terça-feira, 22 de julho de 2008

Rodriguiana

Havia um sujeito que estava sempre bebendo lá no butiquim. Caladão, poucos amigos e sempre muito pensativo. Aparentava ter seus quarenta e poucos anos. Apenas o cumprimeto de praxe entre pessoas sempre presentes no recinto e que se conhecem de vista. Um belo dia, estando eu sozinho no escritório etílico, o cara resolveu puxar conversa comigo.

    - O senhor sabe a diferença entre saber e ignorar?

Não entendi nada. Seguindo o vício da profissão, tentei ser o mais didático possível em minha resposta. Apelei primeiramente para o dicionário, para em seguinda vomitar um longo discurso onde se sobresaia minha pretensa erudição. Tive como resposta isto:

    - É, o senhor não sabe e não é ignorante. O senhor querendo saber, mire e veja. Há coisas no mundo que fogem de nossas mãos. A gente acha ter o controle de nossa vida. Bobagem. Nada pode ser determinado. Nem as relações de parentesco. Quando a gente pensa que sabe quem são seus pais, seus filhos, sua esposa, seus irmãos... Tolice.

Continuei sem entender patavina. Algo de taciturno em seu semblante e em sua voz denunciava dores profundas, daquelas sem solução.

    - Veja bem, há coisa de cinco anos conheci uma garota bem mais nova que eu. Ali, com seus dezesete aninhos. No princípio nem notei a garota. Mas a insistência com que me olhava acabou desviando minha atenção pra ela. Estava em pé, na porta de entrada lateral do Beirute. O Senhor conhece o Beirute?

- Conheço. Eu ia muito lá. Lugar democrático, alternativo, né?

- É... Essa mocinha veio até minha mesa e pediu para sentar. Embora quisesse ficar sozinho, concordei com que se sentasse. Nem precisei fazer esforço para conversar. Ela não deixou. Parecendo um vulcão em atividade máxima a menina ia falando sem parar. Fiquei sabendo tudo que ela lia, via, fazia. Só não falou de sua família. Do resto, namorados, primeira transa, baseados, festas etc, falou de tudo. Depois de longos minutos ela descansou e começou a me fitar com um belo sorriso. Esse sorriso... Eu conhecia esse sorisso de algum lugar. Indaguei sua origem. Tergiversou e saiu pela tangente não me oferecendo nenhuma informação. Pra encurtar o assunto: acabei me apaixonando pela ninfeta. Eu sabia o rídiculo da situação. Namorar uma menina mais nova que eu vinte e cinco anos? Coisa de velho babão. Nunca fui dado a Nabokov. Sempre preferi as mulheres mais velhas, aquelas maravilhosas professoras. Essa, entetanto, tinha algo que me arrastava. Namoramos um ano. Eu sem conhecer a família dela e ela a minha. Ficou combinado isto: nada de famílias no meio. Até que aconteceu. Casualmente encontramos sua mãe na comercial da 108 sul. O céu afundou diante de meus olhos. A Igrejinha me pareceu um castelo assombrado. A academia da Norma Lilia rodopiou em minha cabeça embriagada. A mãe dela era a Lúcia, antiga namorada que nunca mais havia visto. O término de nosso namor foi traumático. Ela ficou me odiando. Coisa que nunca entendi direito. Tá legal, eu era um vagabundo de marca maior, mas daí a me odiar a ponto de nunca mais querer me ver? A reação de Lúcia foi ainda pior que a minha. Evidentemente ela havia me reconhecido. Ficou parva, atônita e não pronunciava uma palavra sequer. Quando fui apresentado como namorado... aí a vaca foi pro brejo. Os pacotes segurados por ela cairam e escutei um monte de vidro se partindo na calçada. Lucia quase desmaiou. Tivemos que segurá-la. No momento pensei apenas em nosso passado e achei ser apenas o grande ódio estampado na pele. Tola ilusão. Não era nada disso. O assunto é escabroso para a moral cristã de nosso formigueiro. Refeitos do susto, nos sentamos em um restaurante. Indaguei a razão de tanto alvoroço. Antes não tivesse perguntado doutor. A menina era minha filha. Aí não enxerguei mais nada. Eu estava comendo minha filha. "Porra!" Gritei pela primeira vez na minha vida. "Você não me falou nada? Como? Eu era um menino, mal gozava. Que merda você fez sua irresponsável". Ia gritando cada vez mais alto. Desnecessário dizer que nos tornamos o espetáculo da platéia. Após impropérios impensáveis em minha boca calei-me, aturdido e perdido. Aos poucos minha razão voltou e vi que era bem possível mesmo aquela menina ser minha filha. Desde o início algo familiar. O sorriso, a tranqüilidade ao falar, os olhos pequenos de um verde-azulado profundo. Sem se falar em meus quatro filhos e outros tantos abortos. Minha porra sempre foi um perigo. E nunca poupei. A garota foi o início e o fim de minha longa carreira de reprodutor. O senhor vai me desculpar, acabei falando demais e está na minha hora.

O cara pagou a conta e se mandou rapidamente. Estava um pouco alto, nada que não o permitisse chegar em casa. Nunca mais o vi. O dono do butiquim me disse que ele havia mudado para o Amapá.

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