Sinto uma estranha sensação ao notar casualmente minha lucidez diante de um fato banal. O fato é que a barata, inapelavelmente esmagada por uma chinelada certeira durante a mijada da madrugada, estava sendo delicadamente devorada pelas formigas e eu me comprazia nisto. Me lembrei de Raduan Nassar. Achei que estava possuido por uma esquisita indecisão obssessiva e, porra, logo de manhã. Uma zona total. Não sei se jogo a barata no lixo ou se deixo as formigas prosseguirem em sua lauta refeição. Se escolho a última terei um lento processo de limpeza ao mesmo tempo em que aquela visão se manterá diante de meus olhos. Creio ser melhor que as formigas consigam seu rango em outra freguesia. Mas deixo tudo como dantes no quartel de Abrantes.
No velho rádio toca uma canção antiga, daquelas de molhar o coração de uma mãezinha. O rádio merece alguns comentários. Foi herança do meu avô e sempre me acompanha, onde quer que eu vá. Grande e pesado possui um corpo de madeira estupendamente talhada e com um alcance incrível. Foi ouvindo nele a BBC de Londres que aprendi meu inglês macarrônico. Mas a barata me persegue. Seria eu um sádico destruidor da cadeia alimentar? Ou apenas precipitei o processo ao fornecer a gororoba? Na verdade, vendo as formigas devorarem aquela gosma fétida, sentia um prazer doentio. Buscando explicações lógicas, como é de meu feitio, criei a desculpa científica para minha exultação ao presenciar a lenta agonia da carcaça apodrecida. Qual seria a razão de tamanho prazer? Seria uma barata a bravata de Gregor Samsa? Ou estaria metamorfoseado num inseto monstruoso? Só que o quarto não é meu e nem sou caixeiro viajante.
E lá estava aquela massa pútrida. Alheia às minhas elocubrações ia sendo vagarosamente consumida pelas formigas em sua faina incansável. Minha imobilidade era tenaz. Aliás, não tomar decisões é uma de minhas especialidades. E a canção continuava em seu lento murmurejar monótono. Creio já ter ouvido isto, mas não lembro direito. A memória é uma arapuca espessa envolvendo lentamente o que não pode ser resgatado. Apenas a lembrança traidora do fato. Me pergunto sempre se não passo de uma personagem sem direção, o papel de um aloprado perdido no meio da cena, sem fala e fadado a perambular a esmo. A platéia, meio sem jeito, ignoraria sua presença. Fazendo com que sua atuação nao passasse de mera figuração social, assim como os enjeitados desfilando sua miséria na consciência cristã da compaixão.
As pequeninas formigas, negras como tição, se acotovelavam ao redor do presunto em uma obstinada lida, arrancando naco por naco a geléia para sua despensa. No rádio a canção já tinha acabado há muito e eu nem percebera. Ficara suspenso em um tempo imóvel. Com a mesma música a embalar a mesma cena, o mesmo gesto. Já passava da hora e eu estava bastante atrasado. Sai em polvorosa rumo à garagem. Ajeitando gravata fui praguejando minha distração. Porra, já são duas horas. Caralho, aquele filho da puta do Antenor vai me encher o saco, pensei ao lembrar que teria que lidar com aquele jumento... e na maior gentileza. Bem que ele poderia ser a barata e eu as formigas. Só vou aturar ele porque a vadia da minha ex-mulher me fudeu a vida e tô mais duro que pau de tarado na solitária. Além do mais a grana é boa e aquela vaca nao vai meter a mão em nenhum centavo. Aí me mando por uns três anos vadiando pelo mundo. Afinal, nao era um de meus sonhos? Vagar mundo afora, andar sem rumo por aí nao foi sempre meu maior desejo? E que se foda baratas, formigas, vacas, asnos...
Ainda bem que esta cidade, além de bela, é fantástica. Um dia ainda vou morar aqui, pensei. Em menos de dez minutos cheguei à reunião que me salvaria da miséria. Ao entrar no prédio dei de cara com o Antenor. Até no nome o sujeito é uma anta. Mas como é o dono da grana, quer porque quer que eu faça o trabalho, vai pagar o que pedi e eu estou na pior... vamos para o cadafalso. A reunião foi rápida e tremendamente proveitosa para mim. Para minha surpresa a reverendíssima besta estava de bastante bom humor. Me disse que passou a noite analisando meu trabalho e que estava muito, mas muito mesmo, satisfeito com o projeto. Trabalho aprovado, entregue e devidamente pago me mandei rapidamente para o hotel após as rasgações de seda de praxe. Tomei uma demorada ducha enquanto me voltava novamente para a barata. Lá estava a cena: a barata reduzida pela metade e um número de formigas aparentemente maior. Liguei para a recepção, pedi para fechar minha conta e mandar um rapaz para pegar meu rádio. Enquanto ensacava minha minúscula bagagem notei que a barata estava quase sumindo. O que confirmou minha teoria de que o número de formigas havia aumentado. Antes de sair lancei um último olhar para o palco da pequena tragédia que acompanhei. Sorte de uns, azar de outros e a fila anda, concluí. Fechei a cortina e segui para a recepção onde tive um inesperado encontro com o Antenor. Para minha surpresa o muquirana havia pago a despesa, devolvido o carro e me levaria ao aeroporto. Porém, a surpresa maior foi, no caminho para o aeroporto, o Antenor me dizer que havia alugado, com todas, mas todas mesmas, despesas inclusas, uma casa nos arredores de Paris para que eu pudesse ficar um aninho fazendo nada. De cima vejo mais uma vez esta bela cidade. É... um dia ainda moro aqui. Mas por ora, Paris.
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