função de uma brincadeira de butiquim, um daqueles infelizes ditos que ficam grudados feito tatuagem na pele do autor. Lamentavelmente tive que tirar a crônica na qual explicava a razão do título, mas sigamos em frente. Procurando exercitar a escritura não demos moleza à preguiça. Falhamos alguns dias, é verdade, nada indigno para coisa de tão pouca monta. Mesmo porque ao mundo não foi dado conhecer tais furos.

– Creio ser melhor eu mesmo fechar essa crônica. O cara se excedeu em seu parnasianismo e é necessário colocarmos a pinga nos is. "Mais um dose? É claro que estou afim". Dupla para mim poeta e deixemos dessas coisas e afirmemos: viadagem aqui não, nada pessoal meu caríssimo poeta carioca e demais alternativos. Mesmo porque esse blog é politicamente incorreto e não aceita essas qualirices coercitivas. Tá me entendendo? Explico-me ou complico-me: quero dizer que aqui é a crueza das ruas que importa, a adaga do palavrão, o dedo na ferida cristã e todo e qualquer tipo de coisa ordinária, sobretudo, as proibidas, essas que o cristianismo dourou de pecado. Não esse rebuscamento pequeno burguês de pintor rococó adquirido em cemitérios escolares do saber. E tenho dito –

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Catarina

- Vamos, rápido.

- Faz é tempo que estou esperando vocês.

- Não vai dar galho?

- Claro que não, eu vou sempre. Nunca aconteceu nada.

Caminhavam ansiosos e apreensivos. A noite era escura, não havia um traço de luz no céu, até as estrelas esconderam de vez o sabor da novidade.

- Foguinho, falta muito? estou ficando cansado. Você disse que era perto...

- Porra cabelinho, deixa de ser frouxo, a gente acabou de sair.

- É, não andamos nada ainda.

- Calma, só mais cinco minutos. Que são cinco minutos?

- Já ouvi isso – disse o morcego.

- E se aparecer alguém?

- Não vai aparecer ninguém, é longe da casa.

- E a piãozada?

- Ah cacete, deixa de ser mariquinha. Se quiser é só voltar.

Depois dessa o cabelinho se calou e foguinho continuou conduzido o valente grupo rumo às aventuras. Sua liderança era daquelas conquistada sem alarde, com um ligeiro toque de benevolência e totalmente sem noção do perigo. Criado solto naquele mundão, escaravunchava cada palmo da região. Com o olhar curioso não perdia nenhum gesto que por ventura se mostrasse diante de si. Adorava espiar o que os moços e as moças faziam atrás da igreja. Como daquela vez em qeu viu a filha do prefeito no maior amasso com a filha do farmacêutico. O padre havia dito que era pecado. "É nada, é muita é safadeza, isso sim". Conclui peremptoriamente.

- Muié com muié dá jacaré.

Gritou e saiu correndo, rindo como quem descobre sua balinha em uma travessura. Outra vez, lá na lagoa, viu a Mariquinha peladinha. Arregalou os olhos boquiaberto com o mundo escondido atrás daquelas leves penugens. A partir deste dia operou-se uma mudança significativa em foguinho. Começou a observar os volumes como uma artista plático descobrindo novas possibilidaes. Peitos e bundas passam a povoar sua mente. Daí para os catecismos foi um passo.

- Pô foguinho, essa porra não chega?

- Chegamos. Tá vendo ali, perto do riacho?

- Tô – disse o morcego. Tá tudo quieto.

- Eu não falei.

- E se o véio chegar? – perguntou cabelinho.

- Chega não! Hoje ele só volta tardão da noite.

-Então vamos lá.

- E ela deixa?

- Claro. Até gosta...

Foguinho dá um assovio que só ele sabe fazer e aparece, toda dengosa, a égua Catarina.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O textículo que não escreverei.

