quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Sereia da Tarde

Eu, apaixonado que sou pelo belo sexo, não compactuo com essa estória de poupar. Vamos gastar que o tempo é curto. Inclusive dizem que você pode ficar maluco se não colocar para fora. Sobe prá cabeça e você fica pinel. Mesmo porque considero as mulheres, assim como certo médico de um estupendo romance, criaturas ideais e superiores. Embora eu seja um obtuso no tocante a sua natureza, esclareço que as percebo como uma encarnação do belo em sua atitude de entrega, obrigado Neruda, no fino labirinto formando imagens e na força bruta de uma tromba d´água.

Ontem estava um calor infernal, a porta do purgatório aberta e eu com uma reunião marcada no centro da cidade. Cheguei pontualmente, como é de meu feitio. Ao entrar em uma sala minúscula, sem ar condicionado e com seis mulheres, desnecessário dizer que todas belas, quase desmaiei. O cheiro de fêmea suada pairava absoluto no ar, reinava imponente em minhas narinas e um tesão louco tomou conta de minha cabeça não pensante, embevecida que estava com o aroma.

Tinha uma, pude olfatar, com uma característica própria, um timbre peculiar que lhe conferia uma animalidade toda especial. Esbelta, olhos verdes, com uma longa cabeleira loira amarrada acima da nuca, dotava o ambiente de um odor delicado, sensual e meio amadeirado. Quantos mundos não se escondiam atrás daquele sorriso, perguntei meio sem jeito, pois meu semblante denunciava todo desejo de meus poros abertos, atento ao mais insignificante gesto. "Só desbravando para saber", me disse em um quase convite. Relaxei e esqueci a filha da mãe que me deu um bolo.

Fiquei por ali, esperando a outra ligar para a furona. Sem perder um espaço sequer fui cercando a dona de olores imperscrutáveis. Logo combinamos um chopp ao final do expediente: o calor tava de lascar e nada melhor que um bom gole de colarinho, daqueles que deixam bigode. Finalmente consegui falar com a fonte pagadora. É foda trabalhar com amadores, a falta de compromisso me causa engulhos. Na verdade, devo gratidão à ela, pois me fez esperar e conhecer uma sereia que seria, dentre as inúmeras, mais uma grande paixão. Explico: nunca fui de ficar chorando o que passou. Paixões rodopiam em um interminável novelinho e a fila anda.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Genro Gringo

O império ruiu. O leão da metro perdeu os dentes e está com adenóides. Não passa de um gatinho manco. Minha cisma agora é outra: seu sucessor será mais perverso ainda. Na história humana os impérios se sucedem em uma lenta agonia. Façam suas apostas. Mas cuidado, a bolsa não anda nada confiável. Por outro lado, assumindo todos os riscos, coloco minhas fichas na China. Poderia até assumir um tom acadêmico e tecer considerações teoricamente fundamentadas sobre o caso. Mas deixemos de lado essas viadagens e vamos navegar na crista de meus preconceitos.

Nunca fui simpatizante do American way of life. Me rendo ao jazz, ao cinema até meados dos anos cincoenta e poucos, pouquíssimos escritores. Ella Fitzgerald cantado Cole Porter me arrepia até a medula, Jonh Ford e sua narrativa cara-pálida faz com que me sinta uma criança encantada e Poe dispensa comentários. Essa antipatia acabou por me colocar em uma saia justíssima. Para minha desilusão tenho uma prima que se alojou na terra do tio sam e por lá casou com um ianque. Essa minha prima eu vi crescer, costumava chamá-la de filhota ou de pequerrucha e a tenho como realmente minha filha. Deixemos de delongas e vamos ao assunto.

O rapaz aportou em terras de pindorama para conhecer a família. Naturalmente fui intimado a comparecer para conhecer meu "genro". Assim que cheguei, antes mesmo de me dar um beijo e abraço para matar minha saudade, pequerrucha me puxou e disse: "olha lá, veja o que você vai falar". Naturalmente em português, respondi com um ar cínico. Ela percebeu e riu. "Não mudou nada, sempre a mesma ironia" e para minha felicidade me cobriu de beijos. Estava com saudades, eu também, enfim, as praxes costumeiras e só nós dois, o que deixou minha tia com cíumes. Só que ela não sabia se era de mim, dela ou dos dois. Gosto muito da minha tia e ela também me adora.

O fato é que ao ser apresentado ao moço não pude deixar de demonstrar um sorriso de canto de boca que toda minha família conhece muito bem. Se prepararam para o pior. A figura, grande, de um branco vermelho, pernas arqueadas e compridas era o símbolo exato do caipira estadunidense. Conversamos amenidades para desanuviar o ambiente que eu percebera procupante. Um alívio aflorou nos lábios de minha mãe e minha tia veio se intrometer em nossa conversa, estava preocupadíssima, segundo me contou mais tarde.

