De vez em quando eu ia em um butiquim lá no Guará. Não costumava ir muito. O Guará é longe e a volta sempre foi complicada, mas sempre que aparecia por lá era muito bem recebido pelos da casa. Já não vou mais, pois a lei seca do Lula, grande ironia, logo aquele pé-inchado, já não me permite vôos longos. O estabelecimento é simpático e é um autêntico pé sujo familiar. Um desses butecos largados ao léu com uma certa sobriedade, uma elegância discreta se manifestando nas mesas e cadeiras surradas, o que pode parecer esquisito em se tratando de um bar, ainda por cima velho e decadente. Não é de todo absurdo atribuir a esse ar vestuto e parado, meu fascínio pelo local. Ali parecia que o tempo tinha sido capturado pela memória desse estranho grupo.
O bar tinha uns lances engraçados e curiosos. Mudava de dono constantemente, nunca deixou de ser bar, a mesma aparência, reformas só as essenciais, como a troca de uma caixa do vaso, por exemplo. Uma clientela fiel e praticamente única, composta de um grupo de amigos "idosos"e, para muito além de qualquer coisa imaginável, uma soberba prosa jogada fora e sem testemunhas. Eventualmente eu me sentia meio estrangeiro, já que eu era intruso em uma terra na qual eu não merecia pisar. Até que um deles comprou o bar e entregou chave pra todo mundo. Foi uma espécie de colegiado administrativo encerrando a eterna brincadeira de anel. Afinal, quem sustentava o bar era o grupo. O diabo é que todos eles saiam bonitos, chamando jesus de Genésio e urubu de meu louro, do que se aproveitavam distribuidores desonestos. Quebraram, evidentemente. Prontamente convocaram alguém apto para reerguer e gerir a sede.
Contemos então, pois. Era habitué um tal Garnizé. Nunca soube ao certo a razão do apelido, mas supunha ser devido aos tufos ralos ainda existentes em sua testa. Assim, meio galo de campina. Garnizé, um senhor de quase oitenta anos, ou mais, nessa idade já não se divisa nitidamente os marcos do tempo. Cumpre dizer, antes que eu esqueça, que o caçulinha do grupo tinha lá seus setenta e poucos anos. Voltemos ao Garni. Carioca, como boa parte da diretoria, se vangloriava de ter perambulado pelo Rio nos tempos de ouro.
- Madame Satã? Aí cumpadi, era chegadaço, de lei. Aí, uma ocasião eu salvei o camarada da maior roubada. Malandro tava a fim da abotoar o cara e eu dei o plá. Aí, o texto que eu mandei deixou o malandro sambando na parada. Conheci essa rapaziada toda, tudo gente fina. Foi lá na gafiera do Elite Club que conheci o Geraldo Pereira. Dizem por aí que o Geraldo morreu nas mãos da Madame. Pura lorota, madame satã era uma moça, delicadíssima, incapaz de matar uma barata. Aí, foi no dia 8 de maio que o cara empacotou, o ano não lembro, acho que foi 55. Já o Wilson, conheci no Café Nice, ali na avenida Rio Branco. Vendi muita música dele, ele me pagava um por fora. A gente fazia ponto na praça Tiradentes. Muito diferente dos bacanas da Confeitaria Colombo. A gente era de uma dureza de dá dó. Esse papo aí de que ele e Noel eram inimigos não tem nada a ver. Aí, te conto meu camarada, só porque você é meu chegado. Tudo culpa de mulher. Tinha uma moreninha que o Noel tava de olho e o Wilson traçou sem dó nem piedade. É malandro, rapadura é doce mas não é mole não. Aí os malandros se estranharam, só isso. O resto é conversa de intelectual.
Se ele realmente conheceu todo esse pessoal não confirmo nem desminto. As datas, os acontecimentos, os mitos, as versões, enfim, havia em seu discurso uma boa dose de precisão histórica convivendo lado a lado com mitos cristalizados no imaginário social. Na última vez em que apareci soube que nosso querido personagem havia se esvanecido no ar. Bateu asas feito passarinho novo, meio desajeitado com a novidade, mas com a força inicial da vida.
4 comentários:
Os botecos da vida. os garnizés da vida. sempre dão boas histórias.
rsrs...
Poxa, fiquei com vontade de conhecer esse bar.
B.E.I.J.O.S
Caríssimo vate baiano, grato pelo comentário. Estava ficando igual ao Carecone: carente de comentários. Há outras crônicas onde o cenário é nossa instituição mor: o boteco.
Se tiver saco dê uma olhada nessas:
o Vira-latas.
A patroa do Vira-latas.
A sombrancelha e outras mais.
Valeu. Já lhe disseram que você é a cara do João Ubaldo?
Linda escriba Bianca, muito obrigado pela honra de sua presença. Caso queiras mesmo conhecer terei o maior prazer em levá-la, não só a esse, mas a todos os demais que me servem de alento para a falta de criatividade.
Beijos e, já que gostas de fotografia, mais Bresson pra gente.
Tive a felicidade de ver a mega exposição dele aqui em Brasília. fiquei uma tarde inteira admirando os olhares sutis de sua lente. Beijos.
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