Assim como a cidade, sou um sujeito excessivo. Não me contento com migalhas, não as peço e nem as pego. Ou se é ou não se é! A contemporização apenas revela a impossibilidade da escolha, do prazer da descoberta. Mostra a incompetência para o risco. Se manter cientificamente distanciado é a demostração cabal da impossibilidade da vida. Isso não me serve. Extravasar a emoção, como nos diz o poeta, é reduzir a inteligência ao seu estado mais primitivo. "A idéia serve a emoção, não a domina".

Dizei-me, agora, caro único leitor, estais esperado o quê? Quisera eu ter o sentimento do mundo, mais uma vez ecos de Itabira, e agradar a multidão. Cada um se arroga ser o receptáculo da turba, com olhos arregalados, aos empurrões, busca um bilhete, uma entrada para o saguão da flutuação humana. Não me fale dessa turba cuja presença incomoda meus lábios vacilantes, timoratos e pálidos. Não é digno de um artista o manuseio conscientemente ideológico da miséria que nos reveste.

Se queres entrar a entrada é franca, zero oitocentos propiciando o êxito esperado pelo diretor. E muita ação, pois ação é o que povo espera. Apresente quantidade e terás uma multidão pasma. À massa o coro da fantasia, o juízo e a graça das conquistas. "O humor do povo já não incomoda a quem com jeito se transmite e fala", como diria o trovador alemão. Dai muito, a cada um conforme seu desejo, que todos sairão felizes, gratos pela iguaria servida. Já muito falo, palavras sobrando em uma prosa fútil.

É necessário conter a vertigem da viagem, das especulações sem sentido. Aprumar a trajetória da escrita, estabelecer sua rota eis a margem da travessia. Essa elocubração pretensamente filosófica, destituida de significados claros, não se coaduna com os rigores da narrativa linear, com início, meio e fim. Isso é um pecado mortal para o percurso traçado. A obra que arrebata, que arrasta o curso das coisas, que se quer eterna, essa prescinde de devaneios subjetivos. As amarras domando o corcel indômito.

Contudo, já o disse: sou excessivamente excessivo. Laços não lançam dados, não enlaçam o textículo que não escreverei.


 

domingo, 10 de agosto de 2008

No meio do quarto

Meu reino é sombrio. Paira trevas nesse quarto. Nada se divisa e tudo é envolto em densas névoas negras. As mínimas coisas tomam contornos indefinidos, se tornam espectros imensos em sua insignificância. Tempo de mirar a cortina de água que desce da terra, do âmago, das profundezas de uma angústia atroz. Quanta brutalidade nesse império cruel, nessa longa noite sem fim. A madrugada não passa de uma mera ilusão de quem anseia a manhã.

Inelutável, as barras do tição rompe a aurora, despudora a luz que não vem. Sonho claro, mera quimera desta galera. É tempo de mirar a janela fechada, a fachada apagada e a pura solidão. Silêncio cortante do burburinho humano. Meu reino é sombrio. Uma longa cimitarra percorre minha espinha feito faca na manteiga. Parte em dois uma medula que nunca foi una, única. Minha Dinarmarca tem a marca da pantera, o rugido do vulcão, a estranha morbidez cristã e a louca desafinação do coro dos contentes, parangolé de um lance desvairado esvanecendo-se na fumaça de um baseado.

Com absoluta clarividência descobri que minha busca desenfreada pela beleza, cujo clamor remonta de épocas imemoriais, se assemelha a vertigem da paixão. Acabei aprendendo a contar as estórias de nossas melancólicas debilidades com tonalidades zombeteiras, em dissonâncias ásperas e sarcásticas. Não escondo minha solidão extrema, assim como não revelo a amargura da vida dupla, tripla... Inconsolável sentimento de não pertencimento.

Diria até que o mundo conspirou para que minha máscara representasse a mortificação irônica da precariedade humana. Não que eu tenha a pretensão de ser uma imagem, apenas personifico o elemento mais risível, mais grotesco da cena interna. Minha eterna pantomima tola, desvairada e com um sorriso velhaco, não atina com a platéia pelada. Um praticável só faz sentido, assim como o espetáculo, se em seu dorso há gente. Uma dúvida me crava a lança: a frivolidade seria atributo de pessoas bonitas? Sendo assim, a extrema beleza de luz em Rafael não passa de uma ingenuidade pueril?