Contudo, mais tarde, quando ele falou sobre a amazônia não pude me conter. Em perfeito inglês, para o seu espanto, pois até então estava falando um inglês sofrível, misturando gestos, frases erradas e tudo que eu tinha direito, fiz ver minha opinião sobre o assunto. Me furtarei a narrar, pois é insignificante. O gringo ficou lívido, engoliu a seco todo meu arrazoado a respeito da empáfia estadunidense. Meu irmão foi o salvador da pátria. Contou uma piada, ele sabia que eu iria rir. Era uma que eu gostava muito. Com o tempo me aproximei de meu "genro gringo", como passei a chamá-lo. Acabamos nos tornando grandes amigos e nutro uma alegria muito grande ao ver o belo casal.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Mensagem

Hoje vou me permitir falar do cara que coloca esse parafuso para voltear. Não, é preciso que eu me explique em primeiro lugar. Como já foi dito várias vezes, não digo de mim, nem do narrador, tampouco do autor e muito menos do poupardor, isso é lá com ele, comigo é o contrário, mas daquele que vejo: o escriba. Há em ti uma fibra romântica que você insiste em negar. Que fazer, rapaz? Ainda há pouco, ao lembrar-me de você, pensei, não sem ironia, que o momento seria bom para um bate papo. Não se assuste, sou meio como o diabo do Ivã Fiodorovitch, uma incógnita.

Você, assim como os demais, leva essa comédia muito a sério. Acaba que o sabor do humor se vai, se perde em sentimentalismos baratos e cai sempre na esparrela de malandro descolado nas artes, com regrinhas feitas e assuntos requentados. Não que eu queira me intrometer, mas escuta, desculpa-me, quero somente ajudar, não era para ser essencialmente chalaça? Aonde a veia do buteco? Faz tempo que não me deparo com um troço chamado troça. Cadê a zombaria chula de um final de domingo engarrafado? É isso mesmo, depois de horas ali sentado você olha para o lado e vé um monte de garrafa vazia na sua frente e está todo mijado de tanto rir.

Embora eu não queira, sou obrigado a confessar que ando de saco cheio dessa sua narrativa de meia pataca, dessa sua pose de literato almofadinha. Meu amigo, quero, no entanto, lhe dizer que, malgrado toda série de senões, sua escrita leva um certo futuro. Trabalhe, persevere que um dia, quem sabe, você produzirá algo grande, talvez belo. Não se amofine, até os maiores só deram o que podiam.

Veja bem o caso dessa famosa assertiva: Je pensee, donc je suis. Sempre vi a tradução como sendo Penso, logo existo. Nunca entedi. Não seria melhor, em belo brasileiro, Penso, donde sou? Mas o que isso tem a ver com minha missiva? Pois é isso meu caro, a gente vai enrolando, vai bebendo uma braminha e fuçando assunto. Não pense, absolutamente, você que o critico. Torço muito por seu teclado e tenho fé inquebrantável que irás prosseguir em sua jornada. Afinal sou seu único leitor, o que me vale ao menos uma mísera atenção.

Só para terminar gostaria de lhe dizer que você é um usuário muito fraco. Foi fácil demais te achar. Vê se cuida melhor do seu computador. Coloque ao menos um sistema de segurança. Abraços e tenha fé.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Semeador de Brisa

Tudo é deserto, já disse o bardo luso. Não pense, caríssima, que eu esteja angustiado, pois não estou. Apenas olho a janela e não me vejo na paisagem. O horizonte distante apenas amplia meu cubículo, masmorra construida com minhas próprias mãos. Longe, perto do horizonte, vejo uma torre de comunicação e não entendo esse mundo tão exacerbado. Quanto mais se escuta, menos se ouve. A profusão de mensagens, amores, amizades é a própria ausência de tudo. Náufrago de mim, vago a esmo em águas torrenciais.

Gostaria muito de ter um amor, mas isso não foi feito para mim. O amor não é coisa que se ache por aí, distraidamente plantado em nossa frente. Acredito até, que não tive a honra de conhecê-lo. Muito se diz sobre essa entidade. Sim, algo que não se materialize não passa de um espectro, uma alucinação. Vejo loucuras sendo perpetradas em seu nome. Não creio na enxurrada de propaganda dirigida aos enamorados, não acredito nas marcas deixadas em almas tão sensíveis, em romantismo eivado de subjetividade. Senhor, dai-nos hoje a abstração imemorial de suas paixões. Náufrago de mim, vago a esmo em um mar tumultuoso.

Quando muito, vislumbro uma incapacidade de se ficar só. A eterna necessidade do outro. O homem da multidão. Uma criatura singular. Vivendo no meio do turbilhão recusa-se a estar só. Eu padeço de mal contrário. Não aceito estar vadiando de lá para cá. Ruas tortuosas, gente... Tudo isso me parece melancólico demais, me aborrece e sinto engulhos. Essa terra foi um achado. Perdida no meio do nada me reconforta. Meu único elo com o burburinho humano é a antena, lá na lonjura. Náufrago de mim, vago a esmo em um rio corrente.

Faz vinte anos que a única pessoa que vejo é o entregador de meus pedidos, que não é lá muita coisa, só o que não consigo produzir. Infelizmente ainda necessito do mundo para algumas coisas. Na vilazinha mais próxima, cerca de 50 léguas, me chamam de velho maluco. Talvez eu seja. Pense um pouco: qual a razão pela qual alguém se enterra vivo? Uma ânsia de solidão, um atroz sentimento de não pertencimento? Não faço a mínima idéia. O fato é que vim e fiquei. Constato que não possuo mais aquele olhar opaco, meus gestos não denotam mais uma humildade abjeta e não me vejo desolado, inexpressivo. Já não tão náufrago, vago firme em águas mansas.

