domingo, 31 de maio de 2009

O Cortejo

Tiziu estava bastante indócil. Uma inquietação pela casa, um vaivém sem fim. Entrava e saia da sala, farejava em volta da mesa, deitava para logo em seguida levantar e sair. "Cachorro, por exemplo, vê o que gente não vê, ouve o que gente não ouve". Essa frase do conto "Na Estrada do Amanhece" de meu quase vizinho Corumbaense, me veio imediatamente à lembrança. Bela cidade com um rio lindo e perigoso, bem próxima daqui, a sede do poder. Em José J. Veiga há uma escolha por personagens infantis, ou melhor, aquela passagem da infância para a adolescência onde o imaginário mágico vai cedendo o palco para uma representação banal da realidade. O momento em que nossas fantasias vão sendo trocadas por sisudos trajes de uma ópera vazia, esmaecendo toda vivacidade do sonho.

Voltemos ao nosso caso. Cansado de andar de um lado para outro, de entrar e sair da sala, Tiziu, em sua negritude angustiada, deitou-se embaixo da mesa e ficou olhando fixamente o quarto. Assim como no conto, não pude de deixar de notar como os animais pressentem a morte, adivinham quando ela está chegando, se aproximando inapelavelmente. Coisa que nossa pretensa racionalidade não descortina. Mesmo as pessoas predispostas ao vaticinio, não chegam perto. Os místicos chamariam a isso de predestinação ou premonição, os materialistas diriam intuição, percepção analógica, eu diria... que sei eu?

Minha deliciosa leitora poderá defender-se e dizer que os homens também adivinham a chegada da dama solerte. Um amigo nosso em comum, o poupadordeporra, já contou aqui sobre o pião da fazenda de seu avó que pressentiu a morte. Não creio que a senhora se lembre. Mas o fato é que quando se sente o hálito frio na nuca, imagenzinha mais gasta meus deus, as pessoas se amedrontam ou tentam ajeitar seu passado desarticulacado.

Tiziu mais uma vez se levantou e saiu. Dessa vez tomou rumo determinado na direção do pé de jatóbá onde costumava ficar com seu dono, ao final da tarde, folgando idéia – com acento – na lonjura do horizonte. De lá não saiu mais e não viu o cortejo saindo.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Raparigas de Vigário

Tendo tido conhecimento das calúnias e das injúrias que seriam assacadas pelo Belarmino contra a nobre e valorosa esquadra tricolor, Amadeu mandou empastelar aquele folhetim marrom de merda. O Godofredo, delegado da localidade, logo que soube dos acontecimentos, foi meter a colher no angu de caroço – sem hífem. Na confa que se formou na sossegada Aperibé, o que é um pleonasmo, pois o nome já diz tudo, os motes principais do momento eram o jogo do time local com o rubro negro da cidade vizinha, se não me engano São Fidélis, e o atentado ao jornal. O vilarejo com pouco mais de nove mil habitantes no noroeste fluminense, estava eufórico com a subida do time local para a segunda divisão do estadual e andava acompanhando com fúria e denodo todos assuntos relacionados ao esporte bretão. E foi para o sobrinho do Belarmino que sobrou.

Godofredo, torcedor fanático da urubuzada, assim como Belarmino, tinha lá suas simpatias com o adversário, afinal as cores eram as mesmas. Era, por assim dizer, filhote do time da capital e além de tudo são nossos vizinhos, costumava dizer. Coisa inadmissível para os nativos e sua rixa com os habitantes dos arredores. Onde já se viu, a autoridade policial maior puxar sardinha para o inimigo? De certa maneira a cidade se viu ao lado do Amadeu e legitimou o empastelamento. Cioso de sua missão de homem da lei, o comissário, mais sério que porca mijando, mandou averiguar os fatos e cocluiu que o sobrinho foi o mandante. Basta cumprir a lei dos homens, porque a liberdade de expressão é parte do estado de direito em que vivemos, disse o representante dos preceitos legais. Foi então preso o sobrinho.

O que chamou minha atenção não foi tanto a escaramuça em si, mas a notícia involuntária da cornucópia. Um dos chifrudos, o Belarmino, já sabia de sua sina. E o mais curioso era que a galha lhe caia bem. Verdade que ninguém precisaria de um exercício profundo de observação para notar o cervo sendo cevado. Já o outro guampudo, o Godofredo, fazia o tipo último a saber. Todo mundo sabia que o sobrinho andava fazendo visitas naquelas duas casas. Na noite do ocorrido a cidade estava apreensiva, já que os rios Pomba e Paraíba do Sul estavam indóceis e cheios. Ningém reparou na ausência do sobrinhos e de duas personagens das mais influentes. Estavam mais escondidos que rapariga de vigário. Mas isto fica para depois.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Corrida de Rua

Eu e meu amigo careca resolvemos participar de uma corrida de rua, meio por pilhéria e meio por sarcasmo um com o outro, coisas naturais desde o início de nossa longa amizade. Do alto de nossos bem vividos quarenta e cinco anos, já tomando a curva do Cabo das Tormentas, estabelecemos um rigoroso cronograma de treinamento. Cada vez que eu entrava na academia tinha calafrios. O ambiente parecia com uma daquelas câmaras de tortura da Idade Média. Um por um os aparelhos me fitavam ameaçadores, rosnando sua sede de sangue. Por eternos quatro meses me submeti a sessões diárias de duplo sacrifício. Explico: a música, do tipo bate estaca, ecoando naquele salão reveberador era a cereja no bolo do suplício.