"Nobody loses all the times" já disse o vate estadunidense. Parece, meu único leitor? Não. É! "Os atavios e as galas da dor" estão expostos e indicam meu estado de ânimo. O semblante abatido denota a vergonha da derrota. "Ser ou não ser, eis a questão!". Estar ou não estar, eis a razão, "In a middle of a room" cheio de trevas. Nada mais que o reino sombrio de um suicida. Hamlet perdido na escrita. Ao tensionar a coisa até o limite do suportável, nada mais faço que expor a possibilidade de rompimento da idéia e o machado dessa fissura é a palavra, escrita ou não. Ou como diria Octavio Paz: a tradição da ruptura.

Cummings e Hamlet nos "tristes trópicos"? Coisa mais maluca. Sem ser ofensivo ou preconceituoso, é um verdadeiro samba do criolo doido no horário nobre de pindorama. Enfaticamente, como o poeta, me despeço largando ao largo a impressão doentia de uma terrível apatia. "Beautiful is the unmeaning of (silent) falling (everywhere) s now". Cai, agora, uma garoa ignorante em meus lábios sem que nada surja deles. A beleza não passa de uma visão turva da realidade. É só.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Banalidade

Algumas banalidades, e porque o são, todos nós temos. Julgo ser necessário lembrar; logo no início dessa crônica, pois é fundamental e deve estar diante dos olhos de quem se proponha a ler esse textículo; que é "Feliz quem passa a vida sem provar a desgraça" . Não me olhe torto, por favor. Não é pedanteria barata.Tampouco trata-se de atenuar antecipadamente uma culpa ou, como já disse, querer arrotar erudição. É simplesmente uma ironia trágica. Embora haja um quê de psicologia de feira.

Também devo declarar que o único leitor familiarizado com meus clichês, não reconhece originalidade alguma nessas garatujas. Efetivamente é uma fala da Antígona de Sófocles. Em quase sete décadas de existência regrada e meditada, suponho que não falte testemunho de minha luta árdua, hoje resignação pura, em busca da "veracidade"mais que o desejo da "originalidade".

Indubitavelmente o drama contemporâneo não passa de um interlúdio supérfluo, assim como em Eurípides. O real e o ilusório se confundem com a música, mas a audiência hodierna não afina seus ouvidos e continua recitando, tecendo seu mito trágico. Com pilares deslocados, parte ainda mais o seu já multifragmentado objeto e supõe e impõe a relatividade de seu pensar. Um tempo de homens partidos, como já disse outro poeta, o de Itabira.

Partimos da premissa de que o conceito de pós-modernidade representa a realidade contemporânea em sua verticalidade cultural de uma sociedade chamada de pós-industrial, fragmentada e deslocada, como definido pelo papa pós-pop Stuart Hall. Estamos considerando uma série de relações, inclusive estéticas, que definem o final do séc: XIX e todo breve século, pois Charles Baudelaire, já na agonia romântica, vai pincelar os primeiros traços da definição estética de modernismo, sendo até possível considerá-lo como "precursor" do modernismo, pois aqui se inicia todo processo de despersonalização da lírica moderna. Ou seja, estamos tomando como pontapé inicial dessa trajetória moderna o poeta Charles Baudelaire, pois se há um pós-moderno, há um pré-moderno e um moderno.

A confusão reinante no uso desse termo é grande e para evitar maiores confusões peguemos uma data baixa. Consideremos como pré-modernismo todo alto romantismo, como moderno a reação iniciada por volta de 1910 contra os simbolistas e todos seus desdobramentos mais radicais das décadas seguintes, até mais ou menos final dos anos 50, início dos 60 do século XX. Pós, naturalmente, todas as mudanças sócio-culturais ocorridas a partir daí até hoje, primeira década do século XXI. Pode parecer um tempo demasiadamente alongado, mas torna-se imprescindível, para um trabalho sério, que assim seja. Creio ser impossível dissociar o final do novecentos, a Era dos extremos e este obscuro início de século XXI.