O avanço dos anos... vou suportando estoicamente, até melhorei de saúde. Nunca mais tive dores no corpo. Tenho os livros fundamentais, na verdade, acabei descobrindo que a gente lê poucos livros. O essencial cabe em uma estante e só releio, sempre a mesma meia dúzia. Acho que a urbe nunca me comportou, foi um desvario do destino. Não volto mais. Apenas lamento não ter me despedido de parcas pessoas, pouquíssimas mesmo. Já em terra firme, semeio brisa.

Fim.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Ligeireza do Felino

Sonho com o dia em que teremos o renascimento dos primitivos, dos românticos, dos artistas da bola. Desencantar o espírito livre do felino negro, da criação imprevista, do toque sutil desconcertando meio time adversário. O esporte bretão em terras de pindorama perdeu o encanto, o canto e o violão. Logo ele, que em um genial lance de apropriação, tornou o ludopédio o mais brasileiro dos esportes. Minha única leitora poderá arguir, aproveitando mais uma reforma na língua oficial, que os tempos eram outros, outros carnavais e outros Angenores. Mas sempre fica uma pontinha de nostalgia.

Enquanto Braguinha anunciava ao mundo que tínhamos bananas, o escrete brasileiro, futuro canarinho, abria o pano do espetáculo que se anunciava ao mundo. Nascia o futebol arte. Aquele feito de lampejos impensáveis, geniais e torturantes, para o inimigo, lógico. No ano de 1938, em campos franceses, a seleção é recebida com desdém por uma Europa prestes a entrar em guerra e ciosa de sua superioridade racial. Mandamos para o velho mundo dois representantes da raça, afinal a superioridade nos esportes refletia a supremacia: o defensor e o diamante negros. Domingos da Guia, teríamos outro da Guia, e Leônidas da Silva mostraram ao tapete verde a canção malemolente do divino Cartola.

Com a argúcia da malandragem velada por bordões cheios de malícia, de uma ligeireza felina, feita de inopinos nossa alma lasciva reclama o drible curto e dispensa os espartilhos vitorianos. Pela centésima vez, pergunto-me como, no início, com Lazaroni, quando a brisa ainda era violentamente açoitada pelos fantasistas da redonda, deixamos a arte para nos contentar com a eficiência do mercado. Bem sei que meu único leitor deitado na rede torcerá o nariz para esse textículo desbragadamente saudosista e ufanista, mas o que fazer se ando carente de samba e de futebol.

O desenvolvimento racional, previsto, matemático do conjunto pertence ao continente da cultura e da civilização. Nós, os primitivos, circulamos em outra esfera. Transitamos em uma região onde os meios naturais, que são grandes, dispensam o método, a direção e a educação. Passes curtos e no chão revelam nossa preguiça, aumentam nossas saúvas, também loucas correndo atrás da pelota.

Assim o berço da civilização conhecia a criança da criação e os bugres dos tristes trópicos se deleitavam com uma época de ouro. Surfava-se nas ondas do rádio. Longos tubos do sambista lírico nos diziam que o baile encerrou. Nossa canção deu um lançamento digno de Gérson e fez definitivamente uma linda linha de passe, daquelas onde uma pintura não passa de uma tosca garatuja, não tanajura.

Se em 38 tivemos nossa noite de gala, vinte depois nosso candango, na copa seguinte o oscar, em 70 a coroação definitiva, em 82 os aplausos embriagados, mesmo com a derrota para a eficiência, em 90 tivemos nossa noite dos cristais. Já com Parreira, como demonstra a obra pictórica do mesmo, em 94, nos despimos da fantasia e nos travestimos com uma máscara para um carnaval que não era nosso. A final da ciência foi para a penalidade máxima. Finalmente os ímpios entenderam a matemática e nos sagramos tetra, sem nenhum brilho e com uma caricatura. Parafraseando nosso comentarista cego: os idiotas da objetividade venceram.

O resto... bem, o resto é um rosto pálido. Uma quarta-feira cinzenta, não de cinzas.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Simião Fortunato

Na manhã quase sem luz Simião Fortunato percorria um longo trajeto solitário. Lembrava-se de como acordara todos esses anos feito sonâmbulo, flanando pela vida tal qual a queda calma de um folha seca. Quando acordou, Simião Fortunato notou a longa passagem do tempo, descolorindo o que acabara de ser pintado. No momento não soube perceber o significante de símbolos nunca antes vistos. Ao se olhar no espelho viu um rosto aparentemente manso, sempre com uma pontinha de sorriso. "Adoro você por causa de seu sorriso". As últimas palavras de sua mulher.

Lembrou-se da noite em que conheceu Maia Guacamayal. Ficara deslumbrado. Dando a maior bandeira de sua adolescência desbundada. Maia, embora não fosse sequer parecida, conseguiu fazer com que Simião Fortunato despencasse de sua arrogância e a desejasse como sempre desejou Natassia Kinski, ou seria Tess? Nunca soube direito a distinção. A melhor atuação de Klaus Kinski foi na cama, gerando aquele monumento que é sua filha, costumava dizer.

