quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Orfandade

Eu iria receber uma comenda em minha cidade, da qual estava afastado há mais de vinte e cinco anos. Logo após minha separação fui para os Estados Unidos. Estava inexplicavelmente imbuido em sair de minha cidade a qualquer preço. Onde nasci, cresci, me formei e vivi não me cabia mais. Todo lugar, qualquer canto havia uma lembrança amarga e doce ao mesmo tempo. Uma eterna contradição que me amargurava profundamente. Larguei tudo e sumi. Não dei nem pedi notícias. Saí em busca de todas alternativas fora dali. Surgiu esta na terra do revólver e fui. Acabei me enfurnando nos estudos para acabar com meu monológo solitário e colhi os frutos. Me tornei um renomado compositor que se dava ao luxo de viver nababescamente de suas composições.

Agora volto para esta homenagem. Fiz duas únicas exigências: dois convidados e dois lugares nobres, centrais e próximos de mim e a outra era reger o concerto, coisa que eu não fazia há muito tempo. Não sabia do paradeiro desses dois convidados. Dei para o Spencer, meu produtor, o último endereço conhecido e pedi que se virasse e os achasse. Após o que, iniciei a composição de uma peça especialmente para esta apresentação.

No dia do concerto estava extremamente apreensivo, parecendo um estreante cujo repertório está além de suas possibilidades. Não perguntei mais notícias sobre meus convidados e tampouco as tive de Spencer. Ao entrar no palco intintivamente procurei-os nos lugares reservados. Não os reconheci de imediato. Eram eles, sem dúvidas. Como estavam grandes e bonitos. Ao vê-los tive uma sensação até então desconhecida e corri para o pódio. Antes de levantar os braços ainda pensei: "Será que eles sabem que sou eu"? Modéstia a parte, fiz um belíssimo concerto e a estréia mundial da peça dedicada aos meus dois convidados agradou bastante.

Nunca gostei de fazer discursos, embora eles fossem inevitáveis. Nesse dia fugi completamente do protocolo e desandei a falar olhando fixamente para os meus convidados.

- Caríssimos, a peça que vocês acabaram de ouvir é dedicada aos meus dois filhos, que aqui estão para meu júbilo e contentamento. Há quase trinta anos que não os vejo. Há quase três décadas que guardo no peito essa ausência. Os senhores hão de perdoar meus clichês, o que sinto é totalmente piegas. Alguns até dirão vulgar. Mas não posso deixar de pedir desculpas aos meus filhos por eu ter fugido. Se a evasão propiciou tudo que alcançei foi, também, a responsável por tudo que perdi e roubei. Furtei aos meus filhos seu pai. Agora são homens, não precisam mais de pai. O sentimento de orfandade encobriu minhas retinas, ofuscou minha lucidez e acionou o mecanismo de minha vitória. Agora a única coisa que posso fazer é desculpar-me perante todos.

A platéia não se conteve e aplaudiu efusivamente o compositor da terra. Saí rapidamente para o camarim e as únicas pessoas autorizadas a entrarem eram eles. Fiquei pensando se eles iriam falar comigo. Na esperança da resposta positiva fiquei aguardando. Nada. Não foram me procurar. "É lógico, você some e aparece quase trinta anos depois com a maior cara lavada e acha que uma musiquinha e um discursozinho baratos vão apagar todo esse abandono"? Amanhã vou procurá-los. Valeria a pena? Não importa, amanhã procurarei saber deles. Temos tanto que conversar. Avisá-los de uma irmã espanhola, um irmão francês e outra belga. No susto tomei consciência que tenho cinco filhos. Acho que não nasci para ser pai.

Dos cinco, apenas a mais nova teve um gesto de atenção, de carinho.

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