Acordou noite alta, e, no primeiro momento, experimentou aquela terrível desorientação que o escuro provoca nos sentidos. Seria incapaz de definir qualquer coisa que fosse do quarto, as dimensões, o abajur lilás, o quadro, única sobra dos tempos idos, de E. R. L. Ela sempre se deitava tarde, pois herdara os hábitos notívagos de seu pai e com esse repentino despertar não dormiu nada, o que contribuiu ainda mais para seu aspecto sonambúlico. Pensava estar na fazenda, com as enormes chaves penduradas no pescoço e com afazeres ditados pela mãe.
Era no fim do verão, e ela recebera uma carta de seu pai dizendo-lhe que voltasse. Estava no quarto, não o da herdade, o mesmo que a avó Zefa usara antigamente e era, como os da fazenda, disposto ao longo da varanda, ornamentado apenas pela paisagem marítima de um porto pequeno. Além disso, uma estampa de certa virgem pendia sobre uma das cabeceiras. Encarava os espaços vazios como algo muito mais que saudades, davam-lhe a impressão de que alguma coisa acabou, e que ela era a única culpada pelo fim.
Vivia cercada de presságios, desejos e de tédio. Na verdade, ela, desde o início, dava continuidade em sua longa peregrinação ruma a uma densidade de idéias – com acento –, em uma obscuridade de pensamento que lhe esvaía os sentidos, que a deixava lúcida só para a insistente canção penosa do coração. Acabrunhava-se. Tentava encarar aquilo como um passatempo. Mas, aos poucos, começou a achar apenas fastidioso o fato de ter relações, para ela as relações entre criaturas era uma soma onde não havia fantasias. Ela pouco sabia do homem, de sua sedução quase cândida, de seus encantos fúteis, de sua petulância graciosa, de sua curiosidade desvairada, de sua circunscrição em determinada época, dos prazeres femininos, da euforia tirânica que exercem as mulheres sobre os homens apaixonados, dos trinados sutis dos amorosos. Enfim, sua aguçada capacidade selvagem de defesa, de astúcia, lhe conferia um ar sibilino.
Eis nossa personagem. Agora, na casa da cidade, apenas ela velava. As velas ardiam para o silêncio e a solidão, e suas chamas azuis estendiam-se nas profundezas de seus olhos. Assim decorreu o resto de noite, as velas reduziram-se, lambendo os estertores da língua de fogo e o lume da manhã abrindo o pano para mais um espetáculo.
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