Já lancei pinceladas aqui sobre o meu avô. Aquele do rádio e das siriemas. Me lembro muito pouco dele, mas o guardado pela memória me agrada. Lembro-me de sua imensidão, maior que o buriti plantado por mim, muito maior que tudo visto por meus diminutos olhos. Creio ser conveniente esclarecer a tradição familiar de se plantar uma árvore nativa, esclarecia meu avô, em todos partos vingados. Aos mortos, nada. Durante anos acreditei piamente que havia plantado um buriti em meu nascimento. Outro dia falo nisso, voltemos ao avô. Olhos de um azul profundo e careca. Eis aí a razão de eu ser desprovido de pêlos no everest. Não era velho, ao contrário. Nos seus sessenta e poucos anos demonstrava uma disposição física invejável, maior que sua obstinação em não declarar nada. Homem de raras palavras. Quase não conversava. Costumava dizer que quem fala muito dá bom dia a cavalo e ele não entendia a língua dos quadrúpedes.
Todo final de tarde, eis a origem de minha obsessão pelo crepúsculo, o velho saia para pitar uma páia lá nos arredores da capelinha. Oratório simples construido por meu bisavô, se distanciava da sede em torno de uma légua. A fazenda mais que centenária, não era propriamente uma pequena gleba. Embora reduzida em seu tamanho original, ainda era a maior da região e meu avô conhecia cada pedaço daquelas terras. Das grutas mais escondidas ao mais soturno canto de pássaro dava notícias. Ali para ele era uma espécie de santuário. Se recusava a derrubar um piqui que fosse. Não admitia caça em sua propriedade e sua participação no mercado agropecuário era o suficiente para manter a fazenda e a grande família. Sem luxo, que isso é coisa de vagabundo desconhecedor da dureza, mas cioso da limpeza e dos trajes, da aparência correta e medida.
Lá pelas bandas da capelinha ele se sentava perto de um grande vale, sempre no mesmo lugar, e começava seu ritual. Afiava a páia, cortava o fumo com o canivete que foi de seu avô e enrolava vagarosamente o pito. E aí ficava, deixando correr o tempo, vagando em pensamentos nunca ditos. Comigo era diferente. A gente conversava com os olhos. Eu sabia tudinho. Naquelas águas navegava uma nau sem rumo. Os olhos procuravam longe. À deriva deixava seu barco vagar em bandos de pássaros voltando para o ninho. Lembro-me de que uma vez ele me chamou com um gesto e, sem nada dizer, apontou para o céu e disse: "olha". Um bando imenso de maritaca, como eu nunca tinha visto antes, passou tão longe que nem seu alarido foi possível escutar. É, o velho enxergava longe.
Soube de sua morte quando me preparava para os exames do liceu. Ainda não atinava direito com as coisas dessa senhora e havia tempo que não via meu avô. Meus pais se mudaram para a capital e, naturalmente fui junto. O velho nunca pisaria em uma grande cidade. O capataz de confiança dele me contou tudo.
- U véi quiria qui'ocê subesse. Cê sabe qui ele era de poca cunversa. Nesse dia, o da dama de preto, ele dispidiu de todo mundo. Matutei cumigo: esse véi tá doido. Mais nun liguei muito não, ele sempre foi isquisito. Passô um tempo e nada do véi vortá. Encabulei. Fui lá. Tava o véio, mais frio que a pedra onde ele tava incostado. U ingraçado é que o paiero inda tava acesso e um punhado de pássaro, já noite arta, vuava. Uma barueia disgramada.
É, o velho enxergava longe.
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