Não sei ao certo onde larguei minha única leitora. Pois sim, acabei descobrindo, por acaso, que tenho uma única leitora. Retomemos o prumo. Ao nos reencontrarmos pressenti, como disse anteriormente, a influência extraordinária daquele grupo em mim. Era a promessa da liberdade perfeita, aquela consigo mesmo, como ressaltado por nosso contumaz jogador moscovita. Renata era a personificação do sonho de meu coração. Esguia, com penetrantes olhos perscrutadores, mirava a morada por cima das picuinhas humanas. Talhada em contornos suaves, ostentava um sorriso inquiridor, não desprovido de astúcia, nos lábios carnudos emoldurados por um rosto de notável beleza e candura.
Meu entendimento com ela foi rápido e intenso. Ficamos por alí, no largo do Campo Grande. Praça testemunhando brincadeiras do tipo se fosse o que seria e tantas outras. Varamos a noite conversando, brincando, falando de sonhos, de descobertas, rindo, enfim, estava mais feliz que pinto no lixo. Ao romper a barra do dia havia algo de anjo exterminador no ar. Ninguém tomava uma atitude e tudo estava envolto na indecisão até que o Paulo lembrou que a casa de Itaparica estava vazia.
Só queria pegar meu violão, lá na Ribeira, próximo à Igreja do Bonfim e em frente ao quartel, onde estávamos hospedado na casa de uma tia do Lago. Perfeito, pois tanto a Marina, não é mera coincidência, e o Paulo precisavam passar em casa e ambos moravam na cidade baixa. Marina porque estava em dias de revolução vermelha e o Paulo para pegar as chaves. Tudo resolvido rapidamente e tocamos para a ilha. Era um dia magnífico, quente e claro, de meados de janeiro. A casa dos Pais do Paulo ficava ao lado da entrada de um resort qualquer. É, eles já estavam por lá.
A casa era pequena e simpática. Havia uma profusão de flores. Mãos boas, como se diz, deviam cuidar delas. Havia canteiros ao redor da casa de madeira, um rés-do-chão convidativo e acolhedor. Nos colocamos, comemos, tomamos banho e fomos para a praia, lá para os lados de mar grande. Dia perfeito. De noite veio o melhor. Resolvemos fazer uma fogueira na praia. Tava eu lá tocando uma das suites para alaúde do Bach, quando me chega um nativo com um violão na mão. Sentou quieto, sem falar nada, só ouvindo. Quando terminei ele falou:
- Música bonita, nunca ouvi. Não é brasileira, é?
- Não, é de um alemão.
Renata chegou-se a mim e pediu para eu tocar Tereza da praia, que ela cantou divinamente. O nativo tentou me acompanhar, mas não deu conta da harmonia.
- Essa é brasileira. – Eu disse.
-É, percebi. Posso tocar algo?
E desfilou uma série de cirandas que me deixaram aparvalhado. Após a terceira ciranda eu já havia sacado os caminhos harmônicos e rítmicos, que não eram tão complicados. Passei a tocar com ele. Foi quando ele, após mais uma bela ciranda, me mostrou o requebrado da moreninha do pompom grená. Dessa vez não fiquei aparvalhado, fiquei passado. O menestrel dos mares surgiu em cena. Quis ouvir mais e fui gentil e largamente presenteado com várias canções do vate baiano. Minha imensa curiosidade tratou de memorizar tudo, menos as letras, para não perder a tradição.
No dia seguinte à noite, partimos rumo ao nosso cerrado. Depois disso começei a ouvir o mar de maneira diferente. Ao nos despedirmos toquei Marina para a dona do nome, É doce morrer no mar para o restante do grupo e para Renata toquei uma ciranda que fiz de atrevido. Nunca mais nos vimos e, tenho certeza, nunca nos esquecemos.
2 comentários:
Belas lembranças. Na verdade, não é sobre como você descobriu Caymmi, mas como a arte dele te fez descobrir o mar.
Não somos nós que dizemos o que é a arte, é ela que diz quem nós somos.
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