E essa é uma de minhas banalidades: dar tratos à bola em elocubrações inúteis, indignas de serem proferidas em voz alta. Na verdade é um verme individual, de enganosa lucidez.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Orfandade

Eu iria receber uma comenda em minha cidade, da qual estava afastado há mais de vinte e cinco anos. Logo após minha separação fui para os Estados Unidos. Estava inexplicavelmente imbuido em sair de minha cidade a qualquer preço. Onde nasci, cresci, me formei e vivi não me cabia mais. Todo lugar, qualquer canto havia uma lembrança amarga e doce ao mesmo tempo. Uma eterna contradição que me amargurava profundamente. Larguei tudo e sumi. Não dei nem pedi notícias. Saí em busca de todas alternativas fora dali. Surgiu esta na terra do revólver e fui. Acabei me enfurnando nos estudos para acabar com meu monológo solitário e colhi os frutos. Me tornei um renomado compositor que se dava ao luxo de viver nababescamente de suas composições.

Agora volto para esta homenagem. Fiz duas únicas exigências: dois convidados e dois lugares nobres, centrais e próximos de mim e a outra era reger o concerto, coisa que eu não fazia há muito tempo. Não sabia do paradeiro desses dois convidados. Dei para o Spencer, meu produtor, o último endereço conhecido e pedi que se virasse e os achasse. Após o que, iniciei a composição de uma peça especialmente para esta apresentação.

No dia do concerto estava extremamente apreensivo, parecendo um estreante cujo repertório está além de suas possibilidades. Não perguntei mais notícias sobre meus convidados e tampouco as tive de Spencer. Ao entrar no palco intintivamente procurei-os nos lugares reservados. Não os reconheci de imediato. Eram eles, sem dúvidas. Como estavam grandes e bonitos. Ao vê-los tive uma sensação até então desconhecida e corri para o pódio. Antes de levantar os braços ainda pensei: "Será que eles sabem que sou eu"? Modéstia a parte, fiz um belíssimo concerto e a estréia mundial da peça dedicada aos meus dois convidados agradou bastante.

Nunca gostei de fazer discursos, embora eles fossem inevitáveis. Nesse dia fugi completamente do protocolo e desandei a falar olhando fixamente para os meus convidados.

- Caríssimos, a peça que vocês acabaram de ouvir é dedicada aos meus dois filhos, que aqui estão para meu júbilo e contentamento. Há quase trinta anos que não os vejo. Há quase três décadas que guardo no peito essa ausência. Os senhores hão de perdoar meus clichês, o que sinto é totalmente piegas. Alguns até dirão vulgar. Mas não posso deixar de pedir desculpas aos meus filhos por eu ter fugido. Se a evasão propiciou tudo que alcançei foi, também, a responsável por tudo que perdi e roubei. Furtei aos meus filhos seu pai. Agora são homens, não precisam mais de pai. O sentimento de orfandade encobriu minhas retinas, ofuscou minha lucidez e acionou o mecanismo de minha vitória. Agora a única coisa que posso fazer é desculpar-me perante todos.

A platéia não se conteve e aplaudiu efusivamente o compositor da terra. Saí rapidamente para o camarim e as únicas pessoas autorizadas a entrarem eram eles. Fiquei pensando se eles iriam falar comigo. Na esperança da resposta positiva fiquei aguardando. Nada. Não foram me procurar. "É lógico, você some e aparece quase trinta anos depois com a maior cara lavada e acha que uma musiquinha e um discursozinho baratos vão apagar todo esse abandono"? Amanhã vou procurá-los. Valeria a pena? Não importa, amanhã procurarei saber deles. Temos tanto que conversar. Avisá-los de uma irmã espanhola, um irmão francês e outra belga. No susto tomei consciência que tenho cinco filhos. Acho que não nasci para ser pai.

