terça-feira, 23 de julho de 2013

Memória Seletiva

Saí da UTI ontem e acordei com o oficial de justiça à porta. Ironia suprema de meu destino torto. Não sei bem ao certo se tomo isso como simbólico e abro uma tremenda gargalhada ou se desdenho e finjo uma tristeza serena. O fato é que me vejo às voltas com a justa novamente. Aliás, de seis anos para cá tenho ido mais aos tribunais que ao cinema. Quando me sinto um pouco aliviado, ao arrematar os acertos da última pendenga, eis que surge mais uma vez os lábios da justiça, que nesse país é pura redundância, já que o escárnio é sua especialidade.

De tanto apanhar já começo a pensar que sou totalmente um estrangeiro. Mersault em um cerrado cuja vastidão retorcida e implacável arruína o coração já fraco, já descontente da vida. À maneira renascentista poderia até pintar um grande contraste de luz roubando a cena, mas me falta o talento. O fato é que outra vez me vejo envolvido pelas artimanhas de uma vara qualquer. No caso em pauta, a de família. Já me considero um sapiente nos meandros seguidos pelos doutos jurisconsultos. A pedinte, sim, posso me referir assim, pleiteia que meu filho único e com quinze anos se veja obrigado a dormir ao menos um final de semana ao mês na companhia deste que vos escrevinha. Argumenta a pedinte que o pai é ausente e que sendo assim resolveria a angústia revelada pelo rebento ao não ter contato com a porra originária. Fiquei pasmo ao perceber que, ao menos para a progenitora, um final de semana por mês é suficiente para que tal lacuna sentimental seja preenchida. As relações se parecem cada vez mais com um produto perecível, daqueles que podemos comprar no mercado.

- Primeira gôndola à esquerda doutor. Diria o atendente.

Somenos importância trata-se do fato de que moro há quase três mil quilômetros de distância das personagens envolvidas. Diante disto, caso o meritíssimo acolha o pleito, serei obrigado a abrir uma agência de jegue, já que meus parcos rendimentos não permitem bancar deslocamentos aéreos dessa monta. Seria até uma grande ajuda sócio animal, pois os nobres asnos já não representam mais nada depois que a febre motociclística assolou o sertão, estando os mesmos voltando ao estado selvático de seus ancestrais. Assalta-me algumas dúvidas: estaria eu, esse pobre escriba perdido nos cafundós, destinado a inapelável derrota? Estaria eu, destituído de habilidade assim como de vontade, fadado a inapelável derrota? Se ao menos conseguisse algumas piabas. Mas não, sempre o fracasso retumbante. Joseph K. em um vasto planalto onde o azul fura, mais que adaga, a tibieza do músculo, já descrente da vida.

    É... talvez seja melhor a angústia que paira em uma UTI que esse arremedo de civilização em que vivemos. E pensar que me mandei para esse fim de mundo para ficar longe das questões coletivas. Mas eis-me obrigado a prestar esclarecimentos ao distinto que só me fode a vida. Questões básicas ele esquece. É a famosa memória seletiva.

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