Eis que finalmente chega o grande dia. Um belo e claro dia de seca no cerrado, mas isso fora previsto em nosso planejamento minucioso. O careca está ao meu lado e ao nosso redor um punhado de gente animada. Notei a barriga saliente de meu camarada e pensei: bem, do careca eu ganho... mais mole que mastigar água. No primeiro quilômetro estavámos juntos. Não resisti e soltei uma piadinha, o que me consumiu energias vitais. "Ei Careca, com quantos quilos se afunda uma canoa?" Com isso o danado abriu dois corpos na minha frente. Meus brios se estremeceram e saí em polvorosa atrás daquela barriga insolente. Não poderia perder, seria humilhação demais. Depois de um esforço supreno, consegui chegar junto e não resisti novamente. "Careca, você acha que o desprovimento de pelos capilares melhora seu rendimento?" Mais uma vez ele se distanciou, dessa vez abrindo grande vantagem.

Nisso alguém me jogou um copo com água. Simbologia de minha ruína? Desejei a presença do cara que parou o Vanderlei Cordeiro por perto, assim ele poderia ser minha desculpa perfeita. As vistas escureceram e vi perfeitamente o retrato de minha capitulação. Decidamente nasci para jogar no máximo uma dama, talvez bocha. Não! A bola é muito pesada. Fiquemos com o halterocopismo, nesse sou imbatível. Assim termina minha única e última aventura no reino dos esportes. Hoje, depois de dobrado o cabo das tormentas e já chegando ao porto, no destino final da travessia, apenas contemplo as estripulias dos meninos de minha quadra.

sábado, 16 de maio de 2009

Bruxos Sanguinários

Eu estava muito cansado, recostei em uma árvore e não vi mais nada. Como última lembrança apenas as luzes amarelas do sol surgindo por cima dos morros. Sinal de que o dia estava chegando. Depois disso o escuro. Quando abri os olhos estranhei a imensidão do quarto simples em que me encontrava. O teto se colocava diante de meus olhos com todo esplendor de construção antiga. As longas vigas de andiroba, pintadas pela pátina do tempo, sustentavam uma daquelas casas de fazenda, sem forro e com os longos braços da estrutura se estendendo do centro para os lados. Logo senti um cheiro de café como há muito não via. Lembrei de minha mãe. Pela manhã, na fazenda, o cheiro exalava do bule e tomava conta de toda casa. Sem muita demora um alarido de gente começava a fervilhar no espaço. Era como se o aroma negro despertasse toda uma alegria adormecida, funcionando como um despertador pelas narinas. Éramos oito. Uma escadinha uniforme e exata distribuida em quatro meninos e quatro meninas. Como não pode deixar de ser, em uma família mineira como a nossa, havia também os agregados: meu tio paterno Claudionor, meu primo Adamastor, filho de meu tio, minha vó materna Adalgisa, o mala do meu cunhado e finalmente, porém não menos importante e imprescindível, a gostosa de minha prima, fonte de minhas primeiras sedes.

É preciso dizer que ao longo dos anos, como soube depois, a morada estranha foi tomando fermento para acomodar os novos moradores. Era, como já disse lá no início, uma vivenda imensa. Não sei qual foi a razão, mas me senti como se estivesse em minha infância. Tudo ali me lembrava a Cajuzinho Azedo. Desde as primeiras até as últimas, as impressões me levavam em um devaneio pelo tempo, um caminhar sem rumo em direção ao distante passado e cada vez mais longe do horizonte. Acho que já falei aqui nesse espaço sobre a indimensionável lonjura do horizonte. Deixemos de filosofice barata e tratemos de dar a pincelada final em relato tão absurdo. O fato é que o primogênito da simpática família achou-me desfalecido na estrada e trouxe-me para os cuidados de sua mãe. O médico mais próximo estava cerca de quinhentos quilometros e a faz tudo da região era exatamente D. Maria. Com muitas ervas a anciã retirou-me, palavras dela, dos braços do tinhoso. Fui uma luta danada. O sem nome não largava de jeito nenhum. Segundo ela meu olhar era frio que nem brasa adormecida. Sinal de que já houve vida nesse coração.

Devo admitir que a velha me atingiu a alma. Em um segundo toda minha vida se revelou dinte de minhas retinas atônitas. Finalmente me dei conta da mentira que forjei em torno de mim. Caiu a ficha e tomei consciência de minha palidez moral. Ao me enveredar na trama da cidade, soltei a rédea do alazão bravo nas mãos de bruxos sanguinários.