Dos cinco, apenas a mais nova teve um gesto de atenção, de carinho.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Lobo Siberiano.

No tempo dessa estória, com vinte e oito anos, meus olhos verdes miravam a alegre zombaria. Em Salvador, para onde assuntos de vadiagem me levaram, vi, à esquerda, no meio da rua chile, cercado de membros do ilê, meu amigo Cricket, coberto pela barba ruiva conversava animadamente com o grupo. Enquanto me aproximava, a idéia de encontrá-lo se tornava embaçada. Todo encontro é uma festa de dias, ainda mais em Salvador. Comentei comigo mesmo: "É uma temeridade. Porra nenhuma! Tô aqui prá isso mesmo". Acelerei meus passos e fui rumo ao desconhecido já sabido.

Eu já estava me sentido meio lobo siberiano. Assim, meio Enrique Rivero Puig, personagem de Adolfo Bioy Casares que é o símbolo cabal da "solidão" e da "voracidade". O que me diferenciava de Rivero é que eu não estava caçando um trófeu para exibir na mesa do clube. Por acaso, ou predestinação, como queira, ao chegar já bem perto do meu amigo esbarrei em uma bela morena. Doce e delicada como a brisa do mar trajava uma saia levíssima um pouco acima do joelho, uma bata branca de manga curta com um generoso decote de ombro a ombro e uma sándalia de couro comprada ali mesmo, no mercado modelo. Aliás, tudo parecia saido de lá.

Timidamente me pediu desculpa e saiu apressadamente. Não pensei duas vezes, meus pés fizeram um rodopio rápido e decididamente caminhei até ela. Deixei para trás as promessas de verdadeiros festins com meu amigo farrista. Herdara isso da família. Tudo era motivo para festejar. Alcançando a morena me vi meio tonto, sem saber o que falar. Falei uma idiotice qualquer. Inacreditavelmente funcionou. Ela só precisava passar em casa para dar um recado para a mãe. Morava lá embaixo do pelourinho, à direita, entrando naqueles labirintos fantásticos.

- Onde vamos?

- Não sei, escolhe você.

- Eu... Não seria melhor você? Você, como se diz, é nativa, eu não passo de um "paulista".

- Você parece que conhece a cidade, então deve de saber algum lugar.

Fiquei impressionado com a morena. Como ela notou? De fato, havia morado em Salvador por cinco anos. Anos vadios, deliciosos e educativos. Já que estava em minhas mãos, escolhi Massarandupió. Poderíamos dormir em Conde. Ela não conhecia. Aluguei um carro e lá fomos nós "greenline" afora. Decididamente eu havia tomado a atitude certa ao deixar o Cricket prá lá. Ela era um encanto, suave como o cheiro de um jasmim. Seu sorriso era franco, de um branco límpido colorindo seus olhos pretos, sua pele tostada pela língua do sol, sua, por quê não, sua puerilidade. Uma ingenuidade pura, não afetada, além de atitudes e gestos mostrando um temperamento essencialmente feminino.

Repentinamente me peguei em ritmo de confidências comigo mesmo. Ela notou. Por minha vez, notei sua perspicácia e sensibilidade. Começava a soprar em minha cabeça uma idéia fixa. Seria ela a minha deusa, aquela todinha minha, artíficie de meu feitio? Bobagens, essas coisas não existem. Só em literatura e cabeças adolescentes". Algo me impelia a saber dela, indagar desejos, sonhos. Eu nunca havia feito isso antes, não me interessava por nada que minhas namoradas faziam fizeram ou fariam. Mas ela... ela era linda, de uma beleza peculiar, estranha e maravilhosa.

