quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Pinho Emudecido

Vivi sozinho os meus últimos dias. Não me lembro de quando nasci e não tenho a mínima idéia – com acento – de quando morri. Apenas lampejos brilhando no horizonte, eis aí minha memória, que de tão curta não passa de uma paca. Até acreditei em um sonho, daqueles bonitos e, mesmo que digam o contrário, coloridos. O último lamento do guerreiro é cantiga de aboio, cantilena da saudade, modinha serelepe no lombo dos olhos. O resto é silêncio. Viver o crepúsculo de uma existência nada mais é que sonhar acordado. Divisando perfeitamente os contornos da noite se ganha o horizonte, se navega na crista da lonjura e, sem remorsos, aderna lentamente para o poente.
Vivi sozinho os meus último dias. Não me recordo da semente e tampouco diviso a podridão. Apenas restos de memória carcomida pelo vírus da discórdia. Eis aí minha louca cabeça, que de tão louca não passa de uma touca. Até pensei em ser feliz, bem do tipo receita feita para muitos e, mesmo que digam o contrário, saborosa. A derradeira lágrima do covarde é seca como o cerrado, casca grossa da vileza, galhos retorcidos no lombo dos olhos. O resto é ruído. Morrer a alvorada de uma inexistência nada mais é que dormir de olhos abertos. Confundindo até a mais clara manhã se perde o horizonte, se afunda no poço sombrio do presente e, cheio de vergonha, levanta rapidamente para a nascente.
Meu epílogo foi banal, como simplórios são todos os finais. Como reminiscência apenas o sorriso maroto de um desconhecido. Vestido de verde se destacava dos demais. Nunca pensei que meu velório fosse dar tantos ilustres desconhecidos. Só os amigos, para ser mais exato três, não foram ao rito macabro. Eles sabiam que eu não queria nada daquilo. Isso foi coisa da minha ex-mulher. Até na morte ela me aporrinhou. Será que finalmente terei sossego. Duvido. A diaba tem pacto com o tinhoso e é bem capar dela me encontrar no purgatório. Aí faço como a piada: nem vem que não tem. Nossa promessa foi até que morte os separe. Portanto, estamos devidamente separados. Faça de conta que sou um estranho. Aliás, o que não seria novidade alguma.
Vezes me pego perguntando como alguém pode viver com outro e não ter sequer a noção de quem seja seu parceiro. Toleimas teimosas de um tonto. Agora sim. A névoa se dissipa e vejo claramente o dia em que meu pinho emudeceu. Era uma bela tarde de maio, no tempo em que o conluio do céu com as cores se revela. Ela estava linda em seu vestido de alça. Parecia uma deusa grega, uma dessas imagens diáfanas, etéreas e destinadas ao mais puro prazer. A primeira vez que entrou em casa matou com um simples olhar todas minhas plantas. Infeliz o cego que não crê em seu próprio olhar. Foi nesse dia. Até as cordas do violão arrebentaram. Foi o início do fim. E é só, fui. Fim!

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