Maia não escondeu seu interesse, sua curiosidade em penetrar uma fortaleza aparentando palácios. Simião fortunato, tranquilo, estudava sua atitude dissimulada, encenando a farsa de não dar muita pelota ao fato de ter Maia ao seu lado. Olhava com indiferença a rotina do bar. Aquela vagabunda ali já comi, pensou com rancor quando viu Edwirgens passando agarrada com um jornalista que Simião Fortunato conhecia de vista. Isto fora há muito tempo! Para ser mais exato faz trinta anos. Envelheceu muito. E o que fez nestes quarenta e sete anos? Quatro filhos, como sempre desejou, um emprego ordinário que lhe rendia um salário extremamente generoso, um reconhecimento que lhe parecia excessivo e uma viuvez nunca abalada.

Todos seus amores, inclusive o curto casamento, um filho para cada ano, foram conquistados através de artíficios. É certo que artimanhas só dizem que ela é imbecil e você idiota. Assim seu passado começou a se acomodar. Uma narrativa linear, com regras elementares, personagem principal, secundários, sujeito, verbo, complemento, um mistério estrutural, enfim, uma escrita seguindo as regras da arte

Com Maia não foi diferente. Mas algo começou a se mover dentro, como uma esfinge com fígado de Prometeu e o seu estômago dóia terrivelmente. Assim se consumou seu casamento com Maia. Mas isso é para depois.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O Vinho e a Dança

Nos olhos dela ele redescobriu o mundo. Estava ali sua redenção, sua volta à vida. Com ela o compasso deixava de ser quadrado, se tornava mágico. Em sua companhia sentia uma malemolência rítmica que o transportava para uma dança antiga, daquelas onde o rodopio era puro prazer. De certa maneira sentiu novamente a sensação de se atirar na vida, sem pudor de ser feliz, embora com centenas, milhares de receios. Durante anos sua vida fora uma sucessão de atos prevísiveis e estivera submetido de tal modo à vida familiar que se esquecera do ritmo frenético das ruas. Havia esquecido de si. Não passava de uma pálida imagem dos outros.De um momento para outro se viu desamparado, perdido em sua estupidez pretensiosa que o havia jogado inapelavelmente nos braços da solidão.

Ela apareceu e agora, enquanto caminhava pelas quadras, só pensava em beijá-la. Sentiu também que tudo que fizesse seria bom. Ouviu com olhos de ontem o canto de uma sabiá laranjeira. Viu a fêmea no chão com dois filhotes e instintivamente procurou pelo macho. Estava no alto de um galho seco assuntando a área. O horizonte, mesmo encoberto por uma névoa seca feita de poeira e fumaça, se mostrou límpido. Tudo envolto em uma doce contemplação, um alheamento inebriante, como se tivesse fumado unzinho.

Mas a fumaça se dissolveu em uma vergonha esmagadora. Lembrou-se do velho padre de sua catequese: você é um bom garoto, humilde, andando longe das tentações, evitando as más companhias. "Puta que pariu. Isso é hora para me lembrar daquele velho? Não, o mundo é outro. Procurei ser um bom garoto e só me fudi". Ou não era nítida a lembrança das porradas que tomou seguindo os preceitos dos mandamentos? "A bondade só se reconhece na base da paulada, do chicote. Mas tudo isso mudou e não vou ficar lamentando ou mesmo me indispondo com coisas inúteis, que só servem para me fuder". Concluiu enfáticamente.

Ele ainda não sabia que para ela era apenas uma aventura regada a sexo. Você me ama? A pergunta saiu de sopetão e ficou perdida no ar. Ela nunca respondia, mas havia algo no beijo dela que o levava a crer em uma resposta positiva. Havia no jeito dela olhar, com um certo ar de Capitu da Prais da Glória, um amor estranho, inseguro, mas isto lhe bastava e não seria ele a "ficar como uma flor lívida e solitária". Isso já havia sido estabelecido anteriormente.

O Astro Rei ia descendo sobre a cidade que se oferecia, ao fundo, como uma fera na selva espreitando, com suas garras, o destino, quando suas hostes guerreiras se postaram para a defesa. O negócio dela era o velho mundo na veia. Você precisa ir para a Europa, ela disse uma vez. Ele indefeso, sozinho, a sentiu escapar por seus dedos. Ela nem percebeu uma lágrima escorrendo. Ela se afastava. Nada mais restava a ele senão pensar no vasto mundo, se ele se chamasse Raimundo e fosse barão, bem mais que uma rima seria uma solução.

O principal era a certeza de que ela nunca lhe pertencera. Verbo que, em última hipótese, era a sentença escancarada de sua espada de Demócrito. Fazendo um enorme esforço reuniu o que lhe restava de razão para ordenar uma retirada célere, para, assim, salvar a fortaleza inexpugnável de sua posição. Resolução que lhe recobrou o ânimo. Muito embora às vezes a tivesse sob domínio, subjugada pelo prazer não seria bom correr o risco de uma derrota. Não foi ele que, afinal, decretou o fim da bondade?

De resto, apenas a intuição que não pode ser confirmada: se ele soubesse esperar com humildade e contrição, talvez ela lhe viesse. É... de nada adiantaram as aulas do velho padre. No fundo ele não passa de um cristão.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Servo da Morte.

Como ele tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria

atacar-vos se não fôsseis receptadores do ladrão que vos pilha, cúmplices do assassino que vos mata, e

traidores de vós mesmos?

