Tudo é deserto, já disse o bardo luso. Não pense, caríssima, que eu esteja angustiado, pois não estou. Apenas olho a janela e não me vejo na paisagem. O horizonte distante apenas amplia meu cubículo, masmorra construida com minhas próprias mãos. Longe, perto do horizonte, vejo uma torre de comunicação e não entendo esse mundo tão exacerbado. Quanto mais se escuta, menos se ouve. A profusão de mensagens, amores, amizades é a própria ausência de tudo. Náufrago de mim, vago a esmo em águas torrenciais.
Gostaria muito de ter um amor, mas isso não foi feito para mim. O amor não é coisa que se ache por aí, distraidamente plantado em nossa frente. Acredito até, que não tive a honra de conhecê-lo. Muito se diz sobre essa entidade. Sim, algo que não se materialize não passa de um espectro, uma alucinação. Vejo loucuras sendo perpetradas em seu nome. Não creio na enxurrada de propaganda dirigida aos enamorados, não acredito nas marcas deixadas em almas tão sensíveis, em romantismo eivado de subjetividade. Senhor, dai-nos hoje a abstração imemorial de suas paixões. Náufrago de mim, vago a esmo em um mar tumultuoso.
Quando muito, vislumbro uma incapacidade de se ficar só. A eterna necessidade do outro. O homem da multidão. Uma criatura singular. Vivendo no meio do turbilhão recusa-se a estar só. Eu padeço de mal contrário. Não aceito estar vadiando de lá para cá. Ruas tortuosas, gente... Tudo isso me parece melancólico demais, me aborrece e sinto engulhos. Essa terra foi um achado. Perdida no meio do nada me reconforta. Meu único elo com o burburinho humano é a antena, lá na lonjura. Náufrago de mim, vago a esmo em um rio corrente.
Faz vinte anos que a única pessoa que vejo é o entregador de meus pedidos, que não é lá muita coisa, só o que não consigo produzir. Infelizmente ainda necessito do mundo para algumas coisas. Na vilazinha mais próxima, cerca de 50 léguas, me chamam de velho maluco. Talvez eu seja. Pense um pouco: qual a razão pela qual alguém se enterra vivo? Uma ânsia de solidão, um atroz sentimento de não pertencimento? Não faço a mínima idéia. O fato é que vim e fiquei. Constato que não possuo mais aquele olhar opaco, meus gestos não denotam mais uma humildade abjeta e não me vejo desolado, inexpressivo. Já não tão náufrago, vago firme em águas mansas.
O avanço dos anos... vou suportando estoicamente, até melhorei de saúde. Nunca mais tive dores no corpo. Tenho os livros fundamentais, na verdade, acabei descobrindo que a gente lê poucos livros. O essencial cabe em uma estante e só releio, sempre a mesma meia dúzia. Acho que a urbe nunca me comportou, foi um desvario do destino. Não volto mais. Apenas lamento não ter me despedido de parcas pessoas, pouquíssimas mesmo. Já em terra firme, semeio brisa.
Fim.
2 comentários:
Eita poupador...
Que texto..nunca conheceu o amor..e ve pessoas fazerem mau uso dele...o.O
Grazi, posso chamá-la assim?, minhas personagens fogem de meu controle. Me sinto meio marionete em suas mãos. Eu mesmo, não tenho nada a ver com isso. Adoro gente. Beijos e obrigado.
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