O butiquim acabou se tornando meu grande companheiro nesta nau-vegação blogueira. Pois é do fundo do bar, envolto em andrajos, surge nossa personagem, que já não é mais diária, haja vista a ausência de crônica em dois dias seguindos, já não posso me gabar deste feito. Desafiando o tempo meu vagamundo rompe a soleira. Ar altivo, elegante em sua barba imensa, olhava por cima o ambiente. Não tinha o ar aparvalhado de costume dos andarilhos. Como sou bisbilhoteiro e vivo procurando atrativos no dia a dia, reparei imediatamente na pinta. Não demorou muito se acercou de minha mesa. Convidei para sentar e paguei uma pinga.
- Tá vindo de onde?
- De longe, moço.
- E longe é onde.
- Já andei muito, nem me recordo mais dos lugares que conheci. Só lembranças embaçadas pela cachaça. De certo é que, de último, venho da Bahia. Cheguei coisa de quatro dias. Estou só de passagem, nunca páro nos lugares. Vou por aí, vagando mundão afora. Coisa de anos.
Minha curiosidade era tanta que fui indiscreto demais, especulei, assuntei. Mas nem precisava. O cara era boa praça, gente fina. Ilustradíssimo. Aos poucos e com generosas doses de aguardente a língua destravou.
- Houve um tempo em que tinha casa, família, filhos, irmãos. Essas coisas todas. Era um tempo bom, nem lembro mais. Sabe, minha memória falha muito. São impressões que se confundem com visões. De certo, bem vivo, a lembrança dos filhos. Dois meninos e uma menina, lindos. Acho que o mais velho deve ter uns dezoito anos, o do meio uns dezeseis e a raspinha do tacho uns dez. Ela veio depois. Aí aconteceu. Garrei com a danada, não larguei mais e saí mundo afora. Nunca mais vi ninguém, não sei notícias e nem eles tem novidades minhas. Isso deve de ter uns nove anos. Sabe o que mais doeu? A indiferença de todos. Sofri muito, sozinho, enclausurado na chaga que me carcomia. Tive crises profundas de depressão. O pior de tudo é que eu não bebia. Havia bebido só uma vez, na adolescência, achei horrível aquilo. Para suportar a solidão e a loucura que se instalava em mim, passei a beber. Nada mais tinha sentido. Já havia perdido tudo e o mostro se revelou. A branquinha passou a ser meu consolo, minha morada e namorada. É... eu tinha posição, bom trabalho, boa casa, carro do ano. Perdi tudo! Não pense o senhor, como todos fazem, que foi a mardita. Ela só veio depois. Antes a angústia, profunda. Passei dias sem sair de casa, sem comer, nem beber. Quando me acharam estava quase morto. Emagreci mais de dez quilos. Foi a última vez que vi todos. Amigos, parentes... Ali, naquela enfermaria, meu destino se selou. Sabe aquele movimento de segundos marcando toda uma vida? Foi o que se deu. Imagine o senhor que durante todo o tempo que fiquei lá, acho que dois dias, um tiziu me fez companhia. Só voava quando chegava gente, que para minha alegria era pouca. No dia seguinte levantei, vesti a única muda de roupa e coloquei o pé na estrada. Não olhei pra trás e desde então vou indo, sempre mais longe. Desse jeito vou parar na terra do tio sam. Bem, vou indo, tá na minha hora. Foi um prazer e creio que não nos veremos outra vez. Muito obrigado pelas doses e pela comida.
Fiquei sem saber ao certo o que aconteceu. Algo que o derrubou, isso com certeza.
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