quarta-feira, 18 de março de 2009

“O Sonho da Razão Produz Monstros”



Está decidido, minha boa leitora, parto. Abandono a desolação das ruínas, deixo esse claustro sombrio e tomo o destino dos mortos. Rio Aqueronte será minha fonte, meu mergulho em terras mais felizes. Antes de ir adiante, talvez seja melhor, antecipadamente, inventariar, embora eu não seja propriamente um materialista pragmático, a razão pela qual insisto em tecer as insígnias de minha pobreza. Minha alma apodreceu sob a ação da realidade. Miseravelmente corro para uma perda inevitável, arrasto-me disfarçando o horror de olhar para mim mesmo. É meu desejo partir, o barco está pronto e o rio é sem terceira margem. Esse princípio de melancolia ousa revelar abertamente meus ardores insensatos, escancara os anos que fizeram vergar as tristezas de todos nós.

Eu, de bom grado, mudaria o curso das coisas, se estivesse em mim essa possibilidade. Modificaria meu caminhar lento, afastaria a tristeza, cuja causa reside na própria vida, e, decidamente, removeria esse ar diabólico de meus olhos. Contudo, meu estado aflito, acabrunhado não tem história, não conhece os limites da verdade e me é impossível alterar qualquer acontecimento que seja. Mas há de se reparar bem nessa coisa interessante, minha doce leitora: a razão é um embuste.

Goya, conforme minha leitora pode comprovar lá no início, vai nos dizer que o sonho da razão produz monstros. Já a idéia platônica nos diz que ela é inerente ao ser humano e ela só pode existir em contraposição ao mundo de nossas emoções, aos sentimentos, às paixões, que são cegas, caóticas e desordenadas. Você, minha linda leitora, como pessoa bem informada, eu diria uma intelectual, há de convir comigo que isso é aborrecido e não carece de maiores abordagens, já que a literatura especializada é farta e eu não passo de um especulador barato, um ignaro com rompantes de "sábio". Argumento com o qual concordo em número, grau e gênero. Portanto, deixemos de filosofices e vamos dar cabo nesse textículo. Eu, como um sensitivo, não faço questão de idéias.

É certo que meus vizinhos não viram – não poderiam ver, ninguém seria capaz de ver – a comoção tomando conta de mim. O fato é que ninguém nunca mais me viu. Nunca mais! Parti rumo à torrente e assim me foi destinado.

Acontece muitas vezes que um trecho mal escrito, mas digitado por mãos sob a influência de um sentimento profundo, com demonstrações de suplício e prazer, cause uma impressão maior que os grandes romances, aqueles urdidos por artíficies junto aos quais jamais chegarei.

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