O estampido veio de longe, quase inaudível. Assustados, olhamos uns para os outros em uma muda pergunta destinada a cair no vazio. Já sabedores da resposta negativa não havia necessidade de questionamentos. A noite enluarada chovia lágrimas crepitantes sobre a fogueira, distante da barraca em cerca de vinte metros, uma distância razoável e segura. Já estava na hora do jantar, e todos se encontravam sentados na beira da fogueira assando umas batatas e lambendo a última beiça do dia quando o rugido nos pegou. Em princípio atinamos apenas para o trovejar de arma de fogo, não percebemos os símbolos por trás daqueles rugidos e único tiro.
Automáticamente peguei minha espingarda e meu facão. Apetrechado me senti mais seguro e assentei pensamento: não há o que temer, o tiro foi longe, lá pras bandas da chapada, perto do rio, talvez na margem. Deve de ser caçador de onça... isso é uma corja nojenta. Mata os bichos pra fazer dinheiro e olha que já não tem mais onça. Meu avô saberia muito bem o que fazer com eles. O pior é que os vagabundos só caçam com no mínimo dois, covardes acima de tudo. Não tem peito de encarar a bicha e fica se escorando em seus comparsas. De qualquer maneira é melhor dar uma bordejada por aí para ver se consigo vislumbar o acontecido.
Fui pertubado em minhas idéias pelo Bira. Sujeito alto, magro, com muitas espinhas na face brancavermelhada parecia uma espiga de milho garunchada pela praga polaca.
- Desarmar acampamento?
- Tá maluco? Hora dessa? Vamos ficar aqui quietos, só assuntando. – falei.
- E o barco? – perguntou o Tuchê.
- Uai, o barco fica onde tá. Só vamos deixar ele pronto pra partir e vamos rezar para que não seja preciso, pois não sei se vocês se lembram, mas a porra do Bira não trouxe o farol – Falou o Minerim.
- E por quê você acha que vai ser preciso? – perguntou o Meleca, já demonstrando um certo pavor.
Procurei acalmar os ânimos, que já roçavam uma fronteira perigosa, aquela onde não há um pingo sequer de discernimento da realidade ao redor. Mantive a calma e chamei o Francês; cearense com a cabeça mais chata que tábua de passar roupa, o cabra conhecia um pouco das manhas do cerrado, além de ser um excelente perdigueiro; para dar uma olhada em volta do acampamento. Peguei minha lanterna e fomos vagarosamente, perscrutando cada palmo de chão, cada galho quebrado, coisa que o Francês fazia muito bem como já disse, até que demos de cara, cerca de uma légua, com um jirau cheio de peles. Eu tinha razão. Os filhos de uma égua estão por aí.
Chamei o Francês e dei a idéia de pregar um susto nesses vagabundos. Bem que esses fios de uma rapariga merecem uma lição. Primeiro escondemos todas as peles. Depois faríamos com eles o que eles fizeram com os animais, ou seja, iríamos caçá-los. Só não vamos estourar suas cabeças de animais. Mesmo porque suas cabeças não valem a pena como troféu e eu não sou caçador. Partimos. A noite nos era favorável, pois não foi no tição das estrelas sem lua que aprendi os segredos do cerrado? Com essa lua era moleza. Ouvimos rugidos de onça, vindos de algum lugar à margem do rio. Mais uma vez eu acertara. Era um ruído agudo, rasgado, ao fim do qual vinha algo parecido com vozes – os caras são amadores – aparentemente próximas. Atrás de mim, com olhos de águia e faro de cão, o Francês percebia o medo contido nos rugidos.
- Soa como um lamento – observou o Francês, erguendo os olhos da touceira que havia acabado de examinar. – Ouça como ela está acuada. Estará mesmo tão perto?
- Está a pouco mais de quinhentos metros, rio acima, na margem esquerda.
- Vamos avistá-los?
- Tudo indica que sim
- Então vamos logo que estou doido pra dar uma peia nesses cabras e a bichinha já tá bem estressada. Te falei que eu acho que é fêmea?
- Por quê?
- Sei lá, o rugido parece voz de mulher.
Foi mais fácil que pensei. Antes de mais nada achamos e afugentamos a onça para longe dos pistoleiros. Depois foi mais fácil ainda achar os caras. Como eu disse antes, eram amadores, deixavam marcas por todos lados e não tinham a mínima noção de retaguarda. Executamos nosso plano. Tomando cuidado em escolher cobras sem veneno, pegamos algumas, meu passatempo predilento em acampamentos, e colocamos, depois de um vacilo deles, o que seria inevitável, uma em cada mochila, quatro ao todo e fomos embora sem saber o resultado. Mas creio que tenham saido correndo feito malucos cerrado afora.
Só voltamos ao acampamento com o sol raiando. Nem percebemos que andamos a noite inteira. Assim que chegamos todos queriam saber o acontecido.
- Nada, só barulho atoa. – falou o Francês.
Nada me foi perguntado e eu nada disse.
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