Etiene de La Boitié.

Discurso da Servidão Voluntária


 

Há várias espécies de coitadinhos. Todas me causam náuseas. No entanto, há um tipo pernicioso: o coitadinho bonzinho. Essa eterna vítima vive em uma servidão voluntária que me causa repugnância. Apenas um capacho em uma porta na qual ninguém entrará. Em sua cegueira há uma luz branca ofuscando todo desejo, há um negrume iluminando as vilanias que o tornam feliz. Com uma auto-estima baixa o pobre diabo só é feliz se alguém o achincalha.

Ao instituir uma só rainha, ou rei, o infortúnio do sujeito reside no fato de se colocar à mercê de uma senhora, ou senhor, a qual nunca será vedada a tirania. Não tento compreender, isso foge de minha alçada, mas gostaria de entender como suportar quem lhe prejudica? Enfeitiçado pelo pensamento único o servo se prosta miseralvelmente diante de seu verdugo e pede perdão. A natureza desse indíviduo é invariavelmente no sentido de diminuir seu bem-estar para aumentar o da amada.

Sua falta de fibra não permitiria jamais que fosse pegar na corda do Círio de Nazaré. Note-se que, geralmente, esse ser é dúbio. Sustentar a força do mar, como os gregos, ou mesmo, a força da corda, como os fiéis nortistas, lhe é sufocante, pois o sisal é sem cio. Geralmente é dotado de uma bondade quase ilimitada, prefere não discutir, pois lhe é simpática a idéia de que o interlocutor sempre tenha razão. Dessa maneira se furta a qualquer polêmica e abraça opiniões discutíveis. A aquiescência é sua quinta essência.

E finalmente, resta dizer uma única coisa, a liberdade lhe é estranha e confusa. Corrompidos pela obstinada vontade de servir são presas fáceis dessa doença mortal: a necessidade de uma gaiola.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Último gesto

Ele gostava de abusar do lirismo. Frases derramando subjetividade era com ele mesmo. Não se fiava nessas novidades truncadas, fragmentadas e obscuras. Para sua pena, ainda a usa, a clareza da estória bem contada era o que contava. No fundo era um grande romântico. Sempre achei interessante sua teoria de que escritor era quem escrevia livros e não quem publicava. Por outro lado, sempre me assaltou a desconfiança de uma justificativa barata, uma desculpa de escritor fracassado. Não largava seu bloquinho de anotações.Rabiscando ditos, tecendo lacrimosas falas ia de pito em pito.

Li seu primeiro livro, "Jardins do Enlevo", em uma noite chuvosa e fria. Um caderno tosco e amarfanhado contando as agruras de um casal até seu desenlace feliz, bem no estilo novela da rede globo. Devo dizer, embora não me agrade, que sua escrita é rigorosa, poucos erros e é evidente um bom domínio da ferramenta. Bem ao contrário de certos magos charlatões. Prefiro uma literatura honesta e bem cuidada à uma cheia de promessas, receitas para o cidadão feliz, íntegro e com atentados à lingua materna.

Por falar nisso, as garatujas do mago falastrão apontaram para o ministro da cultura, Juca Ferreira. Irritado o escrevinhador, entre irônico e sarcástico, pediu de volta o convite ao saber que o sucessor de Gil, segundo o parceiro do maluco beleza, seu amigo íntimo, não iria comparecer na feira alemã que vai homenageá-lo. Com a marca de cem milhões de livros vendidos pelo mundo, diz que "já não me interessa mais sua presença e de seus convidados. Quero apenas que me devolva o convite; será entregue ao primeiro mendigo ou desempregado que passar na porta". Palmas para o alquimista. Ao menos a ralé comerá. Atente, minha única leitora, para o tom desdenhoso e preconceituoso embutido na assertiva. A comparação é simbólica e se pode ver claramente o desdém do bicho grilo com o bicho rato.

Voltemos ao nosso herói. Seu passado era uma incógnita e eu não ousava tocar no assunto, pois ele tinha horror do passado. Só fui entender mais tarde a razão de sua fuga. Havia abandonado sua mulher e único filho há mais de trinta anos. Em nome da liberdade, do aqui e agora, rompeu laços e não deu mais notícias. Um pouco antes de sua morte seu filho o achou. Tudo que fora minuciosamente mascarado aflorou como um vulcão em erupção. Creio até que isso tenha contribuido para seu passamento.

O último gesto fez honra ao que fora aos meus olhos. Alegria desbragada, descompromisso com tudo, apenas o lápis frenético anotando o olhar mais vulgar. Vivera como quis: solto como um passarinho. Não morreu como viveu.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Outra Carta.


 

Colinas do Oeste, 8 de outubro de 2008.

Meu caríssimo Gildo,

Estava discutindo com Maria as entrelinhas da Sibila, livro de uma escritora portuguesa chamada Agustina Bessa Luis e que eu detestei, quando sua carta me pegou de surpresa. Literalmente de calças na mão. Isso era lá hora de carteiro bater em sua porta? Sacanagem. Você sabe que as moças, ou musas, como queiras, que visitam esse tugúrio perdido no meio do nada são de outras artes, outras manhas. Deves ter percebido também que a feiticeira de meu interesse atende por outro nome. Desculpe-me a demora em responder, mas havia outras pelejas para o momento e você mais que ninguém sabe que jamais traio a confiança de meus companheiros de batalha.

Fiquei satisfeito ao ver que andas escrevendo. Mas que putaria é essa? Eu? Escrever prefácio? Ficou maluco meu irmão... você é sabedor de que não escrevo uma linha sequer. Aliás, responder sua carta está sendo mais que um martírio, é, verdadeiramente, uma tarefa de Sísifo. Minha escrita, depois dessa onda de cartão, não assina mais nem cheque, não manda mais cartão com flores, pois isso é besteira e perda de tempo. Já lhe detalhei minha teoria. Poesia? Nunca imaginei... Mas taí, acho que você é mais cronista que poeta e teria um futuro promissor em nosso balcão de negócios. Não foi à toa que o convidei para vir se juntar aos inescrupulosos.

É bem verdade que em nome de nossa velha amizade curtida em cerveja, mesas fétidas, mulheres, farras, futebol, viagens e vadiagens, botei a caraminhola para trabalhar. Como não saía nada e a garrrafa de whisky já estava pela metade, resolvi te escrever essa missiva para dizer que, não me leve a mal, declino do convite e passo a bola adiante. Sugiro o Perneta, além de gostar de seus escritos ele anda com um cartaz danado com o manda-chuva. Não me leve a mal novamente, mas sabe como é... no nosso ramo a vaselinagem come solta.

Percebo que me desculpo em demasia. Não lembro de ter lhe pedido uma desculpa sequer em nossa longa convivência, agora em um único parágrafo me sai duas vezes. É, meu camarada, os tempos são bicudos e outros ares sopram. Há quanto tempo não nos vemos? Quinze anos, mais... Muita coisa mudou e já não sou mais aquele moleque que curtia a vida com a ânsia de um desbravador e muito menos o adulto tolo de nossos últimos encontros. Não lhe dei ouvidos e deu no que deu. Você fez bem em se mandar. Lembro muito bem do dia em que lhe deixei no aeroporto.

    - Meu irmão, meu brother não cometa essa loucura. Vamos nessa, lá está nosso sonho e você sabe muito bem que a Michelle tá babando por você.

    - Não dá. Tenho que ficar. Muita gente depende de mim.

    - Que nada, manda todo mundo prá puta que o pariu.

    - Não posso.

    - Então é isso. Até mais, um dia a gente se vê. Não é você que vive dizendo que até as pedras se encontram? Você é um brother de fé.

    - Valeu, você também é meu irmão and have a nice trip, vai treinando viu sua anta.

Lembra? Seu inglês era uma merda, agora tá até escrevendo, publicando.

Meu erro. De nada valeu a atenção e muito cara ficou minha solidão.

Abração e tenho certeza do sucesso do livro.

K.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Tabaco

Tive como senhorias um trio de senhoras altamente sintonizadas com as coisas do mundo contemporâneo. D. Tertúlia tinha lá seus quase oitenta, D. Maricotinha uns setenta e pouco e a ninfetinha, como se autodenominava D. Emerenciana, algo por volta de sessenta e pouco. Viviam me dizendo: "Meu filho o santo das causas perdidas já não é santo Expedito, é a internet". Enquanto fui hóspede era elas quem arrumavam essa porra toda vez que dava pau. Fui até sacaneado pela ninfentinha. "Essa gurizada hoje em dia é meio burrinha, não dá conta de um defeitinho besta desse".

Me davam notícias de tudo que rolava na rede. A onda do momento são os sites de relacionamento, mais acessados que os de putaria, fui informado por D. Maricotinha. As véias falavam palavrão prá caralho. De certa maneira me tornei confidente dessas aventureiras radicais. Explico e complico: eram gamadas, como se dizia antigamente, por esportes radicais. D. Tertúlia foi a primeira. Muito antes de agora, empacou idéia em descer o Tororó de rapel. Foi o início para todas. Uma fazendo, a outra nem pestanejava em aderir, mesmo ao mais absurdo projeto. Não havia um só desses esportes que as velhinhas não haviam experimentado. As danadas até pularam de pára-quedas.

As representantes da melhor idade, olha eu sendo políticamente correto, minha única leitora há de notar a incongruência, acabaram por simpatizar comigo e passaram a prodigalizar-me com mimos, pedindo opiniões, dando conselhos e brigando comigo por causa do meu desleixo ao vestir-me. Enfim, se tornaram minha segunda mãe por inesquecíveis quatro anos. O tempo de minha permanência naquela cidade borboleta. Elas me foram indicada por meu coordenador. "Tenho certeza absoluta que vocês vão se dar bem". Fato consumado.

Uma vez me levaram a Lençóis, cidade na chapada diamantina, para uma caminhada leve. Quase me mataram. Prá variar fui alvo das chacotas de ninfetinha. "Aposto que esse moleque não aguenta nem dar uma. Na nossa época os homens eram machos, não essa cambada de frouxo". Ria espalhando uma alegria imensa ao mesmo tempo em que exibia, não sem vaidade, os dentes alvos e intactos. Maricotinha, como sempre acontecia nessas ocasiões, saia em minha defesa. "Coitadinho, é aquela porra de-ar condicionado da universidade. Tá precisando de tomar um sol e dar uma trepadinha né, meu filho? Fica só estudando, dá nisso."

Confesso que valeu a pena. Depois de mais de quatro horas caminhando por trilhas precárias chegamos em umas piscinas subterrâneas que me enlouqueceram de puro êxtase. Ainda fiquei sabendo que demoramos por minha causa. Foi nesse dia que as diabas me aplicaram. Na maior naturalidade apertaram um baseado, ou melhor, uma vela. "É bom para relaxar e não há lugar mais apropriado prá fumar unzinho que no meio do mato", falou D. Tertúlia, a mais ajuizada do trio. Devido ao meu estado, embevecido é o mínimo que posso dizer, nem percebi que estava fumando maconha. Depois de ter passado a adolescência sem enconstar em um cigarro sequer, eis-me iniciado nos assuntos do tabaco via diamba.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Milena

Ela morreu ontem. Nem sei ao certo como foi, mas o fato é que chegou a hora de sua decomposição. Esvaneceu no ar feito fumaça de cigarro, uma tênue névoa ondulando sensualmente diante do fim, não haveria de ser de outra maneira. Sua morte foi natural, correnteza mansa arrastando o poente solitário. Milena tinha um olhar estranho. Dissimulado e curioso percorria friamente toda sua espinha, como quem procura um pormenor revelador, uma fresta por onde penetrar seu poder malévolo. Gostava de ver os homens rastejarem aos seus pés. Todo seu prazer era servilizar seus adoradores. Feito isso, abandonava-os inapelavelmente.

Creio ter sido o único a não sucumbir aos seus encantos, que eram tantos. Daí seu eterno jogo comigo. Eu, na verdade, não passava de um doce desconhecido, atiçando desejos, fantasiando o não possuido e, sobretudo, um golpe mortal em sua vaidade de fêmea devoradora, de rainha ofendida por um súdito. Só eu sei como não foi fácil resistir aos olhares lânguidos dirigidos acintosamente para mim. Ficava até meio desconcertado. Desde o início percebi que eu não poderia me envolver com ela. Seria meu fim. Algo sussurrava isso em meu ouvido.

Logo que a conheci, por volta de meus dezesete anos, revelou-se sua faceta mais cruel, isto me marcou e foi minha salvação. Estávamos embaixo do bloco, uns quinze adolescentes entre homens e mulheres, nessa época não havia essa divisão toda entre meninos e meninas, conversando potoca quando ela surgiu do nada, imponente em sua beleza, senhora altiva da cena. Fiquei simplesmente embasbacado. Nunca havia visto algo tão belo. Desnecessário dizer que ela notou o pateta aparvalhado, o que só fez aumentar meu constrangimento e me irritou profundamente. Com o olhar já descrito me fitou todo e disse, melhor, ordenou: "Acabei de me mudar e não conheço ninguém, me leva à padaria. Não sei onde fica". Não acreditei, estremeci todo e tudo rodopiou.

Evidentemente acompanhei a moça depois de recomposto do susto. Estupidificado fui feito um carneirinho rumo ao abate. Hoje penso que essa ida ao portuga da comercial foi minha redenção. Explico melhor. Sempre tive uma sensibilidade excessiva. Desde criança que sofro horrores com perdas, sobretudo as sentimentais e fui, ao longo do tempo, conforme fui tomando consciência de seu poder destrutivo, criando aparatos de absorção que me protegiam. Com ela tive a certeza de que sairia perdedor. Uma convicção inexplicável e contraditória, pois sempre fomos muito íntimos. Mas vamos aos fatos.

Após ela ter comprado balas e cigarros, a moça era moderna, mas nem tanto... as balas abafavam o bafo perante os pais, sugeri irmos ao parque. Fomos. Balançamos, brincanos na roda, conversamos, vimos a lua e a beijei como nunca havia beijado ninguém. Ficamos suspensos em um tempo onde nada importa, um fiapo de eternidade que só aos adolescentes é permitido. Estava eu perdidamente envolto em sua teia até que o Febo dos cabelos de ouro deu o ar de sua graça. No dia seguinte, novamente embaixo do bloco, esperava ansiosamente sua chegada quando surgiu seus olhos luminosos que logo se tornaram trevas. Sem mais nem menos sentou ao lado do alemão, cara alto, de olho azul, bastante desbotado, diga-se de passagem, com um jeitão de galã canastrão e todo cioso de si. Parecia um pavão. Um frêmito percorreu meus lábios e não pude ver mais nada. Nem ao menos se dignou a um cumprimento. Entendi ali que eu nunca poderia ter nada com ela, seria minha ruína.

Anos depois descobrimos que nossos desejos sempre foram os mesmos. Mas já era tarde e eu estava, como desde o início, ocupado em construir um castelo onde não havia lugar para rainhas.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Ária de Kólia

Geralmente não gosto de personagens que revelem algo de mim, mas com Kólia Krasótkin foi diferente. Adianto que não gostar de personagens parecidas comigo não significa receio de me reconhecer, mas simplesmente crer que eu não seja uma pessoa interessante, digna sequer de uma nota no obituário. Ao me perceber na arrogância petulante desse moleque astucioso, agradei-me profundamente de sua representação se levando a sério, em demasia eu diria. Noto como meu festim adolescente seguiu trilhas parecidas e percebo, meio aturdido, como ainda traço um compasso similar.

Não que eu ainda queira educar ou liderar alguém, acho que isso está muito além de minhas possibilidades, mas as atitudes de déspota esclarecido ainda charfundam em máximas proferidas com grande sapiência, com enfáticas sublinhações e coisas que a gente não entende nada. Assim como Kólia, permaneço com um amor-próprio egoísta impedindo que eu me desvencilhe do despotismo. É como a história do alemão, no mesmo trecho, jogando em nossa cara colegial os "conhecimentos nulos e uma presunção sem limites". A diferença é que hoje, aos oitenta anos, posso me dar ao luxo de não entender absolutamente nada e berrar aos quantro cantos que li e compreendi Voltaire e Bielínski. Já não sou um menino que ouviu alguém dizer. Aos reticentes provo com minha memória.

No despertar da adolescência somos poderosos, trazemos todas soluções e não nos defrontamos com patranhas, pois elas não existem. Além do que, o ridículo é uma pálida mancha que não nos faz sombra. Aliócha tinha razão: o tempo exerce grande influência nas idéias e só ele, nada mais, dota-as de personalidade, de palavras. A frivolidade é nossa companheira e tudo se resume ao desenlace de mais um lance de dados. Andamos de braços dados com o acaso. Nossas loucas aventuras são passaportes para a leviandade e o pedantismo. No entanto, são, também, o vigor, o esteio da velhice, essa ingrata senhora que vai nos subtraindo aos poucos o desejo de correr livre, feito cavalo chucro largado na campina.

Hoje meus olhos possuem a reflexão soturna da noite, uma certeza calma e silenciosa, mas inflexível e cua rota não se desvia do distrate com a vida. As peripécias de outrora são apenas fogos iluminando uma janela escura da lembrança. O palco de meus golpes está sem luz, minha reputação de maluco consolidada, minhas espertezas findas e só resta uma, de negro, na platéia. Mas não é minha única leitora. A cortina se fecha.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Espólio

Eu, embora afetado por um ar de superioridade, sou um bom sujeito. Não dissimulo meus sentimentos e não me escondo na facilidade da hipocrisia. Não carrego culpas intransponíveis, apenas os dissabores diários de uma existência fadada a conviver. Solidão não é minha praia. Invertendo o dito comum, eu diria que é melhor estar mal acompanhado que só. Cabeça vazia é a morada do tinhoso. Só ocupando-a é que não dou trela para a tentação. E nada melhor que a confusão das ruas para distraí-la. Acredito, mais uma vez o senso comum orientando minha bússola, em minha generosidade ao perceber como as crianças gostam de mim. Não lembro de uma sequer que não tenha vindo em meu colo e aberto aquele sorriso que só um bebê pode ter.

Conheço sobretudo meus limites. Sei a medida exata do momento de se deter o tempo, as ações e a palavra. Essa última é cruel, pois engendra monstros terríveis. Jamais ultrapassei a fronteira além da qual a vivacidade se torna intolerável. No entanto, desde priscas eras, estou sempre pronto para travessuras, quando se me apresenta uma oportunidade de bancar o malicioso, ou mesmo chamar atenção, não a perco. Cheio de amor-próprio, sempre soube ganhar a confiança de meus pares, mesmo que para isso eu tenha me valido de subterfúgios ingênuos.

Para muitos, sobretudo para as várias namoradas que tive, acho até que perdi muitas delas em função desse meu proceder, não passo de um insensível, frio como os rios do cerrado. Pode parecer contraditório eu não gostar de efusões, já que afirmei lá em cima não disfarçar minha emoção. Mas o fato é que elas me aborrecem e quanto mais me exigem demonstrações eloqüentes de carinho, mais me furto à elas. Não que fosse uma atitude deliberada, provinha antes de meu caráter que de meu desejo. Eles se enganam; eu sempre os amei, somente não gosto de expansões exageradas. Sempre me pareceram teatrais demais.

Contudo, um acontecimento inesperado fez com que eu mudasse completamente. De folgazão, apreciador de uma chalaça, tornei-me mais silencioso, pensativo e até um pouco taciturno. Minhas paixões, que nunca foram arrebatadoras, se tornaram excessivamente reclusas e operou-se um milagre: minhas travessuras desapareceram e surgiu um ser cruel, monstro cometendo diariamente as mesmas vilanias calorosamente abandonadas em promessas anteriores.

Absurdamente tornei-me presa do negado. Enveredei em um caminho onde eu era vítima fácil da puerilidade arrebatadora das paixões. Diante de mim desenrolava lentamente a película de minha servidão e nem percebi. Eu, que tinha aos meus pés a devoção servil dos amantes ternos, aqueles aos quais eu respondia aos seus gestos de ternura com frieza, noto que desenvolvo não sei que sensibilidade, sentimentalidade juvenil me arrastando implacavelmente rumo ao abismo.

Mas sou altivo e me corrijo a tempo. Não me submeto, bato-me orgulhosamente e não deixarei que minha alma sensível seja arrastada por essa ironia melévola. Não permitirei que semelhante palhaçada seja trágica. Para que o senhor veja de relance minha natureza é preciso que a mire como se fosse uma representação teatral, um número representando o fundo até onde os sentimentos podem descer.