quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Ligeireza do Felino

Sonho com o dia em que teremos o renascimento dos primitivos, dos românticos, dos artistas da bola. Desencantar o espírito livre do felino negro, da criação imprevista, do toque sutil desconcertando meio time adversário. O esporte bretão em terras de pindorama perdeu o encanto, o canto e o violão. Logo ele, que em um genial lance de apropriação, tornou o ludopédio o mais brasileiro dos esportes. Minha única leitora poderá arguir, aproveitando mais uma reforma na língua oficial, que os tempos eram outros, outros carnavais e outros Angenores. Mas sempre fica uma pontinha de nostalgia.

Enquanto Braguinha anunciava ao mundo que tínhamos bananas, o escrete brasileiro, futuro canarinho, abria o pano do espetáculo que se anunciava ao mundo. Nascia o futebol arte. Aquele feito de lampejos impensáveis, geniais e torturantes, para o inimigo, lógico. No ano de 1938, em campos franceses, a seleção é recebida com desdém por uma Europa prestes a entrar em guerra e ciosa de sua superioridade racial. Mandamos para o velho mundo dois representantes da raça, afinal a superioridade nos esportes refletia a supremacia: o defensor e o diamante negros. Domingos da Guia, teríamos outro da Guia, e Leônidas da Silva mostraram ao tapete verde a canção malemolente do divino Cartola.

Com a argúcia da malandragem velada por bordões cheios de malícia, de uma ligeireza felina, feita de inopinos nossa alma lasciva reclama o drible curto e dispensa os espartilhos vitorianos. Pela centésima vez, pergunto-me como, no início, com Lazaroni, quando a brisa ainda era violentamente açoitada pelos fantasistas da redonda, deixamos a arte para nos contentar com a eficiência do mercado. Bem sei que meu único leitor deitado na rede torcerá o nariz para esse textículo desbragadamente saudosista e ufanista, mas o que fazer se ando carente de samba e de futebol.

O desenvolvimento racional, previsto, matemático do conjunto pertence ao continente da cultura e da civilização. Nós, os primitivos, circulamos em outra esfera. Transitamos em uma região onde os meios naturais, que são grandes, dispensam o método, a direção e a educação. Passes curtos e no chão revelam nossa preguiça, aumentam nossas saúvas, também loucas correndo atrás da pelota.

Assim o berço da civilização conhecia a criança da criação e os bugres dos tristes trópicos se deleitavam com uma época de ouro. Surfava-se nas ondas do rádio. Longos tubos do sambista lírico nos diziam que o baile encerrou. Nossa canção deu um lançamento digno de Gérson e fez definitivamente uma linda linha de passe, daquelas onde uma pintura não passa de uma tosca garatuja, não tanajura.

Se em 38 tivemos nossa noite de gala, vinte depois nosso candango, na copa seguinte o oscar, em 70 a coroação definitiva, em 82 os aplausos embriagados, mesmo com a derrota para a eficiência, em 90 tivemos nossa noite dos cristais. Já com Parreira, como demonstra a obra pictórica do mesmo, em 94, nos despimos da fantasia e nos travestimos com uma máscara para um carnaval que não era nosso. A final da ciência foi para a penalidade máxima. Finalmente os ímpios entenderam a matemática e nos sagramos tetra, sem nenhum brilho e com uma caricatura. Parafraseando nosso comentarista cego: os idiotas da objetividade venceram.

O resto... bem, o resto é um rosto pálido. Uma quarta-feira cinzenta, não de cinzas.

Um comentário:

Frank disse...

Estou retribuindo a visita e vim ler o texto sugerido. Achei simplesmente sensacional! acredito que este é o adjetivo que melhor representa seu texto!!!
parabéns!!!
abraço