sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Último gesto

Ele gostava de abusar do lirismo. Frases derramando subjetividade era com ele mesmo. Não se fiava nessas novidades truncadas, fragmentadas e obscuras. Para sua pena, ainda a usa, a clareza da estória bem contada era o que contava. No fundo era um grande romântico. Sempre achei interessante sua teoria de que escritor era quem escrevia livros e não quem publicava. Por outro lado, sempre me assaltou a desconfiança de uma justificativa barata, uma desculpa de escritor fracassado. Não largava seu bloquinho de anotações.Rabiscando ditos, tecendo lacrimosas falas ia de pito em pito.

Li seu primeiro livro, "Jardins do Enlevo", em uma noite chuvosa e fria. Um caderno tosco e amarfanhado contando as agruras de um casal até seu desenlace feliz, bem no estilo novela da rede globo. Devo dizer, embora não me agrade, que sua escrita é rigorosa, poucos erros e é evidente um bom domínio da ferramenta. Bem ao contrário de certos magos charlatões. Prefiro uma literatura honesta e bem cuidada à uma cheia de promessas, receitas para o cidadão feliz, íntegro e com atentados à lingua materna.

Por falar nisso, as garatujas do mago falastrão apontaram para o ministro da cultura, Juca Ferreira. Irritado o escrevinhador, entre irônico e sarcástico, pediu de volta o convite ao saber que o sucessor de Gil, segundo o parceiro do maluco beleza, seu amigo íntimo, não iria comparecer na feira alemã que vai homenageá-lo. Com a marca de cem milhões de livros vendidos pelo mundo, diz que "já não me interessa mais sua presença e de seus convidados. Quero apenas que me devolva o convite; será entregue ao primeiro mendigo ou desempregado que passar na porta". Palmas para o alquimista. Ao menos a ralé comerá. Atente, minha única leitora, para o tom desdenhoso e preconceituoso embutido na assertiva. A comparação é simbólica e se pode ver claramente o desdém do bicho grilo com o bicho rato.

Voltemos ao nosso herói. Seu passado era uma incógnita e eu não ousava tocar no assunto, pois ele tinha horror do passado. Só fui entender mais tarde a razão de sua fuga. Havia abandonado sua mulher e único filho há mais de trinta anos. Em nome da liberdade, do aqui e agora, rompeu laços e não deu mais notícias. Um pouco antes de sua morte seu filho o achou. Tudo que fora minuciosamente mascarado aflorou como um vulcão em erupção. Creio até que isso tenha contribuido para seu passamento.

O último gesto fez honra ao que fora aos meus olhos. Alegria desbragada, descompromisso com tudo, apenas o lápis frenético anotando o olhar mais vulgar. Vivera como quis: solto como um passarinho. Não morreu como viveu.

4 comentários:

Aline Cristina. disse...

Muito bom post !!!

Beijos !!!

poupadordeporra disse...

Obrigado Aline, volte sempre que quiser.

Rosa Amarela disse...

Acabei de ler "Último gesto", gostei muito do tom crítico associado à linguagem literária.

poupadordeporra disse...

Obrigado, rosamelia. Vamos indo que atrás vem gente.