Pretendo contar um pedaço da história de um cabra que conheci em um butiquim pé-sujo que costumava freqüentar. Nome incerto e com uma malemolência tupiniquim bastante temperada com a cultura universal. Deixemos logo de cara registrado que o referido era de uma erudição invejável. De Bach a Elomar, o sujeito não só conhecia tudo, como cantava com uma afinação de dar inveja a Fischer-Diskau, além disso, tocava um belo violão. Aqui se faz necessário abrir um pequeno comentário:
- Este violão foi a única coisa, fora a minha vil presença, que sobrou de minha inimiga. Ele deverá ser guardado como troféu de minha vitória.
Em princípio achei apenas uma peça de retórica barata e não dei muita atenção. Mas após nossa convivência íntima, mais de cinco anos, acabei por achar que entendi. Terminei por descobrir que o violão era de luthier e custava uma pequena fortuna. Não era o valor que importava. Para ele ali se escondia vinte anos de sua vida, a eterna inimiga. Segundo ele, foi o momento em que se deu a única trégua em sua luta com a inimiga.
Do que sua memória registrou, – primeira contradição: sabia de cor uma infinidade de músicas, textos, mapas, poemas, até artigos inteiros ele já me citou, enfim, uma memória prodigiosa – ficou uma janela aberta mostrado todo interior da casa.
- Sabe, qual é mesmo sua graça?
- Odaízio.
- Ah, sim! Odaízio na sala está todo meu resumo, a parte essencial de minha existência. E ela foi pintada com o pincel do fracasso desde o início. Bate nítido o dia, qual foi mesmo? Tinha sete anos? Seis? Cinco... em que se manifestou minha sina de sempre quebrar a obra, destruir o que construí, desfolhar a rosa cultivada com afinco e denodo durante tempos. Depois: o pavor. A sensação eterna de ter o malogro como companheiro. Graças ao meu temperamento irracional sempre consigo acabar com a mais dura armadura, aniquilo de um golpe toda sorte de salvação. Deliberadamente corro rumo ao fim, como se buscasse o bálsamo redentor de minha miséria: a morte. Pois não é exatamente a vida minha maior inimiga?
Conforme o grau de alcoolismo, este ponto de vista sofria algumas alterações interessantes. Uma delas, talvez a mais significativa, era o fato de ele sempre fazer uma confusão, buscando uma polissemia qualquer, entre vida, Aída e ávida. Convém esclarecer que a ex-mulher dele chamava Aída, sim, com acento no i. Deste triângulo vocabular, surgia uma curiosa dialética anárquica, digamos assim, pois a cada segundo as premissas, assim como a síntese, quando havia, tomavam contornos cada vez mais imprecisos e doloridos. Agora, isso não é nada diante dos longos discursos produzidos – essa arenga, deixemos claro mais uma vez, era de uma lucidez e erudição que dificilmente se acha por aí, mesmo nos melhores salões – por sua mente corroída em um coquetel de álcool, todo tipo de tabaco, noites insones, livros, música, solidão e loucura.
Um comentário:
companheiro como é bom poder viajar assim,realmente encontramos esse tipo de figura na nossas vidas ainda mais num botiquin,mas me diga? como você achou esse nome tão bonito?e o que fez você lembrar do mesmo, já que você realmente conhece uma figura com esse nome.
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