Ela morreu ontem. Nem sei ao certo como foi, mas o fato é que chegou a hora de sua decomposição. Esvaneceu no ar feito fumaça de cigarro, uma tênue névoa ondulando sensualmente diante do fim, não haveria de ser de outra maneira. Sua morte foi natural, correnteza mansa arrastando o poente solitário. Milena tinha um olhar estranho. Dissimulado e curioso percorria friamente toda sua espinha, como quem procura um pormenor revelador, uma fresta por onde penetrar seu poder malévolo. Gostava de ver os homens rastejarem aos seus pés. Todo seu prazer era servilizar seus adoradores. Feito isso, abandonava-os inapelavelmente.
Creio ter sido o único a não sucumbir aos seus encantos, que eram tantos. Daí seu eterno jogo comigo. Eu, na verdade, não passava de um doce desconhecido, atiçando desejos, fantasiando o não possuido e, sobretudo, um golpe mortal em sua vaidade de fêmea devoradora, de rainha ofendida por um súdito. Só eu sei como não foi fácil resistir aos olhares lânguidos dirigidos acintosamente para mim. Ficava até meio desconcertado. Desde o início percebi que eu não poderia me envolver com ela. Seria meu fim. Algo sussurrava isso em meu ouvido.
Logo que a conheci, por volta de meus dezesete anos, revelou-se sua faceta mais cruel, isto me marcou e foi minha salvação. Estávamos embaixo do bloco, uns quinze adolescentes entre homens e mulheres, nessa época não havia essa divisão toda entre meninos e meninas, conversando potoca quando ela surgiu do nada, imponente em sua beleza, senhora altiva da cena. Fiquei simplesmente embasbacado. Nunca havia visto algo tão belo. Desnecessário dizer que ela notou o pateta aparvalhado, o que só fez aumentar meu constrangimento e me irritou profundamente. Com o olhar já descrito me fitou todo e disse, melhor, ordenou: "Acabei de me mudar e não conheço ninguém, me leva à padaria. Não sei onde fica". Não acreditei, estremeci todo e tudo rodopiou.
Evidentemente acompanhei a moça depois de recomposto do susto. Estupidificado fui feito um carneirinho rumo ao abate. Hoje penso que essa ida ao portuga da comercial foi minha redenção. Explico melhor. Sempre tive uma sensibilidade excessiva. Desde criança que sofro horrores com perdas, sobretudo as sentimentais e fui, ao longo do tempo, conforme fui tomando consciência de seu poder destrutivo, criando aparatos de absorção que me protegiam. Com ela tive a certeza de que sairia perdedor. Uma convicção inexplicável e contraditória, pois sempre fomos muito íntimos. Mas vamos aos fatos.
Após ela ter comprado balas e cigarros, a moça era moderna, mas nem tanto... as balas abafavam o bafo perante os pais, sugeri irmos ao parque. Fomos. Balançamos, brincanos na roda, conversamos, vimos a lua e a beijei como nunca havia beijado ninguém. Ficamos suspensos em um tempo onde nada importa, um fiapo de eternidade que só aos adolescentes é permitido. Estava eu perdidamente envolto em sua teia até que o Febo dos cabelos de ouro deu o ar de sua graça. No dia seguinte, novamente embaixo do bloco, esperava ansiosamente sua chegada quando surgiu seus olhos luminosos que logo se tornaram trevas. Sem mais nem menos sentou ao lado do alemão, cara alto, de olho azul, bastante desbotado, diga-se de passagem, com um jeitão de galã canastrão e todo cioso de si. Parecia um pavão. Um frêmito percorreu meus lábios e não pude ver mais nada. Nem ao menos se dignou a um cumprimento. Entendi ali que eu nunca poderia ter nada com ela, seria minha ruína.
Anos depois descobrimos que nossos desejos sempre foram os mesmos. Mas já era tarde e eu estava, como desde o início, ocupado em construir um castelo onde não havia lugar para rainhas.
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