Sei não... acho que minhas férias, ou terminam por aqui, ou serão mais longas que o pensado e planejado.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Don Juan

Aquele domingo de manhã, quando voltava da pelada, tropecei com um velho Don Juan da época de universidade. Fazia anos que não o via. Conservava ainda um traço juvenil, mas envelhecera muito. Me assustei. Será que eu estava daquele jeito e nem percebia... Se bem que sou mais novo. O conquistador estava careca, barrigudo e com a aparência daqueles homens caseiros. Aqueles que não andam feito tolos, não são frívolos e esse tipo as mulheres adoram. Se ocupa de tudo na casa. Contas, torneiras, reparos, contabilidade. Ou seja, um tipo com os pés no chão, atento aos problemas domésticos e pouco afeito ao bar.

Como poderia? Naquela época o cara traçava altas gatas. Agora ali, pijamão denunciando sua capitulação. Entabulei uma conversa já sabedor do erro primário do cara. Explico: essa história de casa, casamento, filhos, torneiras não é comigo de jeito nenhum. Abomino firmemente essa instituição. Nunca, apesar de ter rompido a barreira da segunda metade de minhas cinco décadas, me casei e não tenho filhos. As mulheres eram apenas uma necessidade física, nada mais. Algumas até tentaram me amarrar. Desvencilhei-me heróica e tenazmente. Minha mãe vive me enchendo o saco por conta disso.

    - Quando você vai casar? Você está ficando velho e sozinho. Quem vai cuidar de você?

    - Eu contrato uma enfermeira.

Eu admirava o cara, era fã do sujeito. Observava atentamente os procedimentos de abordagem, escutava feito menino curioso as potocas do bacana. Cheguei até usar uma.

    - Você poderia me dar um autográfo?

    - Como?

    - É... um autografo. Fiquei seu fã logo que lhe vi.

    - Mas eu não sou artista.

    - Você é muito mais que isso. Essas pobres coitadas das revistas não passam de uma pálida imagem da beleza.

Essa eu achei o máximo. De onde o cara tirava tanta criativadade na azaração? O fato é que aprendi muito com ele e, ao que percebo, trocamos de lugar. Aquele rapazinho tímido e muito menino para estar em uma Universidade já não existia há muito. Me tornei ousado e fui tecendo minhas táticas sólidamente. Para minha decepção meu modelo ruiu. Pensando bem, eu sou o parâmetro. Minhas aventuras foram inúmeras, namoradas muito poucas e paixão mesmo apenas uma. Fui, muito antes dessa meninada aí, um ficante nato. Com uma pequena diferença: beijar na boca era apenas um caminho para a cama. A contabilidade ficava restrita ao que se conseguia após. Constumava dizer, sinto muito se é vulgar, machista ou qualquer outra conotação, mas era literalmente assim:"ontem abati três cabritinhas". Dalton Trevisan vetaria?

Me despedi dele pensando em como a vida é engraçada, toma rumos inesperados e contraditórios.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Brasília.

Brasília é minha história e mito. Com ela coloquei o horizonte em mim. Afinal, como já disse a Clarice Lispector, "Brasília é construida na linha do horizonte". Só não penso que seja artificial, mesmo sendo uma maquete. Até o lago, em sua sina de buraco escavado, é a personificação do mistério claro, límpido na boca de cena escancarada. Falo de lonjura como negação do próximo, pois o distante pode ser alcançado passo a passo. Não há caminho rumo ao horizonte. Sua indimensionável espacialidade está diante de nossos olhos, porém fora de nosso alcançe. A ilusão dos tolos é não saber que a terra é redonda.

A minha maquete brilha longe. Tingida pela barra da madrugada toca um violão choroso, pinta com som os amplos espaços, rasga com uma cimitarra a pele da aurora descortinando mais um dia. A cidade se posta, no centro, altiva e soberana. É uma cidade excessiva. E como nos diz Álvaro de Campos, o homem tem de exceder-se, porque tem sempre diante de si um mundo excessivo. Penso eu que esse heterônimo é um belo exemplo do subjetivo otimizando a poética, dentro de uma percepção inicial, modernista. Na verdade é um contraponto ao objetivismo pagão do "mestre"de todos heterônimos do vate luso.

Eu tenho uma cidade para além do mundo. Nessa mistura do espaço com o tempo, a história floresce no ipê. Bem sei que alguns torcem o nariz, outros a tratam como se trata um mendigo; a ignoram solenemente. Imagem pálida de sua cegueira. Muitos são aves de rapina devorando a presa. Alguns, poucos, conseguem flutuar na eternidade da "cidade traçada no ar". Vários, os mais empedernidos, vêem aqui a sua caverna da riqueza. Um balcão de negócios onde beduínos recebem magnânimos os convivas do convescote.

Seria eu um brasiliário? A resposta não existe. Poderia falar sobre o decantado céu da cidade, poderia até mesmo esbanjar todos clichês, mas o respeito que tenho não permite que eu seja apenas mais um dentre tantos. O olhar gasto não dá conta, a vista turva da mesmice é redutora. Quem como eu, viu Brasília crescer não esconde a tristeza de ser testemunha de um crescimento irresponsável iniciado por um famoso político goiano. As necessidades humanas estão sempre sujeitas aos desmandos desses barões.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

O Geometrista da Geometria.

Best witchcraft is geometry
to the magician´s mind -
His ordinary acts are feats
To thinking os mankind.
Emily Dickinson

Coincidentemente, ou simbolicamente, começei a escrever a crônica de hoje tendo Brasília como personagem. Eis que recebo, via nossa maravilhosa rede, caro único leitor deitado na mesma, a notícia da morte, aos noventa anos, de Athos Bulcão. Pára tudo! Não é possível passar em branco o dia negro. A outra crônica que fique para depois, aguarde o término das exéquias. A geometria dentro da geometria, assim a obra do grande "brasiliense" passeia graciosa e intimamente pelas quadras, palácios e gabinetes da cidade. Assim como eu, creio, pois somos brasilienses por tesão e opção, o sentimento da cidade enraizou largas ramas no olhar ao longe. As curvas enlaçando o horizonte suspendem o tempo em galhos de árvores tortas.

Aqueles cubinhos do Teatro Nacional foram palco para inúmeras peripécias juvenis. Naquele tempo o trânsito e a violência eram apenas uma promessa e as crianças viviam largadas, zanzando pra lá e pra cá, como se estivessem em uma fazenda. Escalar uma obra de arte, eis a verdadeira exegese possível. A praxis utilitária do lúdico se contrapondo ao sisudo corte reto. Desde tenra idade; primeiramente ao ir para a Escola Parque, atrás da igrejinha; que pombos em fundo azul povoam minhas calçadas. As obras do mestre se espalham por aí: ao ar livre, escondidas em escusas conversações, nas primeiras visões artísticas de uma criança, na escalada conquistadora de uma pirâmide, na memória dos candangos e nas "estátuas invisíveis".

Mais que um artista, um verdadeiro criador. Deus chegado em terras inóspitas para iniciar a luta dos brasiliários, filhos adotivos da cidade. Minha vó é mais velha que Athos bulcão sete anos, portanto ele poderia ter sido meu avô. Não foi, mas se tornou o pai de meus olhos plásticos. A lembrança mais antiga que tenho de uma obra de arte é as cerâmicas da igrejinha. O traço curto e rápido de um falcão em pombas. Mera presa? Ou o doce ato da vida? Desato o fato assim: a linguagem dentro da linguagem sem ser metalinguagem, como o nascimento é a saga da criação.

Poderíamos dizer que Athos Bulcão é uma criação divina da mente humana, poderíamos até exaltar a técnica refinada de sua mão, ou ainda enaltecer sua candanguice. Tudo insuficiente. A pena pequena se acovarda ainda mais ao digitar. Essa associação ficou interessante. A pena, símbolo romântico, é o teclado, símbolo pós-moderno. Digressões... ah, as digressões.

Uma canção de amor havaiana aportou no cerrado e me trouxe em suas mãos a retina das